DE CORPO E ALMA
Robert Altman, The company, EUA, 2003

Filme-Processo

De Corpo e Alma entrou e saiu de cartaz sem fazer barulho. Era um filme de balé de Robert Altman. Projeto esquisito de um cineasta que não vem passando por uma fase das mais inspiradas (apesar do sucesso de crítica do anterior Assassinato em Gosford Park). Agora observemos o filme com mais calma: De Corpo e Alma termina por se revelar um dos trabalhos mais fortes do seu diretor e o primeiro em muito tempo cujo interesse vai para bem além dos seus fãs. É um filme que parte de uma história de produção adversa e a usa como sua principal matéria prima.

Robert Altman entrou tarde no projeto do De Corpo e Alma: após um outro filme, cuja produção estava toda acertada mas acabou não se realizando, ele se viu diante de um filme idealizado pela atriz principal, cujo tema (uma companhia de balé) não lhe dizia muito por si mesmo, apesar de possibilitar uma oportunidade de exercer seu talento para realizar crônicas de comunidades fechadas. Uma última complicação: uma boa parte do filme é dedicado a cenas de balé em que Altman – um não especialista – não tem controle quase algum, tendo de se contentar em registrar o trabalho da equipe do Balé Jeffrey de Chicago. É neste ponto que Altman acende o questionamento que termina por transformar o filme numa reflexão sobre a sua própria realização.

Qual a diferença entre filmar um balé e uma cena dramática? Se estamos de um lado diante de um registro documental e do outro diante da construção de uma ficção, porque o segundo se propõe naturalista enquanto o primeiro é anti-realista? Filmar um balé é filmar uma performance encenada para uma platéia, ou seja, uma performance que já é uma encenação pronta para registro. O fato de Altman não ter sobre os dançarinos o mesmo controle que tem quando eles passam a atuar não torna o que eles desempenham para a câmera nas duas situações mais ou menos verdadeiro. Altman termina por promover o colapso da ficção/não-ficção.Vendo De Corpo e Alma, o espectador pode se ver diante de uma questão como esta: se acho Neve Campbell melhor atriz do que dançarina, isto significa que há mais verdade nas suas cenas atuadas que dançadas? Por que isto de repente soa importante?

Altman acaba indo longe em algo que podemos denominar a natureza encenada da imagem documental. Isto é novo? Claro que não, desde Flaherty sabemos que uma imagem dentro de um filme de não-ficção não supõe uma completa ausência de encenação. Mesmo assim se observarmos as críticas a qualquer documentário lançado nos cinemas este ano vamos observar a freqüência com que o tratamos como se a priori tivesse uma veracidade que não creditamos a uma reportagem do Jornal Nacional. Nunca foi tão fácil ser documentarista. Altman, diante da experiência forçada de trabalhar primeiramente sobre o registro, teve o mérito de refletir sobre tudo isto. Não surpreende que as passagens mais frágeis do filme sejam aquelas que envolvam o diretor da companhia (Malcolm Macdowell), representante em cena de Altman. Muito distante dos bailarinos, ele parece enraizado demais na ficção (apesar de contribuir para a idéia de filme sobre sua própria realização) para atrair nossa atenção. O filme se afirma com força quando está numa linha mais tênue (em especial quando em cena estão um ou mais não profissionais). Este filme-processo de Altman, se não diz nada de novo sobre representação, não deixa de nos trazer de volta a questões bastante interessantes, e por vezes esquecidas.

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Ultima pergunta proporcionada por Altman: se num filme de ficção científica um diretor se vê como Altman diante de uma situação onde tem de entregar o controle da ação para outro (coreógrafos, dubles, técnicos em efeitos), isto significa que há um elemento documental em ação?

Filipe Furtado

(VHS/DVD Playarte)