Filme-Processo
De Corpo e Alma entrou e saiu de cartaz sem fazer
barulho. Era um filme de balé de Robert Altman.
Projeto esquisito de um cineasta que não vem
passando por uma fase das mais inspiradas (apesar do
sucesso de crítica do anterior Assassinato
em Gosford Park). Agora observemos o filme com mais
calma: De Corpo e Alma termina por se revelar
um dos trabalhos mais fortes do seu diretor e o primeiro
em muito tempo cujo interesse vai para bem além
dos seus fãs. É um filme que parte de
uma história de produção adversa
e a usa como sua principal matéria prima.
Robert Altman entrou tarde no projeto do De Corpo
e Alma: após um outro filme, cuja produção
estava toda acertada mas acabou não se realizando,
ele se viu diante de um filme idealizado pela atriz
principal, cujo tema (uma companhia de balé)
não lhe dizia muito por si mesmo, apesar de possibilitar
uma oportunidade de exercer seu talento para realizar
crônicas de comunidades fechadas. Uma última
complicação: uma boa parte do filme é
dedicado a cenas de balé em que Altman – um não
especialista – não tem controle quase algum,
tendo de se contentar em registrar o trabalho da equipe
do Balé Jeffrey de Chicago. É neste ponto
que Altman acende o questionamento que termina por transformar
o filme numa reflexão sobre a sua própria
realização.
Qual a diferença entre filmar um balé
e uma cena dramática? Se estamos de um lado diante
de um registro documental e do outro diante da construção
de uma ficção, porque o segundo se propõe
naturalista enquanto o primeiro é anti-realista?
Filmar um balé é filmar uma performance
encenada para uma platéia, ou seja, uma performance
que já é uma encenação pronta
para registro. O fato de Altman não ter sobre
os dançarinos o mesmo controle que tem quando
eles passam a atuar não torna o que eles desempenham
para a câmera nas duas situações
mais ou menos verdadeiro. Altman termina por promover
o colapso da ficção/não-ficção.Vendo
De Corpo e Alma, o espectador pode se ver diante
de uma questão como esta: se acho Neve Campbell
melhor atriz do que dançarina, isto significa
que há mais verdade nas suas cenas atuadas que
dançadas? Por que isto de repente soa importante?
Altman acaba indo longe em algo que podemos denominar
a natureza encenada da imagem documental. Isto é
novo? Claro que não, desde Flaherty sabemos que
uma imagem dentro de um filme de não-ficção
não supõe uma completa ausência
de encenação. Mesmo assim se observarmos
as críticas a qualquer documentário lançado
nos cinemas este ano vamos observar a freqüência
com que o tratamos como se a priori tivesse uma veracidade
que não creditamos a uma reportagem do Jornal
Nacional. Nunca foi tão fácil ser documentarista.
Altman, diante da experiência forçada de
trabalhar primeiramente sobre o registro, teve o mérito
de refletir sobre tudo isto. Não surpreende que
as passagens mais frágeis do filme sejam aquelas
que envolvam o diretor da companhia (Malcolm Macdowell),
representante em cena de Altman. Muito distante dos
bailarinos, ele parece enraizado demais na ficção
(apesar de contribuir para a idéia de filme sobre
sua própria realização) para atrair
nossa atenção. O filme se afirma com força
quando está numa linha mais tênue (em especial
quando em cena estão um ou mais não profissionais).
Este filme-processo de Altman, se não diz nada
de novo sobre representação, não
deixa de nos trazer de volta a questões bastante
interessantes, e por vezes esquecidas.
* * *
Ultima pergunta proporcionada por Altman: se num filme
de ficção científica um diretor
se vê como Altman diante de uma situação
onde tem de entregar o controle da ação
para outro (coreógrafos, dubles, técnicos
em efeitos), isto significa que há um elemento
documental em ação?
Filipe Furtado
(VHS/DVD Playarte)
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