TERRA PROMETIDA
Amos Gitai, Promised land, Israel/França, 2004

Os planos-sequência de Amos Gitai têm dois aspectos: tanto ditam a movimentação dos atores em cena, que têm de se moldar à coreografia da câmera (vide Kedma), como procuram (pela falta de corte) evidências de “verdade” (de pessoas, de um ambiente, do mundo).  Procuram, não: simulam uma procura. Gitai não tem nada a encontrar porque já carrega a verdade consigo. A filmagem é apenas a ilustração de suas certezas, às vezes expressas de forma direta, às vezes de forma mais simbólica, sempre buscando uma gravidade típica do autor com algo a revelar. Os planos-sequência tendem a ser, então, apenas uma aparência de procura por um sentido, procura de um olho que não se fecha. Também é marca de estilo, ora determinando o modo dos acontecimentos, ora moldando-se aos eventos de forma serena. Nenhuma conseqüência desse método resulta mais interessante que as tomadas de perto de soldados avessos à imagem em Diário de Campanha. Não cortar ali era uma forma de se proteger, com a câmera, das armas empunhadas pelos jovens de uniforme com síndrome de poder. Um confronto de forças diferentes, mas razoavelmente equilibradas. O plano-sequência era o ponto de vista de um dos lados sobre esse embate.

Em Terra Prometida, temos uma inversão. Se há ainda planos-sequência aqui e ali, predomina a dinâmica dos planos curtos, com a câmera indo de um ângulo para outro, alterando a distância em relação aos corpos, balançando freqüentemente, a refletir os cataclismas do território onde está, os acidentes do solo, o movimento de um olhar que pisca e se move com velocidade, tentando cobrir todos os campos da visão. A opção pelo excesso de cortes e pela câmera na mão pressupõe vínculo com o neo-naturalismo da moda, cuja operação estética visa a produzir a aparência de um telejornal ao vivo já todo decupado, ou de um reality show com câmera na mão e já montado na própria filmagem.

Gitai coloca seu olho, o olho de quem narra, em todos os espaços possíveis, como se não escolhesse um ângulo, como se a câmera fosse metralhadora sem alvo certo, atirando em tudo. Rende-se assim à uma convenção da “câmera-gatilho”( tão acionada pelas captações em digital), que corta de um olhar para outro (olhar do diretor), sem acrescentar nova informação, sem criar uma dinâmica de passagem de um enquadramento para outro, apenas apressando-se em matar o instante, em virar a página, em correr o tempo todo com a imagem - tendo de recorrer a ela, por exemplo, para ilustrar os pensamentos de uma jovem, sem deixá-la apenas com uma imagem absorta (imagem dela pensando, não de seus pensamentos). A câmera de Gitai coage, tenta extrair reações a fórceps, ao contrário, por exemplo, da de Abbas Kiarostami em Dez, que “desaparece” em benefício do ator, da espontaneidade, de uma atuação com mais verdade.

Essa coação também funciona dentro de uma lógica de sedução do nosso olhar, com a promessa de nos mostrar algo fora dos limites, como toda a ação de um estupro. Se há momentos em que somos colocados em A Bruxa de Blair, por pura “neo-convenção”, não vemos a mesma função do estilo daquele - a de não mostrar como forma de torturar a imaginação. Aqui se mostra demais até no escuro. Quando, ao final, duas escravas fogem para a liberdade, o plano age como metáfora dessa câmera-coação. A liberdade delas está em atravessar a rua, saltar uma grade e sair do campo de visão da câmera, afastando-se até cair na invisibilidade: a imagem é uma prisão, sair do campo uma fuga dessa prisão. Teria o diretor construído o enquadramento final como solução para o impasse estabelecido por sua decupagem? Ou a significação interna dessa imagem foi mais um daqueles acidentes criativos ao fim do qual a criação supera o autor pela falta de controle deste? Arte tem disso, dinâmica própria.

O estilo documental é empregado para reivindicar a verdade sobre aquele universo. Sem assumir um olhar individual e um recorte expresso nas opções estéticas, a estética da veracidade é usada apenas pra produzir verossimilhança. É operação de manipulação de eventos, mudanças de ângulos, tempo de plano, encenação de documentário direto, ficção em qualquer nível, sempre a nos convencer de que tudo aquilo é verdadeiro como está na tela. Esse naturalismo falsamente fundamentalista, calcado no ilusionismo de real com material bruto, não produz o “efeito encontro” de Bresson, meio pelo qual se busca, na filmagem, uma espontaneidade de momento. Gitai não espera esse momento, quer arrancá-lo na marra, tornando forçada a evidência de “reação natural”.

O tom contundente é adotado para nos tirar da condição de observadores e nos colocar no mesmo nível de mal-estar das vidas ali filmadas. Gitai nos retira a possibilidade do distanciamento, buscando nos agredir com sua forma bruta e sensacionalista, mas também nos dando o conforto espiritual de, em momentos atolados em música para comover, procurar em nós a capacidade de emocionar-se, levando-nos por uma coleira até chegar a esse estágio. Não haveria capacidade de emocionar-se com menos artifícios? Gitai faz o contrário, nesse sentido, do caminho de Or, estréia de Keren Yedaya, americana radicada em Israel. Se ela se aproxima das personagens, quase tocando-as com a câmera, mas também afirmando seu olhar de fora (mesmo que de perto), Gitai faz um percurso contrário. Ele simula um olhar de dentro, com uma câmera que circula por corpos e ambientes, quase estuprando os seres, sem limites em relação a eles. Yedaya propõe uma aproximação com situações específicas, com a singularidade das personagens, para daí introduzir questões amplas, com sutileza e sem cartazes. Gitai só se interessa pela situação geral, sem nos dar a saber quem são aquelas pessoas, pois essas só existem como dado social.

O diretor acaba se enrolando por filmar demais. Se o filme é construído para nos mostrar a desgraça vivida pelas escravas brancas enviadas a Israel, com uma seleção de momentos sórdidos e a atmosfera de seco ceticismo, para nos convencer da condição de gado das mulheres, ele trai seu espírito crítico de denúncia ao reproduzir o ponto de vista dos opressores. Quando mostra a nudez das jovens, durante uma negociação com os comerciantes de corpos, Gitai legitima o corpo como mercadoria, expondo as partes íntimas das moças como quem mostra ao espectador um pedaço de carne à venda. Há voyeurismo onde deveria haver pudor e respeito por mulheres já vilipendiadas. Gitai parece ignorar que, para expor essa situação, há também o “fora de campo”. Quem filma demais pensa com pressa.

Cléber Eduardo