Os planos-sequência de Amos
Gitai têm dois aspectos: tanto ditam a movimentação
dos atores em cena, que têm de se moldar à coreografia
da câmera (vide Kedma),
como procuram (pela falta de corte) evidências de “verdade”
(de pessoas, de um ambiente, do mundo). Procuram, não:
simulam uma procura. Gitai não tem nada a encontrar
porque já carrega a verdade consigo. A filmagem é apenas
a ilustração de suas certezas, às vezes expressas de
forma direta, às vezes de forma mais simbólica, sempre
buscando uma gravidade típica do autor com algo a revelar.
Os planos-sequência tendem a ser, então, apenas uma
aparência de procura por um sentido, procura de um olho
que não se fecha. Também é marca de estilo, ora determinando
o modo dos acontecimentos, ora moldando-se aos eventos
de forma serena. Nenhuma conseqüência desse método resulta
mais interessante que as tomadas de perto de soldados
avessos à imagem em Diário
de Campanha. Não cortar ali era uma forma de se
proteger, com a câmera, das armas empunhadas pelos jovens
de uniforme com síndrome de poder. Um confronto de forças
diferentes, mas razoavelmente equilibradas. O plano-sequência
era o ponto de vista de um dos lados sobre esse embate.
Em Terra Prometida,
temos uma inversão. Se há ainda planos-sequência aqui
e ali, predomina a dinâmica dos planos curtos, com a
câmera indo de um ângulo para outro, alterando a distância
em relação aos corpos, balançando freqüentemente, a
refletir os cataclismas do território onde está, os
acidentes do solo, o movimento de um olhar que pisca
e se move com velocidade, tentando cobrir todos os campos
da visão. A opção pelo excesso de cortes e pela câmera
na mão pressupõe vínculo com o neo-naturalismo da moda,
cuja operação estética visa a produzir a aparência de
um telejornal ao vivo já todo decupado, ou de um reality
show com câmera na mão e já montado na própria filmagem.
Gitai coloca seu olho, o olho de quem narra, em todos
os espaços possíveis, como se não escolhesse um ângulo,
como se a câmera fosse metralhadora sem alvo certo,
atirando em tudo. Rende-se assim à uma convenção da
“câmera-gatilho”( tão acionada pelas captações em digital),
que corta de um olhar para outro (olhar do diretor),
sem acrescentar nova informação, sem criar uma dinâmica
de passagem de um enquadramento para outro, apenas apressando-se
em matar o instante, em virar a página, em correr o
tempo todo com a imagem - tendo de recorrer a ela, por
exemplo, para ilustrar os pensamentos de uma jovem,
sem deixá-la apenas com uma imagem absorta (imagem dela
pensando, não de seus pensamentos). A câmera de Gitai
coage, tenta extrair reações a fórceps, ao contrário,
por exemplo, da de Abbas Kiarostami em Dez, que “desaparece” em benefício do ator, da espontaneidade, de
uma atuação com mais verdade.
Essa coação também funciona dentro de uma lógica de
sedução do nosso olhar, com a promessa de nos mostrar
algo fora dos limites, como toda a ação de um estupro.
Se há momentos em que somos colocados em A Bruxa de Blair, por pura “neo-convenção”,
não vemos a mesma função do estilo daquele - a de não
mostrar como forma de torturar a imaginação. Aqui se
mostra demais até no escuro. Quando, ao final, duas
escravas fogem para a liberdade, o plano age como metáfora
dessa câmera-coação. A liberdade delas está em atravessar
a rua, saltar uma grade e sair do campo de visão da
câmera, afastando-se até cair na invisibilidade: a imagem
é uma prisão, sair do campo uma fuga dessa prisão. Teria
o diretor construído o enquadramento final como solução
para o impasse estabelecido por sua decupagem? Ou a
significação interna dessa imagem foi mais um daqueles
acidentes criativos ao fim do qual a criação supera
o autor pela falta de controle deste? Arte tem disso,
dinâmica própria.
O estilo documental é empregado para reivindicar a verdade
sobre aquele universo. Sem assumir um olhar individual
e um recorte expresso nas opções estéticas, a estética
da veracidade é usada apenas pra produzir verossimilhança.
É operação de manipulação de eventos, mudanças de ângulos,
tempo de plano, encenação de documentário direto, ficção
em qualquer nível, sempre a nos convencer de que tudo
aquilo é verdadeiro como está na tela. Esse naturalismo
falsamente fundamentalista, calcado no ilusionismo de
real com material bruto, não produz o “efeito encontro”
de Bresson, meio pelo qual se busca, na filmagem, uma
espontaneidade de momento. Gitai não espera esse momento,
quer arrancá-lo na marra, tornando forçada a evidência
de “reação natural”.
O tom contundente é adotado para nos tirar da condição
de observadores e nos colocar no mesmo nível de mal-estar
das vidas ali filmadas. Gitai nos retira a possibilidade
do distanciamento, buscando nos agredir com sua forma
bruta e sensacionalista, mas também nos dando o conforto
espiritual de, em momentos atolados em música para comover,
procurar em nós a capacidade de emocionar-se, levando-nos
por uma coleira até chegar a esse estágio. Não haveria
capacidade de emocionar-se com menos artifícios? Gitai
faz o contrário, nesse sentido, do caminho de Or,
estréia de Keren Yedaya, americana radicada em Israel.
Se ela se aproxima das personagens, quase tocando-as
com a câmera, mas também afirmando seu olhar de fora
(mesmo que de perto), Gitai faz um percurso contrário.
Ele simula um olhar de dentro, com uma câmera que circula
por corpos e ambientes, quase estuprando os seres, sem
limites em relação a eles. Yedaya propõe uma aproximação
com situações específicas, com a singularidade das personagens,
para daí introduzir questões amplas, com sutileza e
sem cartazes. Gitai só se interessa pela situação geral,
sem nos dar a saber quem são aquelas pessoas, pois essas
só existem como dado social.
O diretor acaba se enrolando por filmar demais. Se o
filme é construído para nos mostrar a desgraça vivida
pelas escravas brancas enviadas a Israel, com uma seleção
de momentos sórdidos e a atmosfera de seco ceticismo,
para nos convencer da condição de gado das mulheres,
ele trai seu espírito crítico de denúncia ao reproduzir
o ponto de vista dos opressores. Quando mostra a nudez
das jovens, durante uma negociação com os comerciantes
de corpos, Gitai legitima o corpo como mercadoria, expondo
as partes íntimas das moças como quem mostra ao espectador
um pedaço de carne à venda. Há voyeurismo onde deveria
haver pudor e respeito por mulheres já vilipendiadas.
Gitai parece ignorar que, para expor essa situação,
há também o “fora de campo”. Quem filma demais pensa
com pressa.
Cléber Eduardo
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