TARNATION
Jonathan Caouette, Tarnation, EUA, 2004

Por que fazer um filme? Existem infinitas razões, da vaidade à necessidade de expressão, do amor pelo métier ao amor pela conta bancária, ou até pela salutar obrigação de estar empregado. Mas nenhumas dessas razões mais costumeiras explicam a feitura de um filme como Tarnation, um autodocumentário que é uma prestação de contas selvagem consigo mesmo, com a vida familiar e com o ambiente institucional de uma América que sempre luta para que seus cidadãos sejam normais e, mais que isso, bem sucedidos em sua normalidade. Jonathan Caouette, o diretor do filme, não nasceu no seio familiar mais tranqüilo, não teve a chance de desenvolver calmamente sua personalidade, vivendo em penúria com pais adotivos, com seus avós ou com sua mãe. Hiperativo, com processo de despersonalização antes dos quinze anos de idade, teve desde cedo o uso da própria imagem como espécie de terapia radical de recentramento. Filmou a si e à sua família loucamente desde os onze anos de idade: dramatizações para a câmera, filmetes em que interpretava mulheres decadentes dando testemunhos, ou fazendo sua avó interpretar papéis, entre outras diversas atividades (entre elas a feituras de curtas underground). Tarnation, um filme que retoma todas essas imagens e narra em terceira pessoa, através de legendas na tela, o percurso de Jonathan e da mãe Renee, aparece principalmente como um filme de exorcismo, de expiação de uma vida com as imagens, com o que essas imagens puderam revelar ou esconder, mas acima de tudo guardar.

Só isso, no entanto, não faria de Tarnation um filme especial dentro do extenso mar de autodocumentários produzidos nos últimos anos. O que faz do filme de Jonathan Caouette uma experiência verdadeiramente desorientadora é o fato de ele montar a partir desse caleidoscópio de imagens de si mesmo produzidas durante toda sua vida uma espécie de espetáculo musical, uma ópera-rock documentária de sua vida. Uma tal operação, em que as cenas de uma vida ganham relevos hiperficcionalizados e transformados em performance pode evocar obras tão diversas quanto o Black Album do rapper Jay-Z ou a encenação com barbies que Todd Haynes fez em Superstar – The Karen Carpenter Story, mas o decisivo de Tarnation é que a forma grandiosa encontrada para narrar com imagens de arquivo uma vida em primeira pessoa nos demanda um outro estatuto da imagem cinematográfica, uma outra maneira de nos relacionarmos com as imagens que estamos vendo, pesar diferentemente cada cena, cada registro de discussão familiar ou cada informação que é dada pelas onipresentes legendas que tecem a narrativa. Tarnation na superfície aparece como um autodocumentário, mas se constrói verdadeiramente como o musical frustrado da vida de uma mulher e de seu filho. É o triunfo sublimado dos dejetos da América, daquilo que eles chamam tão apropriadamente de underdog.

Explica-se. O mote narrativo central de Tarnation, aquilo que instala a ficção, é um acontecimento entre outros. Renee LeBlanc, uma menina linda de Houston, Texas, recém descoberta por um fotógrafo de Nova York e transformada em garota propaganda, cai do teto de sua casa, quebra os dois joelhos e fica paralisada por seis meses. Por indicação de psiquiatras, a família autoriza a utilização de choque elétrico para uma melhor recuperação psicológica da moça, e isso acaba desencadeando um histórico que culmina com múltiplas internações em instituições psiquiátricas e um completo descontrole emocional e psíquico da jovem. Entre internações e altas dessas instituições, Renee se casa, tem um filho e é abandonada pelo marido. Tentando sair de casa com a criança, ela é estuprada por um motorista que lhe dá carona. Jonathan, a partir daí, vive com pais adotivos e posteriormente com seus avós, e desenvolve desde cedo problemas psicológicos, dos quais o principal é a despersonalização. Gay desde cedo e dono de uma sensibilidade precoce, com treze anos Jonathan é apresentado ao punk e ao cinema underground, freqüentando clubes para maiores de dezoito anos travestido como uma menina dark. Mãe e filho se igualam nesse desejo abortado de estrelismo, nesse "bigger than life" que a vida lhes recusa impiedosamente, seja pela localidade (o Texas não é a Califórnia), seja pelo ambiente que os circunda (a família, a vizinhança, os Estados Unidos), mais sobretudo pela impossibilidade de articulação de discursos. A loucura, dizia Foucault, é a ausência de discurso. Tarnation, um registro de vida apresentado aos espectadores como musical freak, é finalmente a vitória abjeta e sublime do underdog frente a um mundo que não foi montado para ele.

Os créditos do filme, tanto os iniciais quanto os finais, nos apresentam os atores como num filme de ficção. Renee interpreta Renee, Jonathan interpreta Jonathan, e ambos são apresentados como estrelas do filme. Não é uma mera brincadeirinha de apresentação, mas uma chave privilegiada de decifração do filme: Tarnation é o filme possível após a queda de Renee aos doze anos e sua carreira frustrada, o filme possível por um rapaz despersonalizado e por uma mãe esquizofrênica tornada débil após uma overdose de lítio. Naturalmente, para o processo ser levado a cabo ao mesmo tempo como espetáculo e expiação, como triunfo do que não foi e como criação de um discurso de sua própria história, o filme contém cenas questionáveis, e acima de tudo difíceis de serem vistas: Renee louca fazendo performances com uma abóbora de brinquedo diante da tela, Jonathan chorando ao receber a notícia da overdose da mãe, ou as brigas familiares diante da câmera com seu avô (sobre como permitiram os tratamentos com choque elétrico que iniciaram todo o processo de loucura da mãe) ou o reencontro entre pai, mãe e filho após mais de vinte anos. Podemos nos questionar da falta de tom ao fazer estes questionamentos com a câmera ligada, podemos perguntar se a própria obsessão em filmar todos os aspectos desta vida não constitui propriamente algo doentio. Tarnation não está livre destas críticas nem de muitas outras possíveis – sobretudo morais, mas não só estas –, mas o próprio projeto do filme mostra coerentemente por que ele é feito desta forma, porque ele é mostrado para além de sua própria família e como ele deseja ser visto para um público que não é concernido diretamente com as questões familiares que ele trata.

Uma dos delírios recorrentes de Renee é com Elizabeth Taylor. Por diversas vezes ela se acha filha da atriz, diz que comprou tal ou tal broche que pertencia a ela. Delírio esquizofrênico conhecido, mas que revela que o imaginário da ex-garota propaganda ainda é o da estrela abortada, da menina promissora que por conta do acaso, da má informação e de procedimentos científicos equivocados não teve a vida que esperava. Jonathan Caouette, em Tarnation, faz da mãe sua Elizabeth Taylor, sua superstar glamurosa, e assim se reconcilia com o passado e com as imagens de seu passado de forma comovente. Freaks meets All That Heaven Allows. Não é o mais desprezível dos motivos para se fazer um filme. Um grande filme.

Ruy Gardnier