Per um pugno di dollari,
Itália/Espanha/Alemanha Ocidental, 1964
Per qualche dollaro in piu, Itália/Espanha/Alemanha
Ocidental/Mônaco, 1965
Il buono, il brutto, il cattivo, Itália,
1966
Uma observação atenta aos créditos
de abertura de Por um Punhado de Dólares revelará
semelhanças, certamente não acidentais,
entre o grafismo das imagens desta abertura e a dos
filmes de James Bond. Se a série do espião
inglês, que tivera início dois anos antes,
tem um olho na tecnologia, em uma espécie de
futurismo, a abertura do primeiro faroeste dirigido
por Sergio Leone parece uma versão tosca, primitiva
das sofisticadas apresentações de 007,
contando, como essas, uma pequena "historinha"
que antecipa o filme. E da mesma forma que os filmes
de Bond, com o extremo individualismo e hedonismo da
personagem, vieram, se não revolucionar totalmente,
mas ao menos impor uma nova visão ou mesmo uma
nova mitologia para o cinema de ação,
Leone, com Por um Punhado de Dólares e
seus dois filmes subsequentes, igualmente vindos da
Europa – sim, pois apesar de depois absorvida pelo cinema
americano, a série de Bond era originalmente
uma criação do cinema britânico
– vem impor uma nova forma, ao mesmo tempo apaixonada
e distanciada, de se pensar e fazer filmes de faroeste.
Por um Punhado de Dólares certamente não
foi o primeiro spaghetti western, mas é
aquele que concedeu nobreza e popularidade a esta linhagem,
que depois se dilataria até a vulgarização.
Já nas primeiras imagens, a figura do andarilho,
que viria a ser conhecido como o "homem sem nome",
interpretado por Clint Eastwood, causa um forte estranhamento.
Ao invés da figura altiva e imponente do caubói
montado em um cavalo garboso, tornada costumeira pelo
cinema americano, temos um homem taciturno, vestindo
um deselegante poncho, fumando um charuto vagabundo
e cavalgando uma mula. É com variações
sobre essa personagem, recorrente nos três filmes,
apesar de não se configurar obrigatoriamente
em um mesmo indivíduo, que Leone vai iniciar
sua revisão do mitos do faroeste. A figura impositora
da lei, onipresente nos filmes americanos, com seus
xerifes mantenedores da ordem, vaqueiros e soldados
heróicos, inexiste no cinema de Leone. Em Por
um Punhado de Dólares, não há
qualquer forma de poder oficial; em Por uns Dólares
a Mais, homens da lei são omissos e covardes;
militares corruptos ou desencantados abundam em Três
Homens em Conflito. Praticamente não há
nobreza nas atitudes das personagens. Eastwood, mesmo
que nos filmes tenha algumas atitudes justas – libertar
uma mãe, escravizada sexualmente, e devolvê-la
ao marido e ao filho, em Por um Punhado de Dólares,
por exemplo – não tem, a maior parte do tempo,
na justiça sua maior motivação.
Esta é sim alguma forma de cobiça, ânsia
pelo lucro, e seu maior trunfo, alem da rapidez no gatilho,
não seria a honestidade, mas a esperteza, a manipulação
e a malandragem. Não é a tôa que
os três filmes terminam com o "homem sem
nome" partindo pelo deserto com o fruto pecuniário
do lucro de suas ações. Ele pode até
ser chamado de "bom", principalmente quando
em oposição às demais personagens,
como no terceiro filme, mas nunca é visto como
"bonzinho".
E assim, Leone vai contradizendo o mito perpetuado por
Hollywood da colonização do velho oeste
como evento formador de uma nação democrática
e igualitária, baseada na força de pequenos
proprietários e colonos que venceria, com o gradativo
estabelecimento de uma ordem legal, os intensos obstáculos
(índios, bandoleiros, a geografia) e prosperaria.
Leone vai, a cada novo filme da trilogia, retratando
o oeste como uma terra esquecida por Deus, onde cada
vez mais imperaria uma lei do mais forte. Gradativamente
vai construíndo sua própria mitologia,
aos poucos cristalizada, e definitivamente estabelecida
no filme seguinte, o monumental Era uma Vez no Oeste
(1968), onde Leone apresenta a vinda da estrada
de ferro – caracterizada no cinema americano como símbolo
de uma integração – como representante
das forças econômicas e empresariais que
levaria inexoravelmente à opressão, ou
ao menos à submissão, dos cidadãos
comuns e pequenos proprietários. Este poder destruidor
da estrada de ferro já é esboçado
em Por uns Dólares a Mais, quando Eastwood
conversa com um velho, uma espécie de profeta,
que revela como a chegada das ferrovias fez com que
homens com passado honrado, como o Coronel Mortiimer
(Lee Van Cleef), se vissem reduzidos a caçadores
de recompensas. Vale lembrar também que a visão
iconoclasta de Leone não se restringe a um plano
econômico ou sociológico. Vai também
a comentários irônicos, como, por exemplo,
numa das primeiras cenas de Por uns Dólares
a Mais, quando, fugindo do Coronel Mortiimer, um
pistoleiro tenta dar o clássico pulo da janela
do segundo andar sobre o cavalo e cai no chão.
Ou como, no mesmo filme, várias vezes vemos a
coronha de um revólver ser usada como prego para
fixar cartazes com anúncio de recompensa.
***
Voltando mais especificamente a Por um Punhado de
Dólares, pensemos também o impacto
deste como uma apresentação, alem da já
referida nova abordagem temática, de um estilo
totalmente individual de mise-en-scene e edição.
Um filme que num primeiro momento deixa transparecer
uma idéia de picaretagem, por tratar-se de um
remake bastante fiel mas não creditado
(ou seja, plágio) de Yojimbo, de Akira
Kurosawa, acaba se revelando como obra fundamental na
história do cinema. Leone apresenta aí
todos os recursos que o caracterizariam e que já
foram por demais estudados e discutidos. Seu rítmo,
um tanto mais lento, ou, por que não dizer, reflexivo,
que o do cinema americano. Sua montagem, muito pessoal,
alternando gigantescos planos gerais e close-ups.
Close-ups estes muito peculiares, pois nenhum cineasta
soube tão bem utilizá-los como Leone,
em especial nos momentos de tensão, onde parecem
estabelecer infindáveis relações
geométricas entre os olhares. Essa montagem característica
acaba por definir novas formas de relação
espaço-tempo, associadas à estranha e
particular sonoridade das partituras de Ennio Moriconne,
fragmento indissociável do cinema de Sérgio
Leone.
Ao longo da trilogia, vemos esse estilo ser cada vez
mais aperfeiçoado, culminando, em Três
Homens em Conflito, com uma grandiosidade que aproxima
a estrutura dos filmes de Leone daquela das óperas
italianas. Nesse filme, como antes em Por uns Dólares
a Mais, vemos os duelos finais serem encenados em
arenas circulares, como se tais configurassem espetáculos
em si só. E se no clímax de Por uns
Dólares a Mais Leone faz sua construção
espaço-temporal partindo de um objeto (o relógio)
que emite uma sonoridade musical determinante do rítmo
da edição e revela uma relação
passada entre as personagens, uma prévia do que
viria a fazer em Era uma Vez no Oeste com a gaita
de Charles Bronson, é no derradeiro embate entre
os três protagonistas de Três Homens
em Conflito que seu estilo atinge o máximo
da depuração. Durante vários minutos,
nada acontece, sucedendo-se os close-ups e planos
gerais que retratam pequenos gestos, olhares e movimentações
das personagens, como sempre integrados intimamente
à música, até ser disparado o primeiro
tiro, que mata o "mau" (Lee Van Cleef) e o
faz cair direto sobre uma cova, que parecia estar ali
só esperando por ele.
***
Mas não é somente o estilo de Leone que
vai se aperfeiçoando no decorrer dos três
filmes, mas também vão se tornando mais
complexas as relações entre as personagens.
Desde o primeiro filme, o "homem sem nome"
fica caracterizado como alguém que executa um
jogo de manipulação entre lados opostos.
Esse jogo, com o decorrer dos filmes, vai se tornando
cada vez mais complexo, assim como mais complexo vai
ficando o retrato das demais personagens. Em Por
um Punhado de Dólares vemos uma clássica
oposição protagonosta-antagonista entre
Eastwood e Ramon (Gian Maria Volonté), ainda
um vilão nos moldes maniqueístas, mau
por natureza, explicitada na forma covarde como esse
executa a família dos Baxter. Por uns Dólares
a Mais estabelece duas formas de jogo, uma entre
Eastwood e Mortimer, ao mesmo tempo rivais e parceiros,
por razões distintas, como será revelado
ao fim da fita, no objetivo comum de obter a recompensa
pela prisão de Indio (também Volonté).
O outro jogo, é ainda o da oposição
entre os dois caçadores de recompensa e o chefe
dos bandidos, que aqui já apresenta um contorno
psicológico até certo ponto ambíguo
e motivações mais definidas.
Em Três Homens em Conflito todo o jogo
já fica caracterizado pelo título em português.
Há, em ao menos um único momento do filme,
algum tipo de relação estabelecida entre
dois dos três homens que têm por objetivo
encontrar um tesouro enterrado em um cemitério.
Sim, o filme prioriza a relação Tuco,
o "feio" (Eli Wallach) – Lourinho , o "bom"
(Eastwood), uma eterna brincadeira de gato e rato na
qual se alternam cumplicidades e traições,
numa visão diversa da parceria forçada,
porém até certo ponto ética, formada
entre os dois caçadores de recompensa no segundo
filme. Mas estes não somente formam uma oposição
entre si, mas também uma oposição
entre cada um deles e Sentenza, o "mau". Mas
os três não estão alinhados em dois
lados opostos; na verdade é cada um por si, como
vemos quando as personagens se dispõem como vértices
de um triângulo no duelo final. Tuco e Lourinho
são obrigados a trabalhar juntos muito mais por
força das circunstâncias. E se Sentenza
é um homem de extrema crueldade, o é também
por motivações e ambições
explícitas, não por ser apenas um vilão
desalmado. Por sinal um retrato mais multifacetado de
Sentenza foi sacrificado na versão distribuída
internacionalmente com o corte de uma cena, que ressurge
agora na versão em DVD, onde ele visita um forte
e fica visivelmente abalado com o estado de penúria
dos soldados feridos (o filme se passa durante a guerra
civil americana). Mas em se tratando de personagem multifacetada,
a grande figura de Três Homens em Conflito
é mesmo Tuco. Numa atuação
antológica de Wallach, Tuco inova no retrato
da figura do bandoleiro mexicano, tradicionalmente apresentado
pelo cinema americano como uma figura ou deveras abobalhada
ou de uma maldade inata. Tuco é antes de tudo
um sobrevivente que age sempre com extrema esperteza
e perspicácia, bandido por força das circunstâncias,
como fica claro quando ele reencontra o irmão
padre, que, segundo ele, abraçou a religião
por não ter peito de partir para uma vida de
delitos.
***
Finalizando, vale a pena destacar a maneira gradativa
como, a medida que evoluem os filmes da trilogia, Leone
vai pouco a pouco penetrando no território e
na realidade dos EUA. Em Por um Punhado de Dólares
a ação ainda transcorre aquém das
fronteiras norte-americanas, em uma aldeia mexicana.
Em sua primeira incursão no faroeste, o diretor
parece ainda tímido em invadir uma terra que
pode, ao mesmo tempo, lhe parecer familiar e estranha.
A travessia do Rio Grande já é feita em
Por uns Dólares a Mais, passado no Texas,
cenário recorrente de westerns, mas de
natureza francamente mestiça e fronteiriça,
uma vez que fora originalmente integrante do território
mexicano. Três Homens em Conflito marca
uma exploração geográfica mais
intensa. Apesar de poucas referências espaciais,
algumas delas ao Texas e ao Novo México, as personagens
estão em constante movimentação
por um Sul devastado pela guerra. Além, portanto,
de uma consistente ambientação territorial,
fica marcada uma ambientação histórica,
de um episódio que é sempre lembrado de
forma romanceada, pelo marcante E o Vento Levou...,
obra, por sinal, admirada por Leone, que sempre desejou
refilmá-la. Certamente a seu modo, de uma maneira
isenta de romance e heroismo, reforçando a visão
crítica de um combate fraticida. Em Três
Homens em Conflito temos o oficial do exército
nortista que apresenta a Lourinho e Tuco a frente de
batalha junto à ponte em um comovente monólogo
no qual a personagem parece servir de porta voz de Leone
em sua visão particular sobre a insanidade. Não
gratuitamente, um fragmento deste monólogo, onde
o oficial destaca que somente homens dopados pelo álcool
conseguiriam entrar num combate tão sangrento
e irracional, fora também cortado na distribuição
internacional. Só para lembrar, o filme é
de 1966 e já decorria, então, a Guerra
do Vietnã.
É desta forma que Leone parte, ao fim da trilogia,
de uma América real e geograficamente definida,
para, a partir de Era uma Vez no Oeste, construir
a sua nova América, mítica e grandiosa.
Mais que isso, quando Clint Eastwood parte solitariamente
pelo deserto, segue levando para o cinema, a América
e o mundo a herança indelével de Sergio
Leone. Seja em suas futuras personagens, como Coogan
ou Dirty Harry, que incorporariam para sempre toda uma
ética particular vinda do "homem sem nome",
mas também em sua carreira de diretor, que não
tardaria a parear com o brilhantismo e a genialidade
de seu mestre. O cinema, em especial o de faroeste,
vide por exemplo Sam Peckimpah e a obra-prima Meu
Ódio Será Sua Herança (1969),
jamais seria o mesmo. E uma prova irrefutável
da manutenção do universo de Leone, consolidado
ao longo da "trilogia dos dólares",
no imaginário coletivo está na estranha
coincidência de, terminando de redigir este texto
junto à TV ligada, surgir na tela um comercial
de automóvel com imagens, edição
e música totalmente inspirados em ninguém
mais que Sergio Leone.
Gilberto Silva Jr.
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