QUASE DOIS IRMÃOS
Lucia Murat, Brasil, 2004

O mote de Quase Dois Irmãos é a junção de um conceito sociológico (o da "Cidade Partida", cunhado por Zuenir Ventura para definir as relações entre asfalto e favela no Rio de Janeiro) com um fato histórico, que abre o filme numa cartela de texto: a presença simultânea e no mesmo pavilhão de criminosos comuns e presos políticos na cadeia de Ilha Grande no início dos anos 70. A partir destes dois pontos de saída, Lucia Murat tenta urdir uma história ficcional que una dois personagens em três momentos históricos diferentes (fim dos anos 50, início dos 70, e a atualidade) traçando um retrato das relações de classe em uma grande cidade do país.

Projeto cheio de boas intenções, Quase Dois Irmãos sofre justamente dos resultados de suas ambições desmedidas: ao querer traçar este retrato acima descrito, abraça mais do que tem condições de resolver, e sua ficção fica refém de uma tese sociologizante de entendimento das relações históricas entre classes (e, porque não dizer, raças). Neste processo, quem sofre são as personagens, que perdem todas as suas possibilidades de individualização, tornando-se marionetes de comprovação destas teses. Verdadeiras figuras metonímicas, ficam muito claramente sendo usados, como partes que são, para provar o todo. Assim, seja o garoto que se apaixona pelo samba proveniente das classes baixas, seja os presos políticos (um deles tem um gato chamado Trotski, vejam só), seja o senador que quer aprovar um "centro cultural para a comunidade", seja a "branquinha que quer dar para o bandidão" (a personagem é assim definida no próprio filme, em inesperado e aparentemente involuntário impulso auto-crítico), todos em Quase Dois Irmãos parecem ter apenas uma função: se enquadrar num discurso que os ultrapassa.

Um plano do filme (em operação também metonímica) serve de exemplo ideal: quando a filha do senador transa com o traficante, logo a câmera e o foco abandonam seus corpos como centro de atenção, e passam para a janela, que tem ao fundo os barracos da favela. Ou seja: em uma cena de sexo, passa a importar menos o encontro dos desejos, dos corpos e das subjetividades envolvidas, e sim o fato de serem os corpos de uma filha de senador com o de um traficante se encontrando dentro de uma favela. Os personagens são então quase uma desculpa, como pode ser evidenciado por este movimento de câmera e passagem de foco, para uma tese - e não objetos autônomos. Como resultado desta opção, muito pouca vida é respirada pelas personagens do filme (com a honrosa exceção do trabalho de ator de Flavio Bauraqui, que cisma em injetar vitalidade em todas as suas aparições, cisma em ser personagem vivo em relação aos títeres da narrativa que o cercam - oposto exato das esquematíssimas figuras que Antonio Pompêo e Werner Schünemann interpretam).

Não é nunca papel do crítico dizer que filme o(a) cineasta deveria ter feito, e sim analisar aquele que lhe é apresentado. No entanto, é impossível não afirmar que Quase Dois Irmãos seria um filme muito melhor se, pelo menos, abrisse mão de suas banais incursões historicizantes ou contemporâneas. Ou seja: se ao invés de tentar seu "jogo triplo", simplesmente se ativesse com mais tempo, atenção e carinho a dar a palavra para os personagens na prisão da Ilha Grande. Além de Lucia Murat não ser cineasta de primeira viagem, sua história pessoal prova sua intimidade com o tema das prisões políticas, e assim ela reconhece e dá premência a esta narrativa central. No entanto, era caso de se pedir mais do que isso: as entradas do passado (sempre cercado de um não-explicado artificialismo de encenação e ambiência, de uma solenidade engessante) e das cenas atuais (todas elas nunca passando ou do mais repetitivo retrato clichê hiperrealista pós-Cidade de Deus da marginalidade das favelas cariocas, ou de um tedioso clima de debate televisivo sociológico nas conversas do senador com o traficante preso) servem apenas para tentar dar "estofo" para o que acontece na prisão.

Só que o efeito é exatamente oposto: enquanto esta sequência de acontecimentos por si mesma poderia adquirir vida própria e trazer um olhar efetivamente novo e engajante ao espectador, ela acaba sendo sufocada pelas suas relações "históricas" ou seus efeitos no "presente". Os personagens dos anos 70 não precisavam de forma alguma, por exemplo, serem os mesmos das outras partes. Mas como se deseja que assim o sejam para que possam ganhar estatuto de "metáforas vivas" das relações sociais cariocas, eles acabam tornados pouco mais do que símbolos de uma história social de relações. E, como símbolos que são, não conseguem adquirir significado outro que não o desejado para eles cena após cena pelos seus criadores - aprisionados não só na tela, mas principalmente por esta ordem narrativa.

Uma opção estética de Quase Dois Irmãos acaba oferecendo a comparação que mais ajuda a explicar seu resultado final: o uso de tons diferentes na fotografia do filme para cada uma das três partes lembra muito (ainda que menos saturado) o efeito obtido por Steven Soderbergh em Traffic. E, no fundo, é dos mesmos pecados do filme do americano que sofre o de Murat: se Soderbergh objetiva fazer um "retrato completo" do panorama do tráfico internacional de drogas (do produtor ao consumidor, por assim dizer), Murat faz o mesmo aqui num painel sócio-histórico. Ambos são esforços totalizadores de compreensão de realidades - só que estas cismam em escapar destas tentativas de tecer teses completas. E, assim como no filme de Soderbergh, Quase Dois Irmãos sobrevive na tela apenas de espasmos de momentos genuinamente belos (reafirmando que boa parte deles vindo de Bauraqui), uma vez que o todo que tenta torná-lo uno não parece respirar por muito tempo (tanto que as cenas da década de 50, por exemplo, são quase esquecidas na narrativa, parecendo um resto de algo que não se concretizou). É uma pena, porque ali no meio parecia haver um belo filme em algum lugar, mais especificamente nos olhos de Bauraqui.

Eduardo Valente