O TERMINAL
Steven Spielberg, The terminal, EUA, 2004

O novo filme de Steven Spielberg começa parecendo um grande pedido de desculpas, um mea culpa norte-americano (vindo de seu filho cinematográfico mais dileto em renome internacional) com o resto do mundo. Primeiro vemos filas enormes de imigração amontoando visitantes nos aeroportos norte-americanos, situação mais contemporânea impossível. Nesta sequência de abertura, Spielberg exibe toda sua destreza de linguagem para colocar o espectador como uma daquelas pessoas presas nas filas e nas perguntas, no “ser ou não aceito” pela América. Depois, operação ainda mais avançada, ele pega o mais autêntico ideal de herói norte-americano do cinema atual, a encarnação do common man, Tom Hanks, e o coloca como o estrangeiro que é pego pela burocracia do sistema oficial. Parece querer dizer: “estão vendo, nós entendemos como vocês se sentem, mesmo nosso maior ícone Tom Hanks poderia sofrer do mesmo que vocês”. Finalmente, quando surge a figura do chefe de segurança do aeroporto fica completo o quadro: o homem que, em posição de poder, abusa deste por idéias e veleidades muitas vezes absolutamente pessoais, indo contra a boa vontade e os ideais inerentes à grande América (num certo momento o superior em processo de aposentadoria diz que ele está indo contra “as bases do nosso país”). A comparação com George W. Bush é tão mais óbvia quanto impossível de não mencionar. Há um outro momento em que Spielberg parece pegar ainda mais pesado, que é quando o seu protagonista se vê de fato preso ao terminal do aeroporto (que funciona como inegável microcosmo da América), e perguntado sobre o que poderia fazer ali, recebe como resposta: “Você pode comprar”.

Uau, Spielberg urdindo uma alegoria de “esquerda” sobre os tempos atuais? Não exatamente, não exatamente. Porque se o filme tem essa inegável leitura narrativa, há que se ver o que o diretor vai fazer com ela. Neste sentido, mais na frente duas chaves são importantes para quebrar esta leitura direta. Antes de mais nada o trajeto do personagem de Victor Navorski, que parece uma bizarra mistura de duas personas anteriores de Hanks (não por acaso em dois filmes do mais bem-sucedido “filhote” de Spielberg, Robert Zemeckis) – o “náufrago” isolado construindo um lar na sua “ilha”, sobrevivendo por conta de suas habilidades; e Forrest Gump, o idiota apolítico e simpático. Só que aqui toda a condição de idiota é dada exatamente por aquilo que o filme parece querer exaltar: sua condição de estrangeiro. Navorski é colocado perante a platéia na posição do “bobo-alegre simpático”, exatamente como Gump: despolitizado (afinal, o que ele acha do golpe de estado que inviabiliza sua nacionalidade “krakhoziana”??), incapacitado de articular idéias e pensamentos levemente mais avançados (o que é a princípio ligado ao domínio da língua, mas logo que esta barreira é ultrapassada, mantém-se a idiotia). Navorski começa, então, a estabelecer uma comunidade com outros “excluídos” do aeroporto – na maioria imigrantes. O que em Tim Burton ou John Carpenter poderia se configurar num instigante elogio aos “outsiders”, em Spielberg é tão-somente tornar os excluídos figuras folclóricas, que precisam do olhar condescendente do sistema para continuar operando. Acima de tudo, em se tratando de Spielberg, trata-se de infantilizar as figuras, seus protagonistas e todas as suas operações com o mundo. E é aí é que o Gump-náufrago vai lentamente se revelando ET (não custa lembrar que a expressão americana para o imigrante ilegal é “illegal alien”), e embora ele não tente telefonar, no final surge a frase: “I’m going home”.

A segunda chave de leitura se refere ao “objetivo secreto” que leva Navorski a querer entrar em Nova York, revelado apenas na meia-hora final. A primeira coisa a se observar sobre este objetivo é a repetição da obsessão spielberguiana por natureza: a figura do pai. Assim, surge novamente o pai como um fantasma que assombra a existência do filho – ou seja, o motor do filme é antes psicanalítico do que político. Em seguida, vem a filmagem da América quando o homem finalmente consegue sair do aeroporto. Spielberg reafirma, então, a boa América, aquela que faz com que “krakhozianos” do mundo inteiro desejem cruzar o mundo e enfrentar os labirintos da burocracia estatal para vivenciá-la nem que seja brevemente – a "boa América" aqui encarnada na sua música, no jazz. Com isso, ressurge com toda força o sonho americano como ideal válido para o mundo todo, e com isso a imagem final da Broadway vista pela janela do táxi ganha estatuto duplo de enorme confusão: se lido pelo recém-apresentado no filme, trata-se do sonho americano idealizado na abundância econômico-cultural; no entanto o mar de logomarcas de Times Square e os prédios enormes e modernos também surgem como monstros deformados deste sonho. E, embora a segunda visão pareça preponderante ao espectador, não parece ser a de Spielberg, ou principalmente, a de Navorski. Fica para nós a dúvida: afinal, ele vai ou não comprar no aeroporto, antes de voltar a Krakhozia, a camiseta de “I love NY”??

Ainda que seja imprescindível dar conta de algumas dessas questões sobre o filme, assim como poderíamos discutir muito o estatuto das imagens num filme onde abundam TVs e câmeras por todo o lado, o fato é que talvez a mais interessante discussão acerca de O Terminal não seja nenhuma destas e sim uma que fala diretamente sobre a origem da história que conta - como se sabe, o filme é baseado na vida de um homem que mora há anos no terminal do aeroporto Charles de Gaulle em Paris. Pois bem, talvez o que mais nos ensine sobre Spielberg, principalmente como ícone mundial do “grande cinema americano” é a complexa operação de pegar essa história e transformar no seu filme. Porque, no final das contas, a história do homem preso no terminal do aeroporto é, antes de tudo, a história de um não-personagem envolvido na ausência completa de ação. Como transformar isso em ação, em um “filme de verão” - essencialmente norte-americano não só em temas e obsessões (como vimos acima), mas em termos de estrutura dramática-visual? É este embate que chama a atenção o filme inteiro: a quantidade de fios, numa conjunção de elementos narrativos e de linguagem cinematográfica, que o mestre-titereiro Spielberg precisa mover para negar o estatuto inicial (eminentemente existencial) desta história e montar então seu filme. Uma primeira operação que impressiona é a da transformação do terminal onde o personagem mora em uma “ilha deserta” à la Robinson Crusoe – ou seja, o banal é tornado “mágico”. Também chama a atenção o trabalho fluido e em constante movimento das câmeras de Spielberg, especialmente as que sobrevoam a parte mais comercial do aeroporto, impedindo a repetição, a inação.

Mas é na urdidura do roteiro que mais chama a atenção este conflito entre narratividade e falta de ação. Incapaz de conseguir tornar o personagem por si mesmo em vida cinematográfica, Spielberg apela para os dois principais elementos constituidores de uma narrativa clássica entendida da forma mais banal: um conflito (onde surge um vilão, o personagem de Stanley Tucci) e um interesse romântico (com Catherine Zeta-Jones – numa historieta particularmente infantilizada, que em muito lembra aliás os romances platônicos de Didi Mocó nos velhos filmes dos Trapalhões). Nenhum dos dois fios de história consegue ser mais do que uma desculpa para ganhar o interesse do público, areia jogada nos olhos para disfarçar a inexistência de uma narrativa de fato: todas as cenas com estes personagens soam forçadas, desinteressadas. Para ganhar tempo entre elas, então, Spielberg vai criando uma série de pequenos dramas, pequenos mini-filmes, que se estruturam exatamente como tal, isolados: “a busca por trabalho”, “a busca por comida”, “a tentativa de juntar o funcionário da empresa de comida com a policial de alfândega”. Estes filminhos vão sendo deixados de lado para a entrada dos próximos, sem criar uma consequência de fato, apenas passando o tempo (onde se destaque o quão bizarra soa depois a volta ao assunto do casamento da policial com o funcionário, a esta altura assunto esquecido pelo filme por mais de uma hora).

Se Spielberg é bem sucedido no seu lance de mágico? Pode ser que sim, pelos olhos de um grande público, afinal ninguém duvida do domínio do cineasta sobre este. Porém, para os mais atentos, o interessante é observar menos o resultado e mais o processo em si, pois é da batalha de um sistema de produção de narrativas com o impalpável da vida real que vem o maior fascínio por mais esta obra bizarra deste cineasta já prodigioso em estranhezas. O Terminal é, antes de tudo, a comprovação de que, quão mais perto do “entretenimento puro” Spielberg chega, mais “cineasta-problema” ele se revela. Por isso é que seus filmes não cessam de nos interessar, senão tão frequentemente (Prenda-me se for Capaz é a exceção recente) fascinar.

Eduardo Valente