É
inevitável ter uma impressão diferente
hoje em relação a Olhos Abertos
da que se teria diante dele per se, à
época de seu lançamento. Não há
como não enxergar nele indicativos do que se
tornaria o cinema de M. Night Shyamalan. Por ser um
filme praticamente inaugural (é seu segundo longa-metragem),
aliás, é possível ver nele os traços
originários, aqueles que se mantiveram e, por
isso mesmo, um tanto arqueologicamente, podem ser anotados
como os "essenciais" em certo sentido. Por isso mesmo,
é interessante olhar para o filme e, filmografia
do diretor nas mãos, constatar o tom conotativo
de seu cinema: Shyamalan é um diretor de "moral
da história". Seu cinema, e isso fica muito mais
desnudado em Olhos Abertos, tem um interesse
ideológico, religioso e pedagógico, quase
didático, no que diz respeito à transcendência.
O que poderia parecer o uso de um traço orientalista
como sustentação para um forte desejo
estrutural e construtivo/desconstrutivo, com este filme
se revela o contrário: desde sempre, ele usa
tramas para simbolizar preocupações interiorizantes,
mais do que usa um certo existencialismo para lhe permitir
costurar suas histórias. Parece nem ser tanto
o cinema o que lhe interessa aqui quanto a possibilidade
que ele lhe oferece de dizer algo que preocupa o diretor
neste filme (e, em todos os seus outros, se se despirem
esses outros trabalhos do arcabouço ilusionista
- no bom sentido).
Sua preocupação com a família,
sobretudo com a relação pai-filho (no
caso deste filme, na forma da relação
avô-neto, mas sempre como manifestação
da relação entre a criança em formação
e o adulto que lhe serve de espelho em casa) - que seria
retomada em O Sexto Sentido, Corpo Fechado,
Sinais e A Vila - é um dos temas
morais que se revelam por trás de sua maneira
envolvente de desmentir a própria realidade tal
como é apresentada diante dos olhos.
Esse procedimento, explorado mais longamente em texto
desta mesma edição, aqui ganha uma
forma mais simples, mais esquemática: um menino
cujo avô faleceu se depara com o desafio da compreensão
da morte e, com ele, com a idéia de um prosseguimento
da vida após ela, e com o questionamento sobre
a lógica e a justiça universais que, invariavelmente,
conduzem a um debate sobre a existência ou não
de Deus. Pois eis que o pequeno herói se bate
em uma missão de busca do todo-poderoso. Quer
saber se o pai de sua mãe está bem, esteja
onde estiver. Para tanto, mergulha em peripécias
(o filme parece ter sido estruturado por uma dialética
entre o cômico e o trágico, de forma que
sempre a um recuo de memória que remete à
dor da perda se siga uma situação inusitada
da rotina infantil que remeta à alegria da infância).
Mas eis que o filme, como se tornará um padrão
na obra do diretor, depende de uma revelação,
uma revelação consubstanciada na própria
estrutura do filme. Para ele, é sempre preciso
que nada daquilo que se estava vendo fosse de fato verdade.
Um filme de Shyamalan é constantemente uma operação
de desmentido: ou do que se vê, ou do se pensa
que se vê ou daquilo que se pensa que está
por trás daquilo que se vê (o caso específico
de Sinais). Neste filme, reiterando, isso é
feito de forma menos definitiva, embora nem por isso
mais sutil. Shyamalan tem algo a dizer com o filme e
diz, ponto: há um Deus. Há esperança
na transcendência, há uma paz eterna. Para
isso, constrói sistemas em que o tempo se torna
títere nas mãos da imagem.
O que separa Olhos Abertos dos filmes posteriores
do diretor, entretanto, é justamente a pouca
sutileza com que ele administra esse desejo pedagógico.
Seu filme, ao final, soa como um filme religioso - feito
com a técnica e a "qualidade" literária
de um cinema mainstream e até certo ponto
desafiador, mas ainda assim um filme interessado. Falta-lhe,
como filme, o desejo de ser um conteúdo em si
antes de ser um continente. O fato de que seus procedimentos
de narração estão simplesmente
a serviço de sua tese não apenas banalizam
o filme como também o remetem para uma certa
estrutura de gênero, de dois gêneros aliás,
que parecem difíceis de dialogar: o de filmes
de escola - tradicionalmente associados à problemática
da disciplina e da libertação diante da
disciplina - e o de filmes religiosos, que costumam
tolerar (e, em alguns casos até defender) a disciplina.
Até por conta disso, soa curiosa a revelação
angelical do final do filme. Deslocada da lógica
do filme até então - embora anunciada
pelas "aparições" anteriores - , ela dá
uma mensagem clara: não é a história
que conduz às conclusões, é simplesmente
a verdade e ponto. O percurso do menino o conduz para
uma conclusão lógica sobre a impossibilidade
da existência de Deus. Mas, como parece querer
proclamar o diretor, não é de lógica
que se trata, mas da Verdade. E esta está para
além dos fatos. Nesse sentido, o filme cai por
terra: vira um grande prefácio, para sustentar
a cena final. É um procedimento que já
alimentou muitos grandes filmes, mas em nenhum deles,
essa operação de retroalimentação
era operada na última seqüência pelo
desmentido da obra até então.
Alexandre Werneck
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