OLHOS ABERTOS
M. Night Shyamalan, Wide Awake, EUA, 1998

É inevitável ter uma impressão diferente hoje em relação a Olhos Abertos da que se teria diante dele per se, à época de seu lançamento. Não há como não enxergar nele indicativos do que se tornaria o cinema de M. Night Shyamalan. Por ser um filme praticamente inaugural (é seu segundo longa-metragem), aliás, é possível ver nele os traços originários, aqueles que se mantiveram e, por isso mesmo, um tanto arqueologicamente, podem ser anotados como os "essenciais" em certo sentido. Por isso mesmo, é interessante olhar para o filme e, filmografia do diretor nas mãos, constatar o tom conotativo de seu cinema: Shyamalan é um diretor de "moral da história". Seu cinema, e isso fica muito mais desnudado em Olhos Abertos, tem um interesse ideológico, religioso e pedagógico, quase didático, no que diz respeito à transcendência. O que poderia parecer o uso de um traço orientalista como sustentação para um forte desejo estrutural e construtivo/desconstrutivo, com este filme se revela o contrário: desde sempre, ele usa tramas para simbolizar preocupações interiorizantes, mais do que usa um certo existencialismo para lhe permitir costurar suas histórias. Parece nem ser tanto o cinema o que lhe interessa aqui quanto a possibilidade que ele lhe oferece de dizer algo que preocupa o diretor neste filme (e, em todos os seus outros, se se despirem esses outros trabalhos do arcabouço ilusionista - no bom sentido).

Sua preocupação com a família, sobretudo com a relação pai-filho (no caso deste filme, na forma da relação avô-neto, mas sempre como manifestação da relação entre a criança em formação e o adulto que lhe serve de espelho em casa) - que seria retomada em O Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais e A Vila - é um dos temas morais que se revelam por trás de sua maneira envolvente de desmentir a própria realidade tal como é apresentada diante dos olhos.

Esse procedimento, explorado mais longamente em texto desta mesma edição, aqui ganha uma forma mais simples, mais esquemática: um menino cujo avô faleceu se depara com o desafio da compreensão da morte e, com ele, com a idéia de um prosseguimento da vida após ela, e com o questionamento sobre a lógica e a justiça universais que, invariavelmente, conduzem a um debate sobre a existência ou não de Deus. Pois eis que o pequeno herói se bate em uma missão de busca do todo-poderoso. Quer saber se o pai de sua mãe está bem, esteja onde estiver. Para tanto, mergulha em peripécias (o filme parece ter sido estruturado por uma dialética entre o cômico e o trágico, de forma que sempre a um recuo de memória que remete à dor da perda se siga uma situação inusitada da rotina infantil que remeta à alegria da infância).

Mas eis que o filme, como se tornará um padrão na obra do diretor, depende de uma revelação, uma revelação consubstanciada na própria estrutura do filme. Para ele, é sempre preciso que nada daquilo que se estava vendo fosse de fato verdade. Um filme de Shyamalan é constantemente uma operação de desmentido: ou do que se vê, ou do se pensa que se vê ou daquilo que se pensa que está por trás daquilo que se vê (o caso específico de Sinais). Neste filme, reiterando, isso é feito de forma menos definitiva, embora nem por isso mais sutil. Shyamalan tem algo a dizer com o filme e diz, ponto: há um Deus. Há esperança na transcendência, há uma paz eterna. Para isso, constrói sistemas em que o tempo se torna títere nas mãos da imagem.

O que separa Olhos Abertos dos filmes posteriores do diretor, entretanto, é justamente a pouca sutileza com que ele administra esse desejo pedagógico. Seu filme, ao final, soa como um filme religioso - feito com a técnica e a "qualidade" literária de um cinema mainstream e até certo ponto desafiador, mas ainda assim um filme interessado. Falta-lhe, como filme, o desejo de ser um conteúdo em si antes de ser um continente. O fato de que seus procedimentos de narração estão simplesmente a serviço de sua tese não apenas banalizam o filme como também o remetem para uma certa estrutura de gênero, de dois gêneros aliás, que parecem difíceis de dialogar: o de filmes de escola - tradicionalmente associados à problemática da disciplina e da libertação diante da disciplina - e o de filmes religiosos, que costumam tolerar (e, em alguns casos até defender) a disciplina.

Até por conta disso, soa curiosa a revelação angelical do final do filme. Deslocada da lógica do filme até então - embora anunciada pelas "aparições" anteriores - , ela dá uma mensagem clara: não é a história que conduz às conclusões, é simplesmente a verdade e ponto. O percurso do menino o conduz para uma conclusão lógica sobre a impossibilidade da existência de Deus. Mas, como parece querer proclamar o diretor, não é de lógica que se trata, mas da Verdade. E esta está para além dos fatos. Nesse sentido, o filme cai por terra: vira um grande prefácio, para sustentar a cena final. É um procedimento que já alimentou muitos grandes filmes, mas em nenhum deles, essa operação de retroalimentação era operada na última seqüência pelo desmentido da obra até então.


Alexandre Werneck