O
quê (a guisa de sinopse): Oh! Homem é
um filme de found footage (filme em que os diretores
trabalham ressignificando material filmado por outros)
sobre a Primeira Guerra Mundial. O filme é o
terceiro de uma trilogia, e consiste em mostrar não
as imagens de batalha, mas o efeito delas sobre o corpo
humano. O filme, depois de um breve prólogo,
se estrutura em três partes, assim chamadas:
1) O corpo das crianças, Áustria 1919;
2) O Corpo das crianças, Rússia 1921;
3) O corpo dos soldados. São imagens de mutilados
de guerra, de crianças subnutridas ou tornadas
loucas ou débeis mentais pela guerra, de soldados
que perderam a parte inferior da mandíbula, ou
o braço, ou a perna, etc. Depois, vemos o esforço
da tecnologia biomecânica do começo do
século XX em criar próteses para suprir,
na medida do possível, a parte do corpo perdida.
Não há narração, só
silêncio ou música. Gianikian e Ricci-Lucchi
utilizam a câmera lenta generalizada, em todos
os planos do filme, como espécie de processo
poético-analítico de compreensão
das imagens que mostram, retirando-as do contexto de
registro científico em que elas foram inicialmente
filmadas e trazendo, com o nome do filme e com a epígrafe
("Homem, como te sentes pela tua espécie?/És
tu tão sábio quanto pensas?/Essas coisas
são feitas por homens?", Leonardo da Vinci),
um desvirtuamento e uma recontextualização
que coloca o corpo humano em primeiro lugar, e considera
os efeitos da guerra sobre ele como o intolerável.
Quem: Yervant Gianikian e Angela Ricci-Lucchi são
realizadores de filmes de found footage desde
1975, quando começaram a tingir e retrabalhar
imagens de filmes de sua própria coleção,
mormente os filmes de um pioneiro chamado Luca Comerio,
espécie de obsessão dos cineastas, que
eles referenciam num artigo escrito para a 50ª
edição da revista francesa Trafic com
notas da feitura deste Oh! Uomo. Foi só
depois de Oh! Uomo ter sido exibido na Quinzena
dos Realizadores do Festival de Cannes de 2004 que o
trabalho de Gianikian e Ricci-Lucchi ganhou destaque,
entrando no circuito dos festivais e recebendo elogiosas
matérias em jornais. A filmografia mais completa
do casal de cineastas se encontra aqui
e os filmes da trilogia que precedem Oh! Homem
são Prisioneiros de Guerra (1995) e Nas
Alturas Tudo É Paz (1998). Não custa
dizer, nenhum até hoje passou no Brasil, e desde
já se faz necessária uma retrospectiva,
mesmo que parcial, da obra do casal.
Como: O silêncio e a música têm efeitos
fundamentais e complementares em Oh! Homem. Eles
exercem uma função dinâmica, fazem
o tempo todo com que a banda de som não seja
uma espécie de ladainha (ou sempre silêncio,
ou sempre música) que serve para acompanhar o
filme, mas um elemento a mais de perspectivar a imagem
que está se vendo e não deixar o espectador
estabilizar sua fruição (com o silêncio
e depois a música e depois o silêncio ele
é obrigado a se reorganizar novamente). A câmera
lenta faz das imagens um objeto estranho, faz com que
elas sempre pareçam ganhar um ar de ponto de
interrogação, faz com que nos questionemos
a todo instante quem produziu aquelas imagens, com que
intento, a partir de que estratégia e de que
desejo, que utopia? Essa estratégia de "câmera
analítica" operada por Gianikian e Ricci-Lucchi
vai no sentido inverso de uma outra câmera analítica,
que a princípio utilizaria as imagens dos deformados
e aleijados em campos de batalha como espécie
de catálogos de deformação do corpo
humano, e de como a ciência poderia operar maravilhas
substituindo os ausentes membros verdadeiros dos aleijados
por membros protéticos que lhes garantiriam uma
sobrevida mais aprazível e útil à
sociedade. Elas mostram, antes, como existe uma máquina
de guerra para desamparar os corpos, e como depois essa
mesma máquina funciona reparando os corpos e
proclamando sua eficácia técnica. Manipulado
até a destruição, aqui o corpo
é remanipulado até a melhor reconstrução
possível.
Significação política: As guerras
de hoje continuam produzindo imagens de homens deformados,
mortos, esquartejados, braços sem troncos, cabeças
sem corpo. Essas imagens, naturalmente, não fazem
o noticiário diário. A guerra aparece
em grafos, entrevistas coletivas, distantes tomadas
dos prédios da cidade ou em cabeças de
jornalistas. São imagens sem corpo (de uma forma
geral, pode-se dizer que noticiar hoje é tirar
o corpo), onde pode-se falar sobre aquilo que afeta
o corpo, mas onde o corpo não pode aparecer sendo
afetado. Mostrar o contra-plano disso, mostrar pessoas
deformadas pela guerra, é uma espécie
de obrigação de cidadania visual, o plano
de resposta à evidência da guerra, a excrescência
provocada pela beligerância. Por trás de
toda espécie de manipulação, um
corpo resiste. Um corpo pode ser jogado de um lugar
para outro, pode ser conduzido a fazer ações
que não gostaria de fazer, pode ser retalhado
ou reconstruído, ele permanece sempre um corpo,
sem atributos prévios, ou podendo não
se adequar exatamente àquilo que se esperava
dele. Um corpo que sorri sem mandíbula para a
câmera, que mostra um teatrinho para ela, que
testa uma perna de madeira em frente a ela, ele será
sempre um corpo que resiste à máquina,
que não consegue ser inteiramente destruído
por ela, nem tampouco recomposto. Porque esse corpo
é um corpo que sente. E a sentimentos perdidos
não se substituem próteses. Cada homem
é o que sente, e é o sentimento que não
entra na equação da máquina militarista.
Um corpo mostra que um homem é só um homem.
Oh! Só um homem.
Ruy Gardnier
|