OH! HOMEM
Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, Oh! Uomo, Itália, 2004

O quê (a guisa de sinopse): Oh! Homem é um filme de found footage (filme em que os diretores trabalham ressignificando material filmado por outros) sobre a Primeira Guerra Mundial. O filme é o terceiro de uma trilogia, e consiste em mostrar não as imagens de batalha, mas o efeito delas sobre o corpo humano. O filme, depois de um breve prólogo, se estrutura em três partes, assim chamadas: 1) O corpo das crianças, Áustria 1919; 2) O Corpo das crianças, Rússia 1921; 3) O corpo dos soldados. São imagens de mutilados de guerra, de crianças subnutridas ou tornadas loucas ou débeis mentais pela guerra, de soldados que perderam a parte inferior da mandíbula, ou o braço, ou a perna, etc. Depois, vemos o esforço da tecnologia biomecânica do começo do século XX em criar próteses para suprir, na medida do possível, a parte do corpo perdida. Não há narração, só silêncio ou música. Gianikian e Ricci-Lucchi utilizam a câmera lenta generalizada, em todos os planos do filme, como espécie de processo poético-analítico de compreensão das imagens que mostram, retirando-as do contexto de registro científico em que elas foram inicialmente filmadas e trazendo, com o nome do filme e com a epígrafe ("Homem, como te sentes pela tua espécie?/És tu tão sábio quanto pensas?/Essas coisas são feitas por homens?", Leonardo da Vinci), um desvirtuamento e uma recontextualização que coloca o corpo humano em primeiro lugar, e considera os efeitos da guerra sobre ele como o intolerável.

Quem: Yervant Gianikian e Angela Ricci-Lucchi são realizadores de filmes de found footage desde 1975, quando começaram a tingir e retrabalhar imagens de filmes de sua própria coleção, mormente os filmes de um pioneiro chamado Luca Comerio, espécie de obsessão dos cineastas, que eles referenciam num artigo escrito para a 50ª edição da revista francesa Trafic com notas da feitura deste Oh! Uomo. Foi só depois de Oh! Uomo ter sido exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2004 que o trabalho de Gianikian e Ricci-Lucchi ganhou destaque, entrando no circuito dos festivais e recebendo elogiosas matérias em jornais. A filmografia mais completa do casal de cineastas se encontra aqui e os filmes da trilogia que precedem Oh! Homem são Prisioneiros de Guerra (1995) e Nas Alturas Tudo É Paz (1998). Não custa dizer, nenhum até hoje passou no Brasil, e desde já se faz necessária uma retrospectiva, mesmo que parcial, da obra do casal.

Como: O silêncio e a música têm efeitos fundamentais e complementares em Oh! Homem. Eles exercem uma função dinâmica, fazem o tempo todo com que a banda de som não seja uma espécie de ladainha (ou sempre silêncio, ou sempre música) que serve para acompanhar o filme, mas um elemento a mais de perspectivar a imagem que está se vendo e não deixar o espectador estabilizar sua fruição (com o silêncio e depois a música e depois o silêncio ele é obrigado a se reorganizar novamente). A câmera lenta faz das imagens um objeto estranho, faz com que elas sempre pareçam ganhar um ar de ponto de interrogação, faz com que nos questionemos a todo instante quem produziu aquelas imagens, com que intento, a partir de que estratégia e de que desejo, que utopia? Essa estratégia de "câmera analítica" operada por Gianikian e Ricci-Lucchi vai no sentido inverso de uma outra câmera analítica, que a princípio utilizaria as imagens dos deformados e aleijados em campos de batalha como espécie de catálogos de deformação do corpo humano, e de como a ciência poderia operar maravilhas substituindo os ausentes membros verdadeiros dos aleijados por membros protéticos que lhes garantiriam uma sobrevida mais aprazível e útil à sociedade. Elas mostram, antes, como existe uma máquina de guerra para desamparar os corpos, e como depois essa mesma máquina funciona reparando os corpos e proclamando sua eficácia técnica. Manipulado até a destruição, aqui o corpo é remanipulado até a melhor reconstrução possível.

Significação política: As guerras de hoje continuam produzindo imagens de homens deformados, mortos, esquartejados, braços sem troncos, cabeças sem corpo. Essas imagens, naturalmente, não fazem o noticiário diário. A guerra aparece em grafos, entrevistas coletivas, distantes tomadas dos prédios da cidade ou em cabeças de jornalistas. São imagens sem corpo (de uma forma geral, pode-se dizer que noticiar hoje é tirar o corpo), onde pode-se falar sobre aquilo que afeta o corpo, mas onde o corpo não pode aparecer sendo afetado. Mostrar o contra-plano disso, mostrar pessoas deformadas pela guerra, é uma espécie de obrigação de cidadania visual, o plano de resposta à evidência da guerra, a excrescência provocada pela beligerância. Por trás de toda espécie de manipulação, um corpo resiste. Um corpo pode ser jogado de um lugar para outro, pode ser conduzido a fazer ações que não gostaria de fazer, pode ser retalhado ou reconstruído, ele permanece sempre um corpo, sem atributos prévios, ou podendo não se adequar exatamente àquilo que se esperava dele. Um corpo que sorri sem mandíbula para a câmera, que mostra um teatrinho para ela, que testa uma perna de madeira em frente a ela, ele será sempre um corpo que resiste à máquina, que não consegue ser inteiramente destruído por ela, nem tampouco recomposto. Porque esse corpo é um corpo que sente. E a sentimentos perdidos não se substituem próteses. Cada homem é o que sente, e é o sentimento que não entra na equação da máquina militarista. Um corpo mostra que um homem é só um homem. Oh! Só um homem.

Ruy Gardnier