Nosferatu - O vampiro da noite
de Werner Herzog, Nosferatu, Phantom der Nacht, 1979, Alemanha / França

Nosferatu, O Vampiro da Noite começa com planos de múmias, aos quais se sucede vôo, em câmera lenta, de morcego. A seguir, tem-se o acordar assustado de Lucy Harker (Isabelle Adjani), socorrida pelo marido, Jonathan (Bruno Ganz), o qual lhe diz que tudo não passou de pesadelo. Nesta adaptação de Bram Stoker, que se filia à imagética criada por F. W. Murnau para o clássico Nosferatu, Sinfonia do Horror (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922), Werner Herzog se posiciona justamente nos limites entre o sonho e a realidade, onde o desespero e a morte são elementos vitais para tratar, por um lado, da impotência e da insatisfação sexual de Lucy e, por outro, da falta de amor que origina o tormento e a solidão de Conde Drácula (Klaus Kinski).

No documentário A Noite dos Cineastas (Die Nacht der Regisseure, 1995, de Edgar Reitz), feito para a BBC em comemoração ao centenário da sétima arte, Werner Herzog - expoente, com Rainer Werner Fassbinder, Alexander Kluge, Win Wenders, Volker Schlondörff, Margarethe von Trotta e Hans-Jürgen Syberberg do Novo Cinema Alemão - explicita a admiração que sente pelo clássico de F. W. Murnau, bem como o desejo de atualiza-lo a partir das impressões deixadas pelo original em sua própria sensibilidade. A comparação entre as versões, porém, apresenta mais diferenças do que semelhanças, pois embora Herzog reproduza as caracterizações do trio protagonista - expressionista para Drácula, naturalista para Jonathan e etérea para Lucy (no filme mudo, chamados respectivamente de Orlock, Hutter e Ellen, devido a problemas com direitos autorais) - , da mesma forma que filma em locações, com cenários reais (e o primeiro Nosferatu alinha-se antes ao kammerspiel, cinema realista, visto em A Última Gargalhada, do que ao expressionismo de O Gabinete do Dr. Caligari, por exemplo), tanto a temática que propõe quanto a narrativa que a desenvolve são bastante diversas das utilizadas por Murnau.

Assim, se Murnau opta pela multiplicidade de narradores - de início, narração em terceira pessoa, que depois se revela de primeira pessoa, as quais se somam as cartas escritas por Hutter e o diário de bordo que conta o ocorrido no navio-fantasma - , Herzog os concentra em Lucy: não apenas os planos que abrem Nosferatu, O Vampiro da Noite remetem ao pesadelo da personagem, como também a primeira aparição de Drácula (e a palavra "aparição" é precisa, visto que Klaus Kinski sempre surge, furtivamente, das sombras e da escuridão, iluminado por trás, com a silhueta em destaque) e a mórbida e surreal festa, em meio a ratos e caixões, na praça da cidade, desolada e decadente, tomada pela peste apontam para os delírios de Lucy, para as perturbações mentais que, já mostradas durante o filme, são complementadas pelo diretor com os cortes que trazem as seqüências de volta ao quarto da protagonista, a qual desperta do sono. Se Murnau fala do conflito entre natureza e cultura, com a figura do vampiro enquanto força sexual selvagem capaz de desestruturar a sociedade, Herzog adapta este conceito ao dos loucos sonhadores e revoltados que permeia sua filmografia: o capitão espanhol que pretende encontrar Eldorado e edificar, no meio da floresta amazônica, novo império por intermédio do incesto com a filha em Aguirre, A Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972); o estrangeiro que deseja construir teatro na selva, mesmo que precise transportar seu navio através de montanhas em Fitzcarraldo (Fitzcarraldo, 1982); o soldado que, transtornado, explode o arsenal o qual deveria proteger em Sinais da Vida (Lebenszeichen, 1968).

Jonathan diz, antes de ir à Transilvânia, que está feliz em se afastar de sua cidade, dos canais cujas águas sempre retornam ao mesmo lugar. Drácula, em consonância ao imortal trágico e solitário interpretado por Gary Oldman em Drácula de Bram Stoker (Bram Stoker’s Drácula, 1992, de Francis Ford Coppola), discursa acerca do sofrimento de ser incapaz de amar. Lucy, por sua vez, expressa-se sobre a necessidade da fé, a qual consiste em crer no irreal. Enquanto Bruno Ganz atravessa os Cárpatos a pé em busca da aventura e do desconhecido (repara que a existência real do castelo de Drácula é posta em dúvida pelos ciganos do local, em outra diluição das fronteiras entre o real e o sonho), Klaus Kinski navega pelo Mar Negro e pelo Mediterrâneo para encontrar sua possível amada (a seqüência do navio-fantasma, intercalada com a volta de Jonathan, com a espera ansiosa de Renfield e com os pressentimentos de Lucy, é quase idêntica a de Murnau, inclusive a chegada do barco, que irrompe de modo aterrorizante pela direita do quadro) e Isabelle Adjani aguarda a vinda de Nosferatu, ser fantasmagórico - e o subtítulo do filme seria mais bem traduzido como "o fantasma da noite" - que pode lhe proporcionar o intercurso e o prazer sexual negados pelo ambiente cientificista em que vive.

Quando Lucy, no princípio de Nosferatu, O Vampiro da Noite, é consolada por Jonathan, eles dormem em camas separadas. O único contato físico entre o casal dá-se na praia: o abraço que, depois, em seu retorno da Transilvânia, será recusado pelo marido. O café da manhã, registrado por Herzog, transmite nada além de respeito mútuo e polidez. O cineasta trabalha tal ausência generalizada de sexo e de paixão sobretudo por meio dos figurinos e da luz: Lucy veste-se imaculadamente de branco (ao contrário de Ellen, sempre de preto na obra de Murnau), o qual se combina ao rosto pálido a fim de conferir-lhe aspecto virginal, reforçado pela iluminação difusa e etérea que a torna pura, intocada e inatingível. Somente a protagonista, por certo, é capaz de salvar tanto Jonathan, semi-morto após a passagem pelos Cárpatos, quanto a cidade, sobre a qual se abate a peste trazida por Drácula e pelo exército de ratos (a duplicidade sexo e morte, a pulsão animal do homem e a força destrutiva que exerce nas estruturas racionais construídas pela sociedade a fim de contê-la), do Mal personificado e simbolizado por Nosferatu. A expressão de gozo da personagem ao ser mordida, no entanto, sugere mais a procura pela satisfação pessoal do que o comprometimento com o bem coletivo, de sorte que o ataque do vampiro representa o ato sexual finalmente concretizado.

Lucy alcança o prazer com que tanto sonhou. Drácula consegue, ao morrer, terminar com a solidão que o afligia. Jonathan, transformando-se no novo Nosferatu, abandona de vez a cidade natal e parte em direção ao horizonte. Com o insuspeito final feliz para o trio principal, Werner Herzog, em Nosferatu, O Vampiro da Noite, assinala a conquista definitiva do asilo pelos louco.

Paulo Ricardo de Almeida