| Nosferatu, 
                          O Vampiro da Noite começa com planos de múmias, 
                          aos quais se sucede vôo, em câmera lenta, 
                          de morcego. A seguir, tem-se o acordar assustado de 
                          Lucy Harker (Isabelle Adjani), socorrida pelo marido, 
                          Jonathan (Bruno Ganz), o qual lhe diz que tudo não 
                          passou de pesadelo. Nesta adaptação de 
                          Bram Stoker, que se filia à imagética 
                          criada por F. W. Murnau para o clássico Nosferatu, 
                          Sinfonia do Horror (Nosferatu, eine Symphonie 
                          des Grauens, 1922), Werner Herzog se posiciona justamente 
                          nos limites entre o sonho e a realidade, onde o desespero 
                          e a morte são elementos vitais para tratar, por 
                          um lado, da impotência e da insatisfação 
                          sexual de Lucy e, por outro, da falta de amor que origina 
                          o tormento e a solidão de Conde Drácula 
                          (Klaus Kinski). No documentário 
                          A Noite dos Cineastas (Die Nacht der Regisseure, 
                          1995, de Edgar Reitz), feito para a BBC em comemoração 
                          ao centenário da sétima arte, Werner Herzog 
                          - expoente, com Rainer Werner Fassbinder, Alexander 
                          Kluge, Win Wenders, Volker Schlondörff, Margarethe 
                          von Trotta e Hans-Jürgen Syberberg do Novo Cinema 
                          Alemão - explicita a admiração 
                          que sente pelo clássico de F. W. Murnau, bem 
                          como o desejo de atualiza-lo a partir das impressões 
                          deixadas pelo original em sua própria sensibilidade. 
                          A comparação entre as versões, 
                          porém, apresenta mais diferenças do que 
                          semelhanças, pois embora Herzog reproduza as 
                          caracterizações do trio protagonista - 
                          expressionista para Drácula, naturalista para 
                          Jonathan e etérea para Lucy (no filme mudo, chamados 
                          respectivamente de Orlock, Hutter e Ellen, devido a 
                          problemas com direitos autorais) - , da mesma forma 
                          que filma em locações, com cenários 
                          reais (e o primeiro Nosferatu alinha-se antes 
                          ao kammerspiel, cinema realista, visto em A Última 
                          Gargalhada, do que ao expressionismo de O Gabinete 
                          do Dr. Caligari, por exemplo), tanto a temática 
                          que propõe quanto a narrativa que a desenvolve 
                          são bastante diversas das utilizadas por Murnau. Assim, se Murnau opta 
                          pela multiplicidade de narradores - de início, 
                          narração em terceira pessoa, que depois 
                          se revela de primeira pessoa, as quais se somam as cartas 
                          escritas por Hutter e o diário de bordo que conta 
                          o ocorrido no navio-fantasma - , Herzog os concentra 
                          em Lucy: não apenas os planos que abrem Nosferatu, 
                          O Vampiro da Noite remetem ao pesadelo da personagem, 
                          como também a primeira aparição 
                          de Drácula (e a palavra "aparição" 
                          é precisa, visto que Klaus Kinski sempre surge, 
                          furtivamente, das sombras e da escuridão, iluminado 
                          por trás, com a silhueta em destaque) e a mórbida 
                          e surreal festa, em meio a ratos e caixões, na 
                          praça da cidade, desolada e decadente, tomada 
                          pela peste apontam para os delírios de Lucy, 
                          para as perturbações mentais que, já 
                          mostradas durante o filme, são complementadas 
                          pelo diretor com os cortes que trazem as seqüências 
                          de volta ao quarto da protagonista, a qual desperta 
                          do sono. Se Murnau fala do conflito entre natureza e 
                          cultura, com a figura do vampiro enquanto força 
                          sexual selvagem capaz de desestruturar a sociedade, 
                          Herzog adapta este conceito ao dos loucos sonhadores 
                          e revoltados que permeia sua filmografia: o capitão 
                          espanhol que pretende encontrar Eldorado e edificar, 
                          no meio da floresta amazônica, novo império 
                          por intermédio do incesto com a filha em Aguirre, 
                          A Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn 
                          Gottes, 1972); o estrangeiro que deseja construir 
                          teatro na selva, mesmo que precise transportar seu navio 
                          através de montanhas em Fitzcarraldo (Fitzcarraldo, 
                          1982); o soldado que, transtornado, explode o arsenal 
                          o qual deveria proteger em Sinais da Vida (Lebenszeichen, 
                          1968). Jonathan diz, antes de 
                          ir à Transilvânia, que está feliz 
                          em se afastar de sua cidade, dos canais cujas águas 
                          sempre retornam ao mesmo lugar. Drácula, em consonância 
                          ao imortal trágico e solitário interpretado 
                          por Gary Oldman em Drácula de Bram Stoker 
                          (Bram Stoker’s Drácula, 1992, de Francis 
                          Ford Coppola), discursa acerca do sofrimento de ser 
                          incapaz de amar. Lucy, por sua vez, expressa-se sobre 
                          a necessidade da fé, a qual consiste em crer 
                          no irreal. Enquanto Bruno Ganz atravessa os Cárpatos 
                          a pé em busca da aventura e do desconhecido (repara 
                          que a existência real do castelo de Drácula 
                          é posta em dúvida pelos ciganos do local, 
                          em outra diluição das fronteiras entre 
                          o real e o sonho), Klaus Kinski navega pelo Mar Negro 
                          e pelo Mediterrâneo para encontrar sua possível 
                          amada (a seqüência do navio-fantasma, intercalada 
                          com a volta de Jonathan, com a espera ansiosa de Renfield 
                          e com os pressentimentos de Lucy, é quase idêntica 
                          a de Murnau, inclusive a chegada do barco, que irrompe 
                          de modo aterrorizante pela direita do quadro) e Isabelle 
                          Adjani aguarda a vinda de Nosferatu, ser fantasmagórico 
                          - e o subtítulo do filme seria mais bem traduzido 
                          como "o fantasma da noite" - que pode lhe 
                          proporcionar o intercurso e o prazer sexual negados 
                          pelo ambiente cientificista em que vive. Quando Lucy, no princípio 
                          de Nosferatu, O Vampiro da Noite, é consolada 
                          por Jonathan, eles dormem em camas separadas. O único 
                          contato físico entre o casal dá-se na 
                          praia: o abraço que, depois, em seu retorno da 
                          Transilvânia, será recusado pelo marido. 
                          O café da manhã, registrado por Herzog, 
                          transmite nada além de respeito mútuo 
                          e polidez. O cineasta trabalha tal ausência generalizada 
                          de sexo e de paixão sobretudo por meio dos figurinos 
                          e da luz: Lucy veste-se imaculadamente de branco (ao 
                          contrário de Ellen, sempre de preto na obra de 
                          Murnau), o qual se combina ao rosto pálido a 
                          fim de conferir-lhe aspecto virginal, reforçado 
                          pela iluminação difusa e etérea 
                          que a torna pura, intocada e inatingível. Somente 
                          a protagonista, por certo, é capaz de salvar 
                          tanto Jonathan, semi-morto após a passagem pelos 
                          Cárpatos, quanto a cidade, sobre a qual se abate 
                          a peste trazida por Drácula e pelo exército 
                          de ratos (a duplicidade sexo e morte, a pulsão 
                          animal do homem e a força destrutiva que exerce 
                          nas estruturas racionais construídas pela sociedade 
                          a fim de contê-la), do Mal personificado e simbolizado 
                          por Nosferatu. A expressão de gozo da personagem 
                          ao ser mordida, no entanto, sugere mais a procura pela 
                          satisfação pessoal do que o comprometimento 
                          com o bem coletivo, de sorte que o ataque do vampiro 
                          representa o ato sexual finalmente concretizado. Lucy alcança o 
                          prazer com que tanto sonhou. Drácula consegue, 
                          ao morrer, terminar com a solidão que o afligia. 
                          Jonathan, transformando-se no novo Nosferatu, abandona 
                          de vez a cidade natal e parte em direção 
                          ao horizonte. Com o insuspeito final feliz para o trio 
                          principal, Werner Herzog, em Nosferatu, O Vampiro 
                          da Noite, assinala a conquista definitiva do asilo 
                          pelos louco. 
 
  Paulo Ricardo de Almeida 
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