A NOIVA DA SÍRIA
Eran Riklis, Hacala hasurit, Israel, 2004

Há uma imposição do grande tema no pequeno universo familiar de A Noiva da Síria: a circunstância política no Monte Golam, na fronteira entre Israel e Síria, onde habita uma comunidade drusa, sem direito à cidadania, berrará em cada situação mostrada. Esse processo já está expresso em um letreiro inicial, que contextualiza a situação dos drusos. E ecoa narrativa a fora com a exibição dos efeitos da tensa (não) relação entre os Estados (Israel e Síria) durante a preparação das bodas de uma jovem drusa do lado israelense com um astro de tevê também druso – mas morador do lado Sírio. A noiva tem de passar de um lado para o outro, mas a burocracia kafkiana de cada lado e a repressão política do lado israelense, que tem como vítima o pai da noiva (um engajado na “causa drusa”), transformam o casório em festa do absurdo.

Estamos em um universo temático recorrente no cinema contemporâneo, que vive às voltas com um paradoxo a morder o próprio rabo. Vê-se a desterritorialização das identidades culturais, motivada por circunstâncias econômicas-religiosas-políticas, cujas “vítimas” são nações sem Estado e povos sem solo “oficial”. Pode-se já fazer uma ampla retrospectiva de obras realizadas nos últimos 10 anos sobre o drama coletivo de agrupamentos étnicos e religiosos à margem do modelo de Estado-Nação. O deslocamento clandestino e a negação do direito de se transitar livremente pelo planeta, como idealizava Descartes em sua concepção de mundo moderno, tem sido tratado por quantidade significativa de filmes (alguns deles presentes nessa Mostra, como Caçados por Sonhos, do indiano Buddhadeb Dasgupta, e Exílios, do franco-argelino Tony Gatlif). Vê-se ainda, nesses filmes, como efeito dessa desterritorialização gerada pelos exílios-diásporas, um fortalecimento das fronteiras separatistas, demarcando quem são os donos do lugar e quem são “os de fora” - e a limitação da mobilidade do cidadão planetário pela geografia global – a começar por seus vizinhos.

Não são apenas os governos a saírem chamuscados do melodrama eventualmente cômico de A Noiva da Síria. A culpa pelo cerceamento da liberdade de escolhas é dividida entre Estado e povo (o druso, no caso), porque este é cheio de regras restritivas e instauradoras da discórdia, em nome de um projeto de resistência contra a ameaça à pureza étnica e religiosa da comunidade. Assim, vemos casamentos entre individualidades pertencentes à origens diferentes sendo condenados ou proibidos para não se extinguir um povo supostamente homogêneo com misturas em geral e liberalidades ameaçadoras da idéia de grupo, que no fundo são afirmadoras de ações individuais não possíveis de serem homogenizadas pela força da tradição e da cultivada imobilidade de identidades.

Quem surge como “reprimida esclarecida”, sempre indo contra as convenções e lutando por convicções, é a irmã mais velha da noiva, que usa calça jeans e quer entrar na universidade. Será ela a negociar uma mudança dentro dos limites da família e da comunidade para se instalar nos modelos dos novos tempos. A modernidade buscada é o padrão ocidental. Retornamos então ao processo civilizatório do período colonialista, com a clara divisão entre cultura avançada e retrógrada. É semente para uma longa discussão que nem chega a ser tema do filme – apenas perifericamente.

Não sairá dessa premissa razoavelmente forte nenhuma imagem de impacto ou com energia suficiente para ser retida. A operação de câmera para relacionar corpos com ambientes e com outros corpos é mais ou menos a mesma de telenovelas mexicanas e venezuelanas: quase nenhuma, na verdade. Chega a ser impressionante que, enquanto os atores cumprem suas tarefas com desenvoltura e espontaneidade, oferecendo os melhores momentos do filme com expressões cômicas ou dramáticas precisas, a câmera pareça estar roncando, apática, como se assistisse as cenas sem produzi-las. Que não se confunda essa estratégia, ou falta de, com uma opção clássico-narrativa, porque as soluções visuais (ou falta de) revelam só mediocridade, não filiação cinematográfica. A Noiva da Síria não passa de um panfleto político, com aparência de ser do “bem”, imparcial e dialético, mas sem transformar o programa de posturas pedagógicas-sentimentais em construção cinematográfica potente para não ser reduzida a um tema.

Cléber Eduardo