Segundo filme de Serge Bozon,
depois de L'Amitié (1998), Mods encontra
uma forma de encenação muito própria e muito vigorosa.
O filme promove um tipo de estranheza em certa medida
comparável a Uma Floresta Sem Nome, de Shinji
Aoyama (exibido no Festival do Rio de 2002). Tanto em
Mods quanto no filme de Aoyama, tem-se a incursão
a um espaço comunitário mantido por regras rígidas e
esquisitices. Há também as repetições, a fixidez de
alguns personagens, as fisionomias “brancas” (no sentido
de anti-expressionistas), a atmosfera assombrosa. Mas
o filme de Bozon tem ainda uma particularidade a mais:
Mods é um filme musical – não no sentido tradicional,
de uma narrativa que intercala números coreografados
a cenas convencionais, mas antes por fazer também de
algumas cenas sem dança uma peça musical e por solicitar
uma fruição semelhante à que temos com a música.
O filme pede que lhe sondemos as melodias, os timbres,
os ritmos, as intensidades – o que vai dos diálogos
nonsense ao imenso inventário de poses e signos (inspirados
principalmente pela modculture, mas não somente)
que Bozon faz desfilar silenciosamente. As guitarras
estridentes e o visual comportado a que o título faz
referência têm uma função mais do que determinante sobre
o resultado. As perguntas que um personagem faz ao outro,
as frases que são ditas meio que a esmo, todas essas
palavras soltas estão ali menos para produzir sentido
e estimular respostas verbais do que para musicalizar
a dramaturgia, reduzi-la às propriedades gestuais e
fonéticas do decoro. A não ser quando dançam, os personagens
aparecem sempre no mesmo lugar e na mesma atitude, impassíveis.
A mulher que está sempre atrás do balcão lendo um livro
(cujo título é Le Pouvoir du Moment Présent,
idéia muito cara ao filme), o médico que não sai de
sua sala e nunca tem uma resposta aos pacientes, a mulher
que não sai do terraço, Edouard que não sai da cama.
Não sair do lugar é uma condição still que o filme impõe
a seus personagens. Nas cenas em que aparece o quarteto
de jovens com visual de banda de rock estilo mod, com
corte de cabelo anos sessenta e roupinha engomada, eles
são filmados sempre sentados ou encostados a alguma
parede (a de tijolinhos vermelhos, na primeira aparição
deles, evoca imediatamente a paisagem britânica das
cidades industriais que renderam cenários ricos para
o mundo do rock). Desenham-se imagens chapadas e estáticas
que passam a impressão de que estamos folheando uma
revista sobre comportamento e moda, ou vasculhando a
seção de rock antigo de uma loja de discos. Essa incapacidade
de uma atitude outra, ao menos para Edouard, deriva
da mais pura instabilidade amorosa. Mas para animar
o espírito, existe a música: as coreografias constroem
um percurso completo desde a chegada dos irmãos ao campus
até a recuperação de Edouard.
Quem transita de um espaço a outro são os irmãos Paul
(interpretado pelo próprio Serge Bozon) e François,
os que estão justamente de passagem por aquele campus
que lembra mais uma clínica de recuperação do que uma
universidade. Eles lá foram por conta da misteriosa
doença do outro irmão, Edouard, inatingível na sua depressão.
Pelo incômodo provocado pela situação do irmão, e também
pelo envolvimento que começam a ter com a “mulher do
terraço”, Paul e François perdem o sono. A coreografia
deles de pijama no quarto à meia-luz, a melhor do filme,
corresponde à tentativa de achar um local para se aconchegar.
Para eles que não são dali, é a busca de conforto em
meio a uma situação desfavorável. Seus corpos deslizam
pelo espaço pequeno, mudam de posição, se retorcem para
caber no armário, exploram todos os cantos possíveis
do quarto e não se dão por satisfeitos. Verdadeira mise
en scène do desconforto, a cena se compõe pela dança
minimalista e melancólica projetada pelo estado insone
da mente.
À noite, deitado na cama e sem conseguir dormir, François
repete para seu irmão: “mutique, mythique”. Palavras
que se comunicam pelo som, mas que não entregam significados
de bandeja. Mods trilha um caminho de aliterações,
de imagens e sons consoantes, porém diferentes. Situações
insólitas se repetem, frases se repetem, e as coreografias
evoluem para essa repetição (a última dança consiste
numa composição de movimentos repetida à exaustão).
Repetir, neste filme, equivale a assegurar a irreprodutibilidade
do momento presente, a singularidade de cada gesto e
de cada palavra no instante em que é dita. Se reproduzidos,
ainda que seja apenas um segundo depois, aquela palavra
e aquele gesto já não incidem sobre o mesmo ângulo de
anteriormente (mais obtusos, mais agudos, o que importa
é que são diferentes).
Falta de entendimento, oscilações do humor, tristezas
e alegrias tão profundas quanto inexplicáveis – de que
outro sentimento poderia este filme falar senão do amor?
E do que falam nove entre dez canções de rock como as
que tocam em Mods? A lisergia evocada pelas músicas
não atinge a mise en scène no seu centro de gravidade.
O filme é, no fundo, tão lacônico quanto o fundo de
verdade da explicação que se dá a quem não mais se ama.
Tudo que se encontra na carta da ex-namorada de Edouard
é “Non”. Como esmiuçar a perda do sentimento que outrora
foi tão forte?
Se as cenas de dança do filme já eram todas impregnadas
de um certo desleixo, os corpos menos se movendo do
que se arrastando, no número final Edouard parece um
boneco desengonçado que sua ex-namorada tenta pôr de
pé. Quando ele finalmente é convencido a arrumar a cama
(gesto simbólico quanto ao “sentir-se bem”), ela dá
a sentença: “Os homens só entendem as coisas na segunda
vez que explicamos. Está tudo acabado, Edouard”. Só
então ele retorna à vida, fica curado. Àquela antiga
doença de amor, Serge Bozon oferece Mods como
um novo remédio à base de notas musicais e movimentos
do corpo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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