CAMINHOS DE KIAROSTAMI, de Jean-Claude
Bernardet

Caminhos de Kiarostami, ensaio de Jean-Claude Bernardet publicado pela Companhia das Letras, desde o início abre seu leque. O crítico propõe um diálogo entre a obra do cineasta iraniano e outras expressões contemporâneas, tanto a partir dos dispositivos como da impressão de realidade. Bernardet situa o diretor em seu tempo, não como parte de uma cultura específica, tampouco como singularidade sem parentescos. Bernardet também não se apega apenas aos filmes para analisá-los. Em seu texto, incorpora declarações de Kiarostami, assim como informações de bastidores e traços biográficos.

A introdução às especificidades dos filmes começa com uma análise sobre a utilização do automóvel nas obras de Kiarostami. Há duas possibilidades de metáfora nos carros. A primeira diz respeito ao próprio papel do dispositivo – o de coerção com liberdade. O carro delimita espaços e a visão, mas, ao mesmo tempo, proporciona a mobilidade e escolha de caminhos. No entanto, esses caminhos, essa mobilidade, quase sempre, enfrentam obstáculos, desvios, desinformação sobre o percurso, constituindo uma estética do movimento não retilíneo. Importa menos o ponto de chegada e mais o desenvolvimento do processo. Daí a “subinformação sistemática”, segundo Bernardet, gerada pela demora (em filmes como E a Vida Continua, Gosto de Cereja e o E o Vento nos Levará) de se apresentar o objetivo dos personagens, e de seus percursos. Essa desinformação dilata o tempo, aumenta a nossa espera por alguma informação confiável, aguça nossa vontade de certezas e retira a finalidade das trajetórias.

Esse valor atribuido ao obstáculo como motor dos percursos deriva, segundo Bernardet, da tradição da poesia persa. As trajetórias seguem sempre em zigue-zague, como á água em um rio cheio de pedras. Nos filmes, durante os deslocamentes, os personagens se perdem, mudam de rumo, pegam atalhos, têm de se informar sobre o caminho. Bernardet arrisca uma comparação desse percurso em curvas e caminhos vicinais com a física moderna (“Os átomos em queda livre no vazio desviam-se de sua trajetória”, Lucrécio) e com a teoria da complexidade (sistemas em constante reorganização). Os movimentos não servem para nada, têm valor em si, renovam-se mesmo sem se completar. A vida continua assim, na dúvida e na incerteza, na certeza de continuar sempre, com ou sem êxito. O êxito, acima de tudo, é sobreviver. Não a qualquer custo, mas ao custo do prazer de estar vivo, antes de mais nada.

Temos aí o princípio da incompletude, da tarefa não cumprida, do não saber, da não hipótese, da gratuidade de certos acontecimentos. Vemos ainda, dentro desse procedimento, a recusa do contracampo, a não-totalização do espaço, a negação da multiplicação de ângulos do olhar. O som é estratégico, nesse sentido, para dar vida ao invisível. Não são poucos os momentos em Kiarostami nos quais som e imagem se dissociam. Essas opções são frutos de uma fuga do cinema narrativo, contra o qual o diretor manifesta-se frequentemente, por considerar manipulador da percepção coletiva - sem permitir ao indivíduo manter uma relação singular com as imagens. Talvez essa obsessão em tratar cada espectador como único, de ofertar o mesmo filme para diferentes apreensões, tenha a ver também com o contexto de realização de Kiarostami, com sua vivência do Irã islâmico, onde o Estado-Religião cultiva uma imagem de homogeneidade social, de todos indivíduos em torno dos mesmos valores. Kiarostami responde com um cinema para individualidades, com zonas escuras, com hiatos, com espaço para cada um construir o significado das imagens.

Bernardet identifica um programa, não de todo fechado, na relação filmes-declarações, mas apontando incoerências em suas afirmações sobre o poder manipulador do diretor. Kiarostami tem falado muito em seu apagamento como construtor de cenas. Sua autoralidade está sendo buscada como inventor de dispositivos, como preparador da cena e não como realizador dela. Sua noção de autoralidade, portanto, rompe com a da Nouvelle Vague, que buscava a subjetividade na encenação, na intervenção da câmera na construção do espaço físico, no posicionamento dela enfim. Dez é a experiência mais próxima dessa iniciativa, com sua câmera sem olho, com um dispositivo criado para conter o indefinido. Trata-se do filme com mais restrições auto-impostas (câmera de frente para motorista e passageiro, com cortes de um para outro e com quebra desse rigor em um momento, quando a câmera focaliza a prostituta fora do carro), mas também no qual o tema é mais explícito (a situação daquelas mulheres do filme em suas relações com os homens e com seus sentimentos em relação à vida). O dispositivo serve ainda para se evitar uma adesão à estética “banco de dados” (termo de Leo Manovich), que lista acontecimentos sem organizá-los, e sem se extrair um sentido para além deles. Dez é cheio de significações e têm uma estrutura organizadora, sim, embora jamais nos moldes como essa organização se dá em elaborações mais convencionais.

Dez seria ainda a estetização das câmeras de vigilância, do visor sem olhar e do “adeus solene ao homem atrás da câmera” (segundo Paul Virilio em La Machine de Vision), mas despojado da função de vigilância policial, recontextualizando a técnica e ressignificando as imagens para lhes dar outro sentido simbólico. Resulta dessa outra forma de abordagem um cinema com “câmera de vigilância afetiva”, na definição de Patrice Blouin (Elimination de l´Auteur – Entretien avec Abbas Kiarostami, Cahiers du Cinema nº 571, setembro de 2002). Ainda nesse caso, o cinema de Kiarostami, com seu suposto realismo (recusado pelo diretor), atenderia à demanda por material bruto, não manipulado - embora seja sua operação para obter esse efeito, de algo em si, que lhe dá sua grandeza.

Cléber Eduardo