"A arte nasce daquilo que ela queima", disse certa vez
Jean-Luc Godard. Jamais outra frase pareceu tão
oportuna para definir num só tempo os percursos
de dois dos maiores artistas do século XX Godard
e Sergio Leone e o próprio percurso da arte
à qual se dedicaram, o cinema.
O que foi necessário queimar para que existisse
em algum momento da história o cinema de Sergio
Leone? A fornalha de um trem, o tambor de um revólver,
os canhões da guerra civil norte-americana, o
motor de um caminhão de lixo? Uma amizade, uma
rivalidade, uma parceria, um duelo? Nada na obra de
Leone parece fazer muito sentido sem essa idéia
de um tempo presente que coloca em combustão
os fantasmas do passado, queimando-os às cinzas
e posteriormente transformando estas cinzas na terra
fértil (a América, incontornavelmente)
da qual nasce o morto-vivo Clint Eastwood na trilogia
dos dólares, Charles Bronson em Era uma Vez
no Oeste, James Coburn em Quando Explode a Vingança
e Robert De Niro em Era uma Vez na América que configura todas as dramaturgias a partir das
quais Leone desenvolve seu cinema.
O privilégio de Leone foi o de ter sido este
homem que chega na metade do século, num momento
em que já existe um John Ford mas onde ainda
não há um Clint Eastwood (isto é,
a figura fantasma por excelência). Leone, mais
que qualquer outro cineasta, foi quem mais beneficiou-se
do fato de que antes dele houveram outros. Ou,
em outras palavras, a diferença entre Ford e
Leone é que Ford faz refletir no passado a história
de um século XX ainda em construção,
e que Leone repousa sobre o passado como a única
representação possível de um século
XX onde já é tarde.
Cinema = civilização
Ou da vontade de inscrever uma história de
imagens em todas as outras histórias existentes corpos, guerras, roubos, putas, paixões avassaladoras,
sonhos embriagados, novas cidades, territórios
desbravados, territórios desconhecidos... Percorrer
e retraçar o passado, e a partir disto realizar
a única história possível: a da
civilização. Não mais apenas a
civilização norte-americana por conta
mesmo do problema fundamental, a pedra inaugural da
obra de Leone: um italiano que toma de assalto toda
uma história do cinema norte-americano e critica,
despedaça, decompõe, analisa, explode,
homenageia, incendeia essa história. O trabalho
de Leone é menos o de juntar os cacos desta história
que o de justamente não reconciliá-los,
não interferir naquilo que não mais pode
ser remediado ("já é tarde", lembrar sempre).
Os mega-épicos de Leone não fazem apologias:
ainda é possível carregar uma inocência,
olhar na cara das grandes desgraças, dos maiores
fracassos humanos, e com estes aprender algo. Talvez
seja este o aspecto menos discutido de sua obra até
hoje, precisamente aquele que determina o interesse
infindável por estes monstros que são
mitologia e civilização: a aprendizagem.
O interesse pelo estudo, conhecer e desbravar aquilo
que já é conhecido e já foi desbravado,
as necessidades conjuntas de conhecimento e reconhecimento.
Leone é um destes grandes que conseguem em um
só tempo desempenhar os papéis de aluno
e professor, de cinefilho e cineasta. Uma pedagogia
Leoniana? Não chega a ser o caso, mas também
não é algo que estamos muito longe de
um dia perceber.
Civilização = violência
Sim, Leone é herdeiro de Griffith. Não
apenas pelo gosto do teatro (e mesmo do meta-teatro,
como veremos em Era uma Vez na América)
mas também por ser um cineasta das grandes maquinarias,
dos espaços exacerbados, das construções
faraônicas, da montagem como grande mecânica
do cinema. Todos os mecanismos funcionais da arte cinematográfica
surgem como formas de violência: os tiros que
preenchem o quadro da câmera em Era uma Vez
no Oeste e Era uma Vez na América,
os trens que invadem e irrompem todas as trajetórias
e tragédias de Quando Explode a Vingança
e Era uma Vez no Oeste, a estrutura transideral
que nos tira abruptamente de um tempo-espaço
e nos instaura em outro em Era uma Vez na América,
as diversas mortes que permitem às narrativas
da trilogia dos dólares progredirem.
Existe inocência, sim, mas não existe o
inocente. Leone não é um bobo-alegre que
pretende ir ao cinema para encantar-se com a decoração
ou com o candelabro que desce do teto: seu interesse
continua sendo o movimento, o movimento que ainda pode
existir no momento em que os movimentos chegam a seus
fins. O oeste, as revoluções, o cinema,
as artes, a história, o século XX, que
maior metáfora para tudo isso que o final de
Era uma Vez no Oeste, quando o trem encerra seu
percurso e os trabalhadores descem dos vagões
à cata de ferramentas para iniciarem uma nova
construção? Pois este será
o verdadeiro ato de violência como também
a principal contribuição de Leone para
o cinema: este momento em que as máquinas e a
mecânica voltam a encontrar-se com a terra, com
a matéria de onde toda essa loucura nasceu.
Hoje e sempre: o espetáculo moral
A influência de Sergio Leone em milhares de
cineastas que após dele vieram é mais
que definitiva. É certo que com seu cinema reencontramos
Welles (a verdade da máscara), Visconti (a tela
do cinema como o próprio tecido suntuoso onde
jazem resquícios de tempos passados e gloriosos),
Ford, Griffith, Hawks, Lang e mesmo Lumiére (o
trabalho, sempre o trabalho). Mas onde podemos realmente
encontrar o legado de Leone? Tão-somente e apenas
nos grandes cineastas morais da segunda metade do século
XX: Clint Eastwood, Brian De Palma, John Woo, Quentin
Tarantino, Dario Argento, John Carpenter, Pedro Almodóvar,
todos os grandes questionadores, justamente os mais
freqüentemente acusados de retratarem o grotesco,
o tosco, de realizarem apologias absurdas à violência
e/ou ao repugnante.
Nenhuma outra cena na obra de Leone ilustra tão
bem essa dialética resoluta que surge entre espetáculo
e ética, entre o espaço amoral da cena
e a posição moral do cineasta, que o duelo
final de Por uns Dólares a Mais. O personagem
de Gian Maria Volontè rapidamente aponta uma
arma para o coronel interpretado por Lee Van Cleef logo
após este deixar cair sua pistola no chão.
Volontè, ainda apontando a arma, segura um relógio
que produz uma pequena melodia quando aberto, avisando
o coronel Cleef que este poderá tentar pegar
a arma no chão quando a música parar.
A música vai tocando, Van Cleef e Volontè
trocam olhares de um ódio cuja motivação
ainda não sabemos qual é, até que
chega o momento em que a melodia entra nos seus momentos
finais e Volontè já está a envolver
com as mãos seu revólver... quando a melodia
reinicia. Van Cleef e Volontè dirigem seus olhares
para um ponto fora do quadro, de onde vem a melodia,
e no contraplano o caçador de recompensas Clint
Eastwood segura numa de suas mãos um relógio
enquanto com a outra aponta sua arma na direção
de Volontè. Eastwood aproxima-se de Van Cleef,
passa-lhe uma arma e diz que foi um grande descuido
da parte do coronel. "Agora começamos", é
o que diz após restituir ao espetáculo
sua ordem moral.
Nesta decisão demente de sabotar o clímax
de seu próprio filme, de fazer do anti-clímax
o momento verdadeiramente importante de toda a dramaturgia
e de toda a ação desta cena, Leone mostra
a real face de suas preocupações: fazer
da representação uma questão de
moral (o que mais uma vez o separará de Ford,
visto que o mestre norte-americano realizará
o percurso inverso). Pois é o próprio
Leone transfigurado em Clint Eastwood quem faz essa
travessia do fora-de-campo para o campo: diante do momento
mais ignóbil, do simples e puramente absurdo
que significa o vilão apontar uma arma para o
herói que não possui nenhuma, faz-se necessário
recuar e ao mesmo tempo invadir, atuar de alguma
maneira no campo de ação da cena. O movimento
verdadeiramente dialético que é ao mesmo
tempo recuar e aproximar-se, de ser num só instante
sujeito e objeto, é não apenas
a confirmação da importância que
Leone ocupa no momento em que adequa uma hiper-consciência
a uma arte hiper-histórica (o faroeste) como
também o anúncio de algumas das coisas
que poderemos esperar tanto do intérprete quanto
do diretor Clint Eastwood (cuja condição
de herói essencialmente moral é estabelecida
logo após o momento em que interfere no duelo,
quando distancia-se e fica apenas a observar e esperar
o resultado de sua ação).
Sorrisos de um sonho de ópio
O que foi essa capacidade de criação
de cinema no caso Leone? É bastante difícil
fazer essa pergunta num outro tom que não um
semelhante ao de "O que foi esse caminhão que
me atropelou?", ou "O que foi essa paixão que
me arrebatou?". O lúdico, o gosto pela beleza,
a fascínio pela aventura e pelo fantasioso, o
tom farsesco, a abstração, tudo isso junto
a uma necessidade de registrar, de documentar, de ser
o principal documentarista do ardor e da paixão
ensandecida pelo cinema. O encanto que é também
rigor, o carinho que é também cinismo,
a fantasia que é também o maior documento
sobre a loucura do século XX e cujo título
é Era uma Vez na América; impossível
não se deixar levar ou ficar indiferente ao simples
poder que uma imagem e seus signos possuem num filme
assinado Sergio Leone.
Se um homem atravessasse o paraíso em sonho
e recebesse uma flor como prova de sua passagem e, ao
acordar, ele encontrasse essa flor em suas mãos,
dizer o quê? Então, eu era esse homem
(Borges). O cinema foi esse sonho, Sergio Leone foi
esse homem, e seus filmes são essa flor.
Bruno Andrade
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