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                         Existe um trajeto bastante claro 
                          de depuração de uma cineasta entre O Pântano 
                          (longa de estréia de Lucrecia Martel) e Santa Menina. 
                          É importante frisar, porém, que importa mais entender 
                          esta frase como explicitação de um processo do que como 
                          afirmação de superioridade do segundo em relação ao 
                          primeiro - apenas tudo que era instinto puro, cinema 
                          à flor da pele no primeiro filme volta agora dentro 
                          de uma construção dramática, de montagem e mise-en-scène 
                          muito mais controladas. São, portanto, impulsos distintos, 
                          não comparáveis. O que não mudou no cinema de Martel 
                          é uma absurda capacidade de olhar o mundo através de 
                          sua câmera (e sons), e dele extrair momentos vivos com 
                          uma força que poucas vezes se viu no cinema. Seus personagens 
                          respiram de uma forma única, seus ambientes transbordam 
                          de pulsação e clima num quase surreal domínio do cinema 
                          que nunca passa pelo maneirismo estéril. Martel é um 
                          caso quase único de cineasta onde a exuberância do trabalho 
                          com os elementos constitutivos do cinema (enquadramentos, 
                          montagem, movimentação de atores, sons, cenografia) 
                          não resulta numa paixão maior pela linguagem em si, 
                          em detrimento do que se quer contar. Pode-se analisar 
                          longamente seus filmes, e este Santa Menina principalmente, 
                          por um viés de linguagem cinematográfica, assim como 
                          por um viés absolutamente conteudístico (da história 
                          que se quer narrar e seus significados). Nenhum dos 
                          dois, porém, conseguirá (por si mesmo ou até em conjunto) 
                          explicar o mistério do olhar desta cineasta que parece 
                          arrancar a essência vital dos momentos, e expô-la na 
                          tela. 
                           
                          Há em Santa Menina um elemento narrativo que 
                          funciona como metáfora direta daquilo que Martel quer 
                          filmar: o theremin, instrumento musical onde 
                          os sons são produzidos sem um toque efetivo do músico 
                          no aparelho, apenas pela movimentação dos corpos no 
                          ar e as ondas que este cria. É em torno de um músico 
                          de rua tocando theremin que se dá a principal 
                          intriga dramática de Santa Menina, e não é por 
                          acaso: assim como o instrumento, os corpos das personagens 
                          de Martel produzem constante "música" independente 
                          de se tocarem ou não. Há, eventualmente, os toques (inclusive 
                          este que dá origem ao drama que une as duas histórias 
                          que o filme acompanha e que, até então, pareciam correr 
                          de forma independente na tela). No entanto, a força 
                          que emana destes nem sempre é mais importante do que 
                          os toques que se deseja que houvessem sem que aconteçam, 
                          ou dos toques que se imagina. E aqui entra parte da 
                          magia do cinema de Martel: ela consegue filmar não apenas 
                          os toques que acontecem, como estes que não acontecem. 
                          Não se pode duvidar que vários espectadores no futuro 
                          possam, ao se referir de memória a cenas dos filmes 
                          dela, confundir-se entre aquilo que efetivamente viram 
                          ou o que imaginaram: ambos têm a mesma força no seu 
                          cinema. 
                           
                          Os corpos em Martel nunca deixam de ser sexualizados 
                          - assim como acontece na vida e muitas vezes o cinema 
                          parece querer negar. Este é outro poder inerente ao 
                          seu cinema: não importa quem sejam as figuras em cena, 
                          das mais atraentes às mais estranhas, todas emanam sexualidade, 
                          desejos inauditos ou represados. Santa Menina 
                          se dá em grande parte neste embate: o da sexualidade 
                          e desejo desenfreados, e as tentativas (inúteis) de 
                          domá-la – tentativas estas materializadas tanto em personagens 
                          como a da mãe da adolescente em casa, quanto na imagem-síntese 
                          da faxineira que atravessa o filme tentando "esterilizar", 
                          "dedetizar" os ambientes pegajosos de desejos. 
                          Martel deseja que esta sexualidade aflore não só entre 
                          as personagens na tela, mas entre espectador e filme 
                          - prova disso é o plano final, onde as personagens apenas 
                          brincam como crianças na piscina (outra vez espaço central 
                          do drama, como em O Pântano), sem nenhuma intenção 
                          diretamente sexual entre elas, mas para o espectador 
                          estas sensações ainda pulsam. É o eterno jogo da inocência 
                          com o desejo que surge tanto no espaço da tela do cinema 
                          (naquela imagem de adolescentes ainda tão infantis e 
                          já tão adultas), quanto entre esta imagem e o espectador, 
                          que inquieto, não sabe como se comportar perante o que 
                          vê/sente. 
                           
                          Além desta pulsão sexual constante, o que este Santa 
                          Menina herda também do anterior O 
                          Pântano é um absoluto sentimento de naturalismo 
                          dos acontecimentos pró-cênicos, incorporado principalmente 
                          na movimentação e na expressividade dos rostos do elenco. 
                          Diga-se que aqui não falamos apenas dos principais intérpretes, 
                          todos impressionantes, mas de cada figura em cena - 
                          para citar dois rápidos exemplos: na cena em 
                          que uma das jovens quase é surpreendida na cama 
                          com o primo, vemos num relance de olhar que sua mãe 
                          não entende o que ali acontecia, mas que o homem 
                          que a acompanha na cena sacou tudo; ou num plano que 
                          mostra as meninas cantando/rezando, além da expressão 
                          das protagonistas, impressiona uma menina no canto do 
                          quadro, silenciosa, consternada.  
                           
                          Só que este naturalismo do que é encenado 
                          nos chega misturado com um sempre presente domínio daquilo 
                          que se mostra e se deixa de mostrar com a câmera – e, 
                          na verdade, poderia-se fazer um tratado sobre a autoria 
                          da visualidade no cinema a partir da constatação de 
                          que a câmera viva e pulsante deste filme é comandada 
                          pelo mesmo Felix Monti que no Brasil fotografou filmes 
                          tão mortos quanto A 
                          Partilha, O 
                          Quatrilho, Eu não Conhecia Tururu ou, pasmem, A Paixão de Jacobina. Em Santa Menina os enquadramentos demostram 
                          um rigor que sempre desconcerta perante a aparente fluidez 
                          do que se passa diante da câmera. Não só tudo parece 
                          sempre enquadrado da melhor forma (seria mais exato 
                          dizer “a única forma”) para a cena, como há ainda um 
                          trabalho cuidadoso com o espaço fora da tela, e as constantes 
                          e incômodas invasões de elementos deste para dentro 
                          das cenas, como a que fustigar os personagens já tão 
                          assolados por seus pensamentos e desejos. A esta câmera 
                          une-se um exemplar trabalho de montagem (que cria alguns 
                          preciosos falsos raccords) e de edição de som, cuja sutileza (se lembramos que os médicos 
                          que estão no filme para um congresso são otorrinolaringologistas, 
                          não temos dificuldade de perceber a pista de que o som, 
                          as palavras, possuem importância ímpar no filme) só 
                          não é maior que a adequação entre expressionismo e realismo. 
                           
                          Mas se há um ponto onde notamos uma impressionante diferença 
                          deste novo filme para o anterior, é na estrutura mesma 
                          do roteiro. Se O Pântano criava a constante impressão da vida se desenrolando (ou 
                          não) na frente das câmeras com uma sucessão de momentos 
                          poderosos e únicos, este Santa 
                          Menina consegue uma proeza cada vez mais rara no 
                          cinema: disfarçado de narrativas paralelas independentes 
                          a princípio, o filme entrelaça de tal forma cada elemento 
                          de história e de sensações, que acaba por revelar no 
                          final um tamanho crescendo dramático cujo clímax (o 
                          imediato momento anterior da encenação de uma consulta 
                          médica num congresso) quase torna o filme um thriller 
                          de suspense. A sutileza com que o filme realiza esta 
                          operação dramática é tamanha que o espectador muda sua 
                          percepção do filme, da contemplação ao engajamento completo, 
                          sem nem perceber. Esta progressão é construída cuidadosamente, 
                          tanto pela estrutura narrativa quanto pela construção 
                          de diálogos – muitas vezes cheios de um inesperado e 
                          incômodo humor e de jogos de mal-entendidos brilhantes. 
                           
                          Na verdade, Santa Menina não se esgota nunca se continuarmos 
                          abrindo suas portas (nem tratamos aqui da entrada do 
                          tema da religiosidade no filme, ou da questão da construção 
                          e estrutura familiar, por exemplo). É filme para se 
                          ver e rever (operação ainda não possível para este que 
                          aqui escreve, diga-se), para se descobrir a cada vez 
                          um novo detalhe – como de resto já era assim com O 
                          Pântano. Trata-se de filme que, acima de tudo, aguça 
                          os sentidos cinematográficos e faz pulsar o desejo pelo 
                          cinema como meio, como linguagem, como possibilidade 
                          de apreensão e relação com o mundo. Não é pouca coisa. 
                           
                            
                          Eduardo Valente 
                          
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