A FERIDA
Nicolas Klotz, La Blessure, Bélgica/França, 2004

Os primeiros minutos de A Ferida nos deixam em estado de suspensão. Suspensão do julgamento, suspensão dos sentidos. Qual é o estatuto daquilo a que estamos assistindo? Espaços fechados em planos também fechados, o filme nos apresenta aos personagens descolados um do outro: primeiro o homem, que habita um quarto precário e sujo (mais tarde ao longo da projeção saberemos que trata-se de um squat, prédio sem água, luz ou eletricidade que os sem-teto usam para morar), e recebe o telefonema de sua esposa (em celular, naturalmente); em seguida, a mulher está na seção de imigração do aeroporto, numa sala exígua e trancada a chave onde estão diversos imigrantes, africanos, asiáticos, quase empilhados uns em cima dos outros, sem condições de higiene (não há banheiros). Ambos, marido e mulher, são refugiados políticos do Congo. Ele conseguira seu asilo político alguns meses antes, ela tenta conseguir o seu agora. Mas quem atende a eles não são os funcionários de relações exteriores, e sim a polícia, e da maneira costumeira: atendendo a ordens, obedecendo a procedimentos protocolares que não dão conta da complexidade dos problemas humanos que passam diariamente por aqueles corredores. A saída é a pancada, a intimidação pela humilhação e a injúria. A regra é não deixar nenhum imigrante passar.

Esse é basicamente o entrecho da primeira hora de A Ferida. Mas isso não conta da missa a metade. Porque o que se perde na simples narração dos eventos é a maneira como se filma, e é aí que o filme ganha toda sua majestade. Nicolas Klotz tem o parti-pris de respeitar a duração dos acontecimentos, e isso significa filmar a viagem de metrô de Papi, o marido, indo até o aeroporto, ou a viagem do mini-ônibus que transporta os passageiros até o avião. Mas não estamos aqui diante de um fetiche pelo verismo das situações (como em Domingo Sangrento de Paul Greengrass, por exemplo), mas pela complexa gama de sentimentos humanos que um acontecimento destes pode despertar. Estamos diante de um material humano já muito bem trabalhado, no documentário, por Frederick Wiseman: a estupidez suprema da burocracia que só consegue ver o ser humano como um item de formulário que é tanto mais desagradável quando não está subsumido às regras-padrão de ação. A referência feita aqui ao documentário não é inocente: diversas vezes nos perguntamos se tal ou tal monólogo de personagem faz parte de um roteiro ou se apenas restitui para a câmera momentos já vividos, fora a forte impressão de realidade que as imagens de choques com policiais destila.

A proposição de cinema de A Ferida é radical: longa duração de filme (2h45min), longa duração dos planos, diversos planos longos de situações, algumas prosaicas e outras "narrativas". Poderia cair facilmente no maneirismo do cinema de arte de deixar o plano se estender ao máximo possível, mas é nesse momento que Klotz se revela um verdadeiro cineasta: até os detalhes mais ínfimos das cenas em que se filma "o nada" (os trajetos, as esperas, os átimos) revelam não um cacoete de "cinema sério", mas uma série de micro-sensações que jorram na tela com uma delicadeza suprema, sem chamar muita atenção para si mesmas, mas absolutamente importantes para tudo que o filme deseja captar.

A ferida à qual o filme se refere no título, na verdade, são duas. A primeira é a ferida física. Quando a polícia não consegue colocar todos os imigrantes de volta no avião – voltar para o país natal significa um atestado de óbito certo –, os chefes do setor mandam que os africanos que ainda estão na pista de decolagem sejam recolocados de volta no mini-ônibus, para que não sejam vistos pelos passageiros do vôo, que transitam num mini-ônibus de clima muito diferente, com música ambiente e esperança de voltar ao lar para visitar (não pode haver testemunhas: a ação policial deve ser invisível para os cidadãos). Blandine, cheia de escoriações, é a última a ser colocada no veículo, que fecha suas portas às pressas e prende a perna dela entre as portas automáticas. A segunda ferida, e a mais importante, é a emocional. Recondizida ao setor de imigração – afinal, a polícia não pode deixar que nenhuma prova de maus tratos transpareça às outras autoridades –, ela é entrevistada por um funcionário do ministério de relações exteriores que, mesmo indicado por seus superiores a nada fazer, envia faxes para que ela consiga seu aslio político (pela lei, conforme diz Papi no filme, a mulher de um asilado político deve receber asilo automático). Ela passa do setor de imigração ao hospital, e de lá a um hotel, e por fim ao inóspito squat onde Papi, junto com uma série de outros africanos, habita. Quando lá chega, Blandine não consegue deixar a cama. Imaginamos que pela ferida física, mas ao longo da duração vemos que a ferida que mais a incomoda é a moral: como puderam as autoridades tolerar tantos maus tratos, como um país livre permite que seus órgãos democráticos fechem os olhos para tamanhas humilhações e atos ilegais?

Por todo o período em que Blandine está de cama, o filme trajeta pelo cotidiano daquele squat, pela penúria dos personagens daquele micro-universo em conseguir trabalho, em tomar banho e também em tentar achar outras alternativa de habitação (eles devem deixar o squat, pois ele será demolido em breve). Nesse momento, o filme assume o autismo de Blandine e perde um pouco o foco narrativo, dando vazão a algumas cenas muito boas (a prostituição, os banhos diante de todos, a música) e poucas desiguais. Por fim, quando Blandine finalmente consegue externar toda sua incompreensão sobre como ela foi tratada como se ainda estivesse em seu próprio país, sem direitos, o filme reabre sua grandeza. As feridas são curadas, Papi consegue emprego (subemprego, naturalmente), mas a vida dos dois finalmente parece que vai funcionar. Se no primeiro trajeto de metrô do hotel à casa ela se recusava a olhar para os lados e escondia seu rosto com um véu (para o olhar pasmo de seu marido Papi), da segunda vez ela pode olhar para as novidades, se admirar com a vida das pessoas num novo país, e finalmente sorrir. O texto até agora pouco falou da expressão corporal de seus dois atores principais, das brilhantes trocas de olhares entre os personagens e das falas em off das histórias de imigração legal ou ilegal que aparecem no filme. Basta, no entanto, ver como Blandine e Papi, ao final, vendem frutas na praça ou se entreolham para perceber como A Ferida é um filme que dá corpo a seus atores e ampara com raro rigor e fragilidade os seus sentimentos. Uma grande descoberta.

Ruy Gardnier