Os primeiros minutos de A
Ferida nos deixam em estado de suspensão.
Suspensão do julgamento, suspensão dos
sentidos. Qual é o estatuto daquilo a que estamos
assistindo? Espaços fechados em planos também
fechados, o filme nos apresenta aos personagens descolados
um do outro: primeiro o homem, que habita um quarto
precário e sujo (mais tarde ao longo da projeção
saberemos que trata-se de um squat, prédio
sem água, luz ou eletricidade que os sem-teto
usam para morar), e recebe o telefonema de sua esposa
(em celular, naturalmente); em seguida, a mulher está
na seção de imigração do
aeroporto, numa sala exígua e trancada a chave
onde estão diversos imigrantes, africanos, asiáticos,
quase empilhados uns em cima dos outros, sem condições
de higiene (não há banheiros). Ambos,
marido e mulher, são refugiados políticos
do Congo. Ele conseguira seu asilo político alguns
meses antes, ela tenta conseguir o seu agora. Mas quem
atende a eles não são os funcionários
de relações exteriores, e sim a polícia,
e da maneira costumeira: atendendo a ordens, obedecendo
a procedimentos protocolares que não dão
conta da complexidade dos problemas humanos que passam
diariamente por aqueles corredores. A saída é
a pancada, a intimidação pela humilhação
e a injúria. A regra é não deixar
nenhum imigrante passar.
Esse é basicamente o entrecho da primeira hora
de A Ferida. Mas isso não conta da missa
a metade. Porque o que se perde na simples narração
dos eventos é a maneira como se filma, e é
aí que o filme ganha toda sua majestade. Nicolas
Klotz tem o parti-pris de respeitar a duração
dos acontecimentos, e isso significa filmar a viagem
de metrô de Papi, o marido, indo até o
aeroporto, ou a viagem do mini-ônibus que transporta
os passageiros até o avião. Mas não
estamos aqui diante de um fetiche pelo verismo das situações
(como em Domingo Sangrento de Paul Greengrass,
por exemplo), mas pela complexa gama de sentimentos
humanos que um acontecimento destes pode despertar.
Estamos diante de um material humano já muito
bem trabalhado, no documentário, por Frederick
Wiseman: a estupidez suprema da burocracia que só
consegue ver o ser humano como um item de formulário
que é tanto mais desagradável quando não
está subsumido às regras-padrão
de ação. A referência feita aqui
ao documentário não é inocente:
diversas vezes nos perguntamos se tal ou tal monólogo
de personagem faz parte de um roteiro ou se apenas restitui
para a câmera momentos já vividos, fora
a forte impressão de realidade que as imagens
de choques com policiais destila.
A proposição de cinema de A Ferida
é radical: longa duração de
filme (2h45min), longa duração dos planos,
diversos planos longos de situações, algumas
prosaicas e outras "narrativas". Poderia cair
facilmente no maneirismo do cinema de arte de deixar
o plano se estender ao máximo possível,
mas é nesse momento que Klotz se revela um verdadeiro
cineasta: até os detalhes mais ínfimos
das cenas em que se filma "o nada" (os trajetos,
as esperas, os átimos) revelam não um
cacoete de "cinema sério", mas uma
série de micro-sensações que jorram
na tela com uma delicadeza suprema, sem chamar muita
atenção para si mesmas, mas absolutamente
importantes para tudo que o filme deseja captar.
A ferida à qual o filme se refere no título,
na verdade, são duas. A primeira é a ferida
física. Quando a polícia não consegue
colocar todos os imigrantes de volta no avião
– voltar para o país natal significa um atestado
de óbito certo –, os chefes do setor mandam que
os africanos que ainda estão na pista de decolagem
sejam recolocados de volta no mini-ônibus, para
que não sejam vistos pelos passageiros do vôo,
que transitam num mini-ônibus de clima muito diferente,
com música ambiente e esperança de voltar
ao lar para visitar (não pode haver testemunhas:
a ação policial deve ser invisível
para os cidadãos). Blandine, cheia de escoriações,
é a última a ser colocada no veículo,
que fecha suas portas às pressas e prende a perna
dela entre as portas automáticas. A segunda ferida,
e a mais importante, é a emocional. Recondizida
ao setor de imigração – afinal, a polícia
não pode deixar que nenhuma prova de maus tratos
transpareça às outras autoridades –, ela
é entrevistada por um funcionário do ministério
de relações exteriores que, mesmo indicado
por seus superiores a nada fazer, envia faxes para que
ela consiga seu aslio político (pela lei, conforme
diz Papi no filme, a mulher de um asilado político
deve receber asilo automático). Ela passa do
setor de imigração ao hospital, e de lá
a um hotel, e por fim ao inóspito squat onde
Papi, junto com uma série de outros africanos,
habita. Quando lá chega, Blandine não
consegue deixar a cama. Imaginamos que pela ferida física,
mas ao longo da duração vemos que a ferida
que mais a incomoda é a moral: como puderam as
autoridades tolerar tantos maus tratos, como um país
livre permite que seus órgãos democráticos
fechem os olhos para tamanhas humilhações
e atos ilegais?
Por todo o período em que Blandine está
de cama, o filme trajeta pelo cotidiano daquele squat,
pela penúria dos personagens daquele micro-universo
em conseguir trabalho, em tomar banho e também
em tentar achar outras alternativa de habitação
(eles devem deixar o squat, pois ele será demolido
em breve). Nesse momento, o filme assume o autismo de
Blandine e perde um pouco o foco narrativo, dando vazão
a algumas cenas muito boas (a prostituição,
os banhos diante de todos, a música) e poucas
desiguais. Por fim, quando Blandine finalmente consegue
externar toda sua incompreensão sobre como ela
foi tratada como se ainda estivesse em seu próprio
país, sem direitos, o filme reabre sua grandeza.
As feridas são curadas, Papi consegue emprego
(subemprego, naturalmente), mas a vida dos dois finalmente
parece que vai funcionar. Se no primeiro trajeto de
metrô do hotel à casa ela se recusava a
olhar para os lados e escondia seu rosto com um véu
(para o olhar pasmo de seu marido Papi), da segunda
vez ela pode olhar para as novidades, se admirar com
a vida das pessoas num novo país, e finalmente
sorrir. O texto até agora pouco falou da expressão
corporal de seus dois atores principais, das brilhantes
trocas de olhares entre os personagens e das falas em
off das histórias de imigração
legal ou ilegal que aparecem no filme. Basta, no entanto,
ver como Blandine e Papi, ao final, vendem frutas na
praça ou se entreolham para perceber como A
Ferida é um filme que dá corpo a seus
atores e ampara com raro rigor e fragilidade os seus
sentimentos. Uma grande descoberta.
Ruy Gardnier
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