Kadosh
(Kadosh, 1999), O Dia do Perdão (Kippur,
2000), Éden
(Eden, 2001) e Kedma recuam,
sucessivamente, mais e mais no tempo para mostrar a
formação do Estado de Israel (assunto que Gitai já havia
abordado em filmes anteriores). Em Kadosh, no final do século XX, o impacto
negativo (pois retrógrado e aprisionante) do judaísmo
ortodoxo na vida de duas irmãs, microcosmo do tratamento
desigual dispensado às mulheres pela sociedade israelense.
Em O Dia do Perdão,
durante a Guerra do Yom Kippur em 1973, o cotidiano
de dois amigos, transformados em enfermeiros, no front
de batalha - em meio aos feridos, aos mortos e à lama.
Em Éden, no
pós-Segunda Guerra Mundial, a construção física do país
– da casa em tijolos que abre o filme ao enorme prédio
que o encerra –, acompanhada pelo rompimento amoroso
do casal protagonista, descortinando a relação dúbia
de apego e de frustração afetiva dos habitantes com
a nação. Em Kedma,
a imigração judaica em massa da Europa à Palestina,
no momento anterior à homologação de Israel pela ONU
(1948), e os conseqüentes embates entre aqueles que
chegam e os que lá já estão, os árabes e os ocupantes
britânicos.
Estruturado em longos planos-seqüências, Kedma se inicia com as costas nuas de Rossa
(Helena Yaralova), a qual tenta, sem sucesso, transar
com Yanush (Andrei Kashkar), seu companheiro, no navio
que aporta – o título do filme, Kedma, refere-se ao nome do cargueiro,
em citação e em homenagem a Exodus
(Exodus, 1961), de Otto Preminger. Comparando
o corpo feminino à Palestina, Gitaï, ao erotizar a terra,
demonstra o desejo dos judeus em possuí-la, mas, com
o coito interrompido, aponta igualmente para a impossibilidade
de tê-la por completo. Assim, a Terra Santa constitui
território hostil, amante exigente disputada por diversos
parceiros: os imigrantes, os palestinos – simbolizados
no idoso que, assim como seus filhos, promete sempre
resistir à invasão israelense (a ausência de árabes
na tela deve-se mais à preocupação do cineasta, vista
em O Dia do Perdão, em não espetacularizar a violência, do que em se colocar
ao lado de Israel na disputa) – e os ingleses, cujo
Protetorado indica o resquício da política imperialista,
herdada do século XIX, em franca decadência com a consolidação
das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética.
Kedma é uma
peregrinação. Os imigrantes judeus, que compõem grupo
heterogêneo, com línguas e com crenças variadas, saem
da Europa rumo à Palestina e, na Terra Santa, caminham
até o kibbutz que, de fato, jamais é alcançado.
Na jornada – a qual se conecta historicamente à fuga
dos escravos hebreus do Egito, liderados por Moisés,
à libertação do cativeiro na Babilônia e, por fim, à
Diáspora forçada pelos romanos que, no ano 70 d.C.,
destroem o Templo de Jerusalém –, eles enfrentam tanto
as tropas inglesas quanto a população árabe local -
em fuga de suas terras devido à ocupação israelense
em curso.
A História, e como ela deixa marcas nos indivíduos por
ela atravessados. No reencontro de Rossa e Yanush, separados
na praia, o casal recorda os sofrimentos passados durante
o Holocausto: ela lhe diz que precisam esquecer, para
continuarem, enquanto uma fogueira, em primeiro plano,
teima em não apagar, apesar das tentativas. Em outra
seqüência, Menachem (Menachem Lang) primeiro promete
eliminar os filhos de Ishmael, para logo depois se lembrar
de sua própria família, assassinada pelos nazistas.
São memórias que permanecem intactas, lembranças que
um povo, por mais que queira, não consegue abandonar.
A sombra constante do Holocausto, do genocídio perpetrado
por Hitler, que, conforme evidencia o discurso final
de Yanush – o qual assume o papel de voz da consciência
no filme, inútil e desesperada frente à escalada da
violência –, serve para alimentar o ódio pelos árabes.
Trata-se, certamente, de questionar esta associação
direta e simplista que Gitaï realiza entre os crimes
cometidos anteriormente contra os judeus e o seu comportamento
belicista no presente, como se a tomada da Cisjordânia
e da Faixa de Gaza se resumisse à vingança de Israel
contra os palestinos pelo trauma coletivo ocasionado
pelo nazismo, e não envolvesse milenares disputas religiosas
e culturais, bem como, mais recentemente, lutas pela
posse das terras férteis, da água e pela afirmação da
soberania nacional por ambas as partes, através da negação
da outra. No entanto, ainda segundo Yanush, em sua longa
fala em plano-seqüência, faz-se necessário parar de
temer o passado e ter coragem de olhar para frente,
o óbvio que árabes e judeus não perceberam, ou melhor,
não querem perceber.
É, pois, a jornada inconclusa, o eterno deslocamento
– os caminhões na estrada, final idêntico ao de Exodus,
aproximando Kedma
em definitivo do filme de Preminger –, os quais anunciam
a luta fratricida que se estende até os dias de hoje,
com muito sangue e nenhum entendimento.
Paulo Ricardo de Almeida
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