"Temo não conseguir
mais ver neste mundo de cegos".
(Fala de uma coadjuvante, em A História de
Marie e Julien)
1.
Um Filme de Jacques Rivette. Com poucos minutos
de A História de Marie e Julien não
restará dúvidas de que estamos no universo
de Jacques Rivette. Universo este bem mais complexo
do que o clichê sobre as ausências de elipses
que os enciclopédicos, cegos diante das imagens,
repetem a exaustão. Estarão lá
as casas cheias de livros e antiguidades; a paranóia;
a busca pela verdade; o amor pelo cinema, o tempo e
os atores. São características que aqueles
acostumados a acompanhar a obra de Rivette já
tiveram a oportunidade de encontrar antes, mas como
sempre neste grande autor, elas estão aqui embaralhadas
e retrabalhadas. A História de Marie e Julien
é um filme de grande frescor. Se em Quem Sabe
o diretor se reencontrava com um certo classicismo numa
busca apaixonada pela mise en scène perfeita,
retornaram aqui suas preocupações com
a narrativa cinematográfica, com atores, com
as imagens.
2. Le Gai Savoir. As imagens de Jacques
Rivette são sedutoras e misteriosas. Nelas há
um desejo da busca, o prazer da descoberta. Seus personagens
estão sempre querendo descobrir algo sobre eles
mesmos e o mundo em que vivem. Não será
diferente aqui. Sobre o filme paira o mistério
de Marie. Quem é ela? O que ela esconde? Nós,
como Julien, somos seduzidos por ela mas nada saberemos
a seu respeito. Caberá a Julien tentar descobrir
a verdade sobre a mulher que ama. A Marie caberá
descobrir a si mesma. Rivette gosta de enigmas (não
à toa somos jogados num mar de informações
já de cara, como se o filme estivesse sem o primeiro
rolo). Ele, desde que era crítico, sabia que
a busca, para além da superfície das imagens,
será infrutífera, mas o sentido delas
nunca deixará de ser algo desejável (busca
infrutífera que precisa ser realizada; pensemos
aqui em Out 1). Descobrir quem é Marie
não deixará de ser uma solução
que criará diversos outros enigmas, novas dores
de cabeça seja para o incrédulo espectador,
seja para Julien.
Não será nenhuma surpresa quando A
História de Marie e Julien der um salto para
o terreno do fantástico - se assumir como a história
de fantasmas que ele é -, nem que Rivette filma
seus fantasmas com uma solidez que o cinema não
antes viu. A História de Marie e Julien
une o desejo e a atração dos corpos com
o desejo do saber. Mais do que nunca Rivette está
afirmando sua posição diante de mundo
de imagens cada vez mais difíceis de compreender,
onde a mulher que se ama é uma esfinge e fantasmas
caminham à luz do dia misturados à multidão.
3. L’Amour Fou. Há duas histórias
de amor louco em A História de Marie e Julien.
A que lhe dá título e a entre Marie e
seu ex-namorado suicida Simon (belo, mais triste,
Julien o define), sendo que essa segunda apenas nos
é relatada mas assombra a primeira. Marie e Simon
eram, somos informados, mais apaixonados pela imagem
que projetam do que por si mesmos. Um amor público.
Já Marie e Julien quase não projetam imagem
para os outros, já que seu romance é essencialmente
privado (ela falta o único encontro público
que eles marcam). Seus únicos espectadores serão
nós.
O mais importante nestas relações é
o controle. Quem está por cima, ou melhor, quem
tem o ponto de vista sobre aquilo que vemos. Daí
a importância da precisão do trabalho de
Rivette, onde cada movimento de câmera ou corte
reconfigura aquilo que nós vemos. Isto já
fica explícito na seqüência de abertura,
e o jogo narrativo de Rivette segue nos confundido como
se a imitar o jogo dos seus atores. Este é o
lado político do cinema de Rivette, que geralmente
passa despercebido para a maioria dos espectadores.
Uma pequena informação histórica:
A História de Marie e Julien é
um antigo projeto de Rivette que deveria ter sido rodado
no final da década de 70. Seria a terceira parte
de uma tetralogia chamada Scènes de la vie
parallele, que também inclui Duelle
e Noroît. O filme chegou a ter sua produção
iniciada (com Leslie Caron e Albert Finney como protagonistas)
mas o diretor teve um colapso nervoso no terceiro dia
de filmagens. Rivette retrabalhou todo o material (com
a ajuda dos seus roteiristas habituais Pascal Bonitzer
e Christine Laurent) para este novo filme. Daí
talvez que o jogo que o cineasta nos propõe aqui
lembre o destes filmes, revistos vinte anos depois.
4. L’Histoire de Marie et Julien. A
História de Marie e Julien, o nome já
nos diz, é um filme-dueto. Há dois tipos
de seqüência aqui: a dos personagens vagando
sozinhos (trabalhando ou pensando) e os jogos a dois
(há apenas uma seqüência em que três
personagens contracenam, sendo que um deles se encontra
invisível). Pois este é mesmo um filme
de atores (Jerzy Radziwilowicz e Emanuelle Béart,
ambos excepcionais), um jogo de sedução
entre eles. Marie e Julien: mais do que uma sedução
entre amantes, uma entre atores. Radziwilowicz e Béart
cada um fazendo o melhor uso possível de seus
repertórios.
Esta dança entre corpos não é,
em si, nenhuma novidade em se tratando de Rivette, mas
poucas vezes ele esteve tão atento a ela. Radziwilowicz
e Béart seguem seus passos, lutam contra as orientações
de Rivette (Precisamos seguir regras que não
entendemos, ela reclama). Não deixam de criar
uma co-autoria (Rivette nunca teve medo de deixar o
controle do próprio filme acabar dividido com
seus atores), co-autoria esta que ajuda a compreender
o momento mágico que encerra o filme, onde Rivette
filma uma ressurreição (Rossellini? Dreyer?)
com beleza e dor únicas. Seqüência
de uma força poucas vezes encontrada na obra
do cineasta.
Não restam dúvidas. A História
de Marie e Julien é um filme especial.
Filipe Furtado
|