A HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN
Jacques Rivette, L'Histoire de Marie et Julien,
França, 2003

"Temo não conseguir mais ver neste mundo de cegos".
(Fala de uma coadjuvante, em A História de Marie e Julien)

1. Um Filme de Jacques Rivette. Com poucos minutos de A História de Marie e Julien não restará dúvidas de que estamos no universo de Jacques Rivette. Universo este bem mais complexo do que o clichê sobre as ausências de elipses que os enciclopédicos, cegos diante das imagens, repetem a exaustão. Estarão lá as casas cheias de livros e antiguidades; a paranóia; a busca pela verdade; o amor pelo cinema, o tempo e os atores. São características que aqueles acostumados a acompanhar a obra de Rivette já tiveram a oportunidade de encontrar antes, mas como sempre neste grande autor, elas estão aqui embaralhadas e retrabalhadas. A História de Marie e Julien é um filme de grande frescor. Se em Quem Sabe o diretor se reencontrava com um certo classicismo numa busca apaixonada pela mise en scène perfeita, retornaram aqui suas preocupações com a narrativa cinematográfica, com atores, com as imagens.

2. Le Gai Savoir. As imagens de Jacques Rivette são sedutoras e misteriosas. Nelas há um desejo da busca, o prazer da descoberta. Seus personagens estão sempre querendo descobrir algo sobre eles mesmos e o mundo em que vivem. Não será diferente aqui. Sobre o filme paira o mistério de Marie. Quem é ela? O que ela esconde? Nós, como Julien, somos seduzidos por ela mas nada saberemos a seu respeito. Caberá a Julien tentar descobrir a verdade sobre a mulher que ama. A Marie caberá descobrir a si mesma. Rivette gosta de enigmas (não à toa somos jogados num mar de informações já de cara, como se o filme estivesse sem o primeiro rolo). Ele, desde que era crítico, sabia que a busca, para além da superfície das imagens, será infrutífera, mas o sentido delas nunca deixará de ser algo desejável (busca infrutífera que precisa ser realizada; pensemos aqui em Out 1). Descobrir quem é Marie não deixará de ser uma solução que criará diversos outros enigmas, novas dores de cabeça seja para o incrédulo espectador, seja para Julien.

Não será nenhuma surpresa quando A História de Marie e Julien der um salto para o terreno do fantástico - se assumir como a história de fantasmas que ele é -, nem que Rivette filma seus fantasmas com uma solidez que o cinema não antes viu. A História de Marie e Julien une o desejo e a atração dos corpos com o desejo do saber. Mais do que nunca Rivette está afirmando sua posição diante de mundo de imagens cada vez mais difíceis de compreender, onde a mulher que se ama é uma esfinge e fantasmas caminham à luz do dia misturados à multidão.

3. L’Amour Fou. Há duas histórias de amor louco em A História de Marie e Julien. A que lhe dá título e a entre Marie e seu ex-namorado suicida Simon (belo, mais triste, Julien o define), sendo que essa segunda apenas nos é relatada mas assombra a primeira. Marie e Simon eram, somos informados, mais apaixonados pela imagem que projetam do que por si mesmos. Um amor público. Já Marie e Julien quase não projetam imagem para os outros, já que seu romance é essencialmente privado (ela falta o único encontro público que eles marcam). Seus únicos espectadores serão nós.

O mais importante nestas relações é o controle. Quem está por cima, ou melhor, quem tem o ponto de vista sobre aquilo que vemos. Daí a importância da precisão do trabalho de Rivette, onde cada movimento de câmera ou corte reconfigura aquilo que nós vemos. Isto já fica explícito na seqüência de abertura, e o jogo narrativo de Rivette segue nos confundido como se a imitar o jogo dos seus atores. Este é o lado político do cinema de Rivette, que geralmente passa despercebido para a maioria dos espectadores.

Uma pequena informação histórica: A História de Marie e Julien é um antigo projeto de Rivette que deveria ter sido rodado no final da década de 70. Seria a terceira parte de uma tetralogia chamada Scènes de la vie parallele, que também inclui Duelle e Noroît. O filme chegou a ter sua produção iniciada (com Leslie Caron e Albert Finney como protagonistas) mas o diretor teve um colapso nervoso no terceiro dia de filmagens. Rivette retrabalhou todo o material (com a ajuda dos seus roteiristas habituais Pascal Bonitzer e Christine Laurent) para este novo filme. Daí talvez que o jogo que o cineasta nos propõe aqui lembre o destes filmes, revistos vinte anos depois.

4. L’Histoire de Marie et Julien. A História de Marie e Julien, o nome já nos diz, é um filme-dueto. Há dois tipos de seqüência aqui: a dos personagens vagando sozinhos (trabalhando ou pensando) e os jogos a dois (há apenas uma seqüência em que três personagens contracenam, sendo que um deles se encontra invisível). Pois este é mesmo um filme de atores (Jerzy Radziwilowicz e Emanuelle Béart, ambos excepcionais), um jogo de sedução entre eles. Marie e Julien: mais do que uma sedução entre amantes, uma entre atores. Radziwilowicz e Béart cada um fazendo o melhor uso possível de seus repertórios.

Esta dança entre corpos não é, em si, nenhuma novidade em se tratando de Rivette, mas poucas vezes ele esteve tão atento a ela. Radziwilowicz e Béart seguem seus passos, lutam contra as orientações de Rivette (Precisamos seguir regras que não entendemos, ela reclama). Não deixam de criar uma co-autoria (Rivette nunca teve medo de deixar o controle do próprio filme acabar dividido com seus atores), co-autoria esta que ajuda a compreender o momento mágico que encerra o filme, onde Rivette filma uma ressurreição (Rossellini? Dreyer?) com beleza e dor únicas. Seqüência de uma força poucas vezes encontrada na obra do cineasta.

Não restam dúvidas. A História de Marie e Julien é um filme especial.


Filipe Furtado