Selected Ambient Takes, volume
1
Em Vida e Nada Mais (...E a Vida Continua), Abbas
Kiarostami já se perguntava sobre a paisagem. Ela assumia
diferentes feições, como o simples olhar para fora da
pessoa que está dentro de um carro e olha pela janela,
culminando com a captação da pujança da vida (crianças
brincando, as árvores que se mantêm verdejantes) mesmo
depois da suprema adversidade do terremoto sob o qual
o filme se constrói. A paisagem não é apenas a tomada
visual (de uma pessoa através do olhar, de uma câmera
através do plano) de um ambiente natural harmônico em
que partes da natureza se encontram repartidas para
causar deleite: ela é acima de tudo um mistério, um
enigma que indaga como a vida pôde ali se instaurar
e por quê. Cinco, nesse sentido, não é uma mudança
brusca na carreira de Kiarostami, mas antes o passo
bastante coerente de um processo artístico presente
em diversos de seus filmes, sobretudo após os anos 90.
Composto por “cinco longos planos” da natureza, como
nos informam os créditos iniciais, o filme apresenta
a eterna fascinação kiarostamiana sobre os processos
cíclicos do mundo (dir-se-ia os humanos, os naturais
e os cósmicos, sem muita distinção entre eles), desta
vez focada apenas no renovar-se da maré, na tomada da
luz, nas variações luminosas das várias partes do dia,
e naquilo que se passa entre a água e a câmera.
Sob o título de ensaio minimalista ou de exercício despretensioso,
Cinco facilmente se perderia em problemáticas
que não são as suas. De minimalista e despretensioso
o filme não tem nada: a tomada dos cinco planos é conceitual
e tecnicamente diferente em cada um deles, e cada plano
parece perseguir um caminho próprio assim que nasce.
Assim, para filmar um toco de madeira sendo levado por
uma marola, Kiarostami utiliza contínuos reenquadramentos
que mantém uma tensão verdadeiramente dramática entre
os elementos que estão em cena; no entanto, para filmar
patos, cachorros e seres humanos que se deslocam na
paisagem, a câmera é inteiramente fixa e a distância
em relação ao mar é diversa. Pessoas que se reúnem e
se dispersam, patos que vão para um lado e depois para
o outro, cachorros que descansam ou se movem, a luz
da lua que aparece e desaparece, o toco que perde-se
na água para depois ser reencontrado: existe uma ambição
muito grande em Cinco pela procura, ou melhor,
pela captação, de um ritmo muito particular de presença
e ausência, e de como essas células ínfimas e delicadas
de composição podem criar efeitos de força surpreendente.
Esse ritmo, no entanto, não é aquele da natureza, no
qual Kiarostami travestido de grande chefe new age
desejaria captar o ritmo próprio da natureza, mas
um ritmo completamente humano, cinematográfico, que
decide quando cada plano começa, quando termina, e que
tipo de intervenções sobre a imagem é necessário fazer.
A natureza não se capta; constrói-se a natureza para
melhor celebrar seu mistério.
Um dos grandes prazeres de observar as paisagens de
Cinco é que lentamente cada uma delas vai revelando
seu papel de máscara. “Tudo que é profundo se esconde
sob uma máscara”, diz Nietzsche, citado por Kiarostami
em 10 Sobre Dez. Pois bem, o autor de Close
Up aplica à risca essa observação, e sua genialidade
é partir daquilo que a princípio é mais simples de decodificação,
de interpretação (uma paisagem da natureza), e transformá-lo
em objeto complexo, em algo que já não mais se sabe
se é intervenção humana ou se é um presente do acaso.
Um quaquá antes que a enxurrada de patos apareça
na tela, nos instantes iniciais do quarto plano, é objeto
de uma edição de som muito bem cuidada que trai a espontaneidade
naïf da imagem? Nos escurecimentos do quinto
plano, quando a lua é completamente tampada e os animais
começam a fazer sons muito mais altos, não nasce a clara
impressão de que existem elipses enormes e manipulação
do volume de som? A questão de Kiarostami, naturalmente,
não é o purismo. Ele precisa do máximo de intervenção
possível para fazer o filme parecer cada vez mais natural.
Em Cinco, não poderia ser de outra forma: não
se trata de um simples “olhar pela janela” sem intencionalidade,
mas de um minucioso trabalho de “direção” da natureza,
em muitos aspectos semelhante a Dez, filme em
que Kiarostami não intervinha nas cenas, mas conduzia,
como chofer, a feitura de sua obra a partir de um conceito
e das conversas com os atores.
Entre os cinco planos a que o título se refere, há fades
que exercem por si só um papel dramático, e há o
trabalho da música, que vem se substituir ou sobrepor-se
ao som (direto?) das tomadas de paisagem. Disso nasce
uma tensão muito particular, como ao final do terceiro
plano, em que a paisagem de cachorros descansando ao
longe vai ficando progressivamente clara, clara, clara,
até chegar ao branco absoluto, que demarca o fim do
plano. Abertura de diafragma na hora da filmagem, trabalho
operado na edição ou simplesmente o sol que vai nascendo
no horizonte e mudando a luminosidade da cena? Kiarostami
parece o tempo todo brincar com a noção de apreensão
imediata da realidade, como já fizera em diversos de
seus filmes anteriores. As passagens em negro absoluto
do último plano nos reinstalam na cena do blecaute de
ABC África: em ambos, somos deixados somente
com o áudio, que vira senhor supremo da atenção, e ansiamos
para que apareça alguma nesga de luz na tela, seja um
relâmpago, sejam as nuvens que deixam de encobrir a
lua. Branco absoluto do fade, negro absoluto do eclipse,
e entre eles todas as diferentes gamas de luminosidade.
A esse respeito, o plano final é especialmente brilhante:
numa noite chuvosa, a imagem da lua sendo refletida
por águas calmas; sem nenhuma outra fonte luminosa além
da natureza, dependemos da luz da lua ou, como em ABC
África, de relâmpagos para voltar a ver. Os momentos
de aparição e desaparição da imagem, assim como a mudança
climática (espécie de “ponto de virada” final do filme),
nos fornecem instantes preciosos de cinema, em que com
a luz o mundo só termina para começar novamente. Cinco
é o tributo particular de Kiarostami à luz que torna
o cinema possível e, como disse Emmanuel Burdeau a propósito
de Adeus ao Sul de Hou Hsiao-hsien, um diagrama
luminoso explicaria o filme melhor do que uma descrição
minuciosa dos seres e lugares que vemos diante da tela.
É uma coincidência feliz que Abbas Kiarostami tenha
feito Cinco no mesmo ano em que o compositor
William Basinski lançou seus Disintegration Loops.
Nessa série de quatro CDs, Basinski grava a deterioração
e conseqüente destruição de diversos loops gravados
em fita magnética, na passagem ao formato digital. Escutar
a esses discos nos traz uma sensação muito parecida
com assistir a Cinco: o tempo passa lentamente,
as variações são delicadas, pequeníssimas, mas quando
aparece um elemento novo que se instala e reconfigura
a harmonia prévia, o júbilo é multiplicado. Em inglês,
paisagem se traduz por landscape. E landscape,
assim como soundscape, está nos vocabulários
daqueles compositores (dos quais Basinski, aliás, não
faz parte), que através da idéia de “música ambiente”,
procuram uma outra relação com a sonoridade musical
além da composição de canções ou formatos mais canônicos,
e uma outra forma de lidar com a audição de música,
incorporá-la aos lugares, às práticas humanas e a diferentes
tipos de “habitar” o espaço e a música através do espaço.
Brian Eno fez musica para aeroportos, Aphex Twin “nomeou”
as faixas do segundo volume de seus Selected Ambient
Works com figuras, objetos geométricos, cores e
plantas. Com suas paisagens, Abbas Kiarostami também
busca em suas imagens uma outra relação com o espectador,
uma outra forma de “habitar” a sala de cinema, mas acima
de tudo uma nova e excitante forma de cinema que prolonga
a compreensão da carreira e expande a paleta de preocupações
estéticas de um grande cineasta. Eis como Kiarostami
fez seu primeiro filme ambient.
Ruy Gardnier
|