CINCO
Abbas Kiarostami, Five, Irã, 2004

Selected Ambient Takes, volume 1

Em Vida e Nada Mais (...E a Vida Continua), Abbas Kiarostami já se perguntava sobre a paisagem. Ela assumia diferentes feições, como o simples olhar para fora da pessoa que está dentro de um carro e olha pela janela, culminando com a captação da pujança da vida (crianças brincando, as árvores que se mantêm verdejantes) mesmo depois da suprema adversidade do terremoto sob o qual o filme se constrói. A paisagem não é apenas a tomada visual (de uma pessoa através do olhar, de uma câmera através do plano) de um ambiente natural harmônico em que partes da natureza se encontram repartidas para causar deleite: ela é acima de tudo um mistério, um enigma que indaga como a vida pôde ali se instaurar e por quê. Cinco, nesse sentido, não é uma mudança brusca na carreira de Kiarostami, mas antes o passo bastante coerente de um processo artístico presente em diversos de seus filmes, sobretudo após os anos 90. Composto por “cinco longos planos” da natureza, como nos informam os créditos iniciais, o filme apresenta a eterna fascinação kiarostamiana sobre os processos cíclicos do mundo (dir-se-ia os humanos, os naturais e os cósmicos, sem muita distinção entre eles), desta vez focada apenas no renovar-se da maré, na tomada da luz, nas variações luminosas das várias partes do dia, e naquilo que se passa entre a água e a câmera.

Sob o título de ensaio minimalista ou de exercício despretensioso, Cinco facilmente se perderia em problemáticas que não são as suas. De minimalista e despretensioso o filme não tem nada: a tomada dos cinco planos é conceitual e tecnicamente diferente em cada um deles, e cada plano parece perseguir um caminho próprio assim que nasce. Assim, para filmar um toco de madeira sendo levado por uma marola, Kiarostami utiliza contínuos reenquadramentos que mantém uma tensão verdadeiramente dramática entre os elementos que estão em cena; no entanto, para filmar patos, cachorros e seres humanos que se deslocam na paisagem, a câmera é inteiramente fixa e a distância em relação ao mar é diversa. Pessoas que se reúnem e se dispersam, patos que vão para um lado e depois para o outro, cachorros que descansam ou se movem, a luz da lua que aparece e desaparece, o toco que perde-se na água para depois ser reencontrado: existe uma ambição muito grande em Cinco pela procura, ou melhor, pela captação, de um ritmo muito particular de presença e ausência, e de como essas células ínfimas e delicadas de composição podem criar efeitos de força surpreendente. Esse ritmo, no entanto, não é aquele da natureza, no qual Kiarostami travestido de grande chefe new age desejaria captar o ritmo próprio da natureza, mas um ritmo completamente humano, cinematográfico, que decide quando cada plano começa, quando termina, e que tipo de intervenções sobre a imagem é necessário fazer. A natureza não se capta; constrói-se a natureza para melhor celebrar seu mistério.

Um dos grandes prazeres de observar as paisagens de Cinco é que lentamente cada uma delas vai revelando seu papel de máscara. “Tudo que é profundo se esconde sob uma máscara”, diz Nietzsche, citado por Kiarostami em 10 Sobre Dez. Pois bem, o autor de Close Up aplica à risca essa observação, e sua genialidade é partir daquilo que a princípio é mais simples de decodificação, de interpretação (uma paisagem da natureza), e transformá-lo em objeto complexo, em algo que já não mais se sabe se é intervenção humana ou se é um presente do acaso. Um quaquá antes que a enxurrada de patos apareça na tela, nos instantes iniciais do quarto plano, é objeto de uma edição de som muito bem cuidada que trai a espontaneidade naïf da imagem? Nos escurecimentos do quinto plano, quando a lua é completamente tampada e os animais começam a fazer sons muito mais altos, não nasce a clara impressão de que existem elipses enormes e manipulação do volume de som? A questão de Kiarostami, naturalmente, não é o purismo. Ele precisa do máximo de intervenção possível para fazer o filme parecer cada vez mais natural. Em Cinco, não poderia ser de outra forma: não se trata de um simples “olhar pela janela” sem intencionalidade, mas de um minucioso trabalho de “direção” da natureza, em muitos aspectos semelhante a Dez, filme em que Kiarostami não intervinha nas cenas, mas conduzia, como chofer, a feitura de sua obra a partir de um conceito e das conversas com os atores.

Entre os cinco planos a que o título se refere, há fades que exercem por si só um papel dramático, e há o trabalho da música, que vem se substituir ou sobrepor-se ao som (direto?) das tomadas de paisagem. Disso nasce uma tensão muito particular, como ao final do terceiro plano, em que a paisagem de cachorros descansando ao longe vai ficando progressivamente clara, clara, clara, até chegar ao branco absoluto, que demarca o fim do plano. Abertura de diafragma na hora da filmagem, trabalho operado na edição ou simplesmente o sol que vai nascendo no horizonte e mudando a luminosidade da cena? Kiarostami parece o tempo todo brincar com a noção de apreensão imediata da realidade, como já fizera em diversos de seus filmes anteriores. As passagens em negro absoluto do último plano nos reinstalam na cena do blecaute de ABC África: em ambos, somos deixados somente com o áudio, que vira senhor supremo da atenção, e ansiamos para que apareça alguma nesga de luz na tela, seja um relâmpago, sejam as nuvens que deixam de encobrir a lua. Branco absoluto do fade, negro absoluto do eclipse, e entre eles todas as diferentes gamas de luminosidade. A esse respeito, o plano final é especialmente brilhante: numa noite chuvosa, a imagem da lua sendo refletida por águas calmas; sem nenhuma outra fonte luminosa além da natureza, dependemos da luz da lua ou, como em ABC África, de relâmpagos para voltar a ver. Os momentos de aparição e desaparição da imagem, assim como a mudança climática (espécie de “ponto de virada” final do filme), nos fornecem instantes preciosos de cinema, em que com a luz o mundo só termina para começar novamente. Cinco é o tributo particular de Kiarostami à luz que torna o cinema possível e, como disse Emmanuel Burdeau a propósito de Adeus ao Sul de Hou Hsiao-hsien, um diagrama luminoso explicaria o filme melhor do que uma descrição minuciosa dos seres e lugares que vemos diante da tela.

É uma coincidência feliz que Abbas Kiarostami tenha feito Cinco no mesmo ano em que o compositor William Basinski lançou seus Disintegration Loops. Nessa série de quatro CDs, Basinski grava a deterioração e conseqüente destruição de diversos loops gravados em fita magnética, na passagem ao formato digital. Escutar a esses discos nos traz uma sensação muito parecida com assistir a Cinco: o tempo passa lentamente, as variações são delicadas, pequeníssimas, mas quando aparece um elemento novo que se instala e reconfigura a harmonia prévia, o júbilo é multiplicado. Em inglês, paisagem se traduz por landscape. E landscape, assim como soundscape, está nos vocabulários daqueles compositores (dos quais Basinski, aliás, não faz parte), que através da idéia de “música ambiente”, procuram uma outra relação com a sonoridade musical além da composição de canções ou formatos mais canônicos, e uma outra forma de lidar com a audição de música, incorporá-la aos lugares, às práticas humanas e a diferentes tipos de “habitar” o espaço e a música através do espaço. Brian Eno fez musica para aeroportos, Aphex Twin “nomeou” as faixas do segundo volume de seus Selected Ambient Works com figuras, objetos geométricos, cores e plantas. Com suas paisagens, Abbas Kiarostami também busca em suas imagens uma outra relação com o espectador, uma outra forma de “habitar” a sala de cinema, mas acima de tudo uma nova e excitante forma de cinema que prolonga a compreensão da carreira e expande a paleta de preocupações estéticas de um grande cineasta. Eis como Kiarostami fez seu primeiro filme ambient.

Ruy Gardnier