Assistir à Felicidade...
nos faz concluir que há ainda um longo caminho a ser
percorrido no entendimento adequado do que seja, de
fato, a simplicidade de uma proposta de cinema. Pois,
ao invés de sermos contemplados com a riqueza extraída
de um fazer-filme aparentemente banal e corriqueiro,
o que vemos na verdade é uma sucessão de tropeços como
resultado de uma proposta simplória e uma realização
equivocada.
O filme conta a história de Anne-Marie, uma publicitária
que abandona temporariamente a profissão pra se dedicar
a este projeto: entrevistar pessoas na rua e colher
relatos sobre a visão que elas têm sobre a felicidade.
Numa pseudo-despretensiosa busca da espontaneidade,
o filme segue seu curso, como se a atriz-documentarista
estivesse preparada para registrar o que der e vier.
Em alguns depoimentos, os entrevistados questionam se
estão sendo filmados, e até pedem para não ser flagrados,
pois esse registro do despreparo os incomoda. Um exercício
de picaretagem pois, se tudo é “verdade”, se estas pessoas
da rua realmente existem como aparecem, há aí uma desobediência
anti-ética no não-cumprimento dessas solicitações. Agora,
se tudo é fake, se o filme é todo uma encenação
teatral (a sinopse publicada não dá conta de esclarecer
essa dúvida) a fim de enganar o espectador, aí é que
a coisa piora. Pois, além de causar uma reação que mais
ludibria que instiga, os recursos utilizados para esta
opção fazem com que Cama de Gato seja comparativamente
uma obra-prima perto deste. É que, durante os depoimentos,
a resolução do filme é de película; após a pergunta
citada, se a cobaia está sendo filmada ou não, transforma-se
em imagem digital, sem nitidez de cores, como se a câmera
focasse apenas a câmera da entrevistadora. Metalinguagem
pobre demais.
Ao diretor, faltou um pouco de Eduardo Coutinho para
conseguir extrair um pouco de emoção das pessoas. A
priorização de lugares públicos, ambientes abertos,
tem como objetivo valorizar o imprevisto e trazer depoimentos
não tão bem pensados e formulados. Como se, a Anne-Marie,
o primeiro impacto, o susto, a surpresa, é que deveria
ser o registro principal da reportagem. Como resultado
dessa confusão entre o simples e o simplista, temos
apenas e tão-somente um filme-blitz, expondo ao espectador
um constrangimento que mais se parece com aqueles intervalos
de programas sexy das madrugadas da TV a cabo, onde
uma equipe visita bares e restaurantes para fazer perguntas
indiscretas aos freqüentadores do local.
“É só pra falar sobre a felicidade”. Essa frase da atriz
é que acaba de derrubar a proposta do filme. Pois, de
um lado, procura-se explorar a fórceps respostas múltiplas,
profundas e complexas sobre o assunto, talvez na insistência
da entrevistadora. Mas é a própria visão preconceituosa
do filme que aponta que não precisa ser catedrático
para responder decentemente, ou duvida da capacidade
intelectiva dos objetos fílmicos, ou simplesmente finge
que não se está exigindo nenhum grande esforço por partes
destes. E, nesse insosso bate-rebate, essa constatação
enviesada esgota de vez a possibilidade de viabilização
de um bom trabalho, na sua própria concepção.
A coisa muda um pouco de figura quando A Felicidade
migra para um ambiente fechado. A documentarista é flagrada
ao trocar papéis e ser questionada por um dos entrevistados
sobre os propósitos da realização de tal projeto. Este
silêncio da atriz, este balbucio titubeante e tautológico
que ocorre lá na metade do filme, é a resposta que o
espectador tem desde o começo: uma idéia na cabeça e
uma câmera na mão não são suficientes para se fazer
cinema. Claro que, embora seja filmada a resposta definitiva
e ditatorial para a questão partindo dos realizadores
e não dos entrevistados (existe uma cena que mostra
claramente isso), nada mais óbvio do que o projeto vir
por água abaixo. Não porque se constatou que a felicidade
é um estado de espírito utópico. Não porque o universo
pesquisado não conseguiu ser capaz de trazer respostas
apropriadas. Mas porque, na ficção “realista”, a diretora
se deu conta de que acabara de realizar uma grande bobagem
– só que aí já é tarde demais, o produto está pronto.
Érico Fuks
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