A FELICIDADE É UMA CANÇÃO TRISTE
François Delisle, Le bonheur c'est une chanson triste, Canadá, 2003

Assistir à Felicidade... nos faz concluir que há ainda um longo caminho a ser percorrido no entendimento adequado do que seja, de fato, a simplicidade de uma proposta de cinema. Pois, ao invés de sermos contemplados com a riqueza extraída de um fazer-filme aparentemente banal e corriqueiro, o que vemos na verdade é uma sucessão de tropeços como resultado de uma proposta simplória e uma realização equivocada.

O filme conta a história de Anne-Marie, uma publicitária que abandona temporariamente a profissão pra se dedicar a este projeto: entrevistar pessoas na rua e colher relatos sobre a visão que elas têm sobre a felicidade. Numa pseudo-despretensiosa busca da espontaneidade, o filme segue seu curso, como se a atriz-documentarista estivesse preparada para registrar o que der e vier. Em alguns depoimentos, os entrevistados questionam se estão sendo filmados, e até pedem para não ser flagrados, pois esse registro do despreparo os incomoda. Um exercício de picaretagem pois, se tudo é “verdade”, se estas pessoas da rua realmente existem como aparecem, há aí uma desobediência anti-ética no não-cumprimento dessas solicitações. Agora, se tudo é fake, se o filme é todo uma encenação teatral (a sinopse publicada não dá conta de esclarecer essa dúvida) a fim de enganar o espectador, aí é que a coisa piora. Pois, além de causar uma reação que mais ludibria que instiga, os recursos utilizados para esta opção fazem com que Cama de Gato seja comparativamente uma obra-prima perto deste. É que, durante os depoimentos, a resolução do filme é de película; após a pergunta citada, se a cobaia está sendo filmada ou não, transforma-se em imagem digital, sem nitidez de cores, como se a câmera focasse apenas a câmera da entrevistadora. Metalinguagem pobre demais.

Ao diretor, faltou um pouco de Eduardo Coutinho para conseguir extrair um pouco de emoção das pessoas. A priorização de lugares públicos, ambientes abertos, tem como objetivo valorizar o imprevisto e trazer depoimentos não tão bem pensados e formulados. Como se, a Anne-Marie, o primeiro impacto, o susto, a surpresa, é que deveria ser o registro principal da reportagem. Como resultado dessa confusão entre o simples e o simplista, temos apenas e tão-somente um filme-blitz, expondo ao espectador um constrangimento que mais se parece com aqueles intervalos de programas sexy das madrugadas da TV a cabo, onde uma equipe visita bares e restaurantes para fazer perguntas indiscretas aos freqüentadores do local.

“É só pra falar sobre a felicidade”. Essa frase da atriz é que acaba de derrubar a proposta do filme. Pois, de um lado, procura-se explorar a fórceps respostas múltiplas, profundas e complexas sobre o assunto, talvez na insistência da entrevistadora. Mas é a própria visão preconceituosa do filme que aponta que não precisa ser catedrático para responder decentemente, ou duvida da capacidade intelectiva dos objetos fílmicos, ou simplesmente finge que não se está exigindo nenhum grande esforço por partes destes. E, nesse insosso bate-rebate, essa constatação enviesada esgota de vez a possibilidade de viabilização de um bom trabalho, na sua própria concepção.

A coisa muda um pouco de figura quando A Felicidade migra para um ambiente fechado. A documentarista é flagrada ao trocar papéis e ser questionada por um dos entrevistados sobre os propósitos da realização de tal projeto. Este silêncio da atriz, este balbucio titubeante e tautológico que ocorre lá na metade do filme, é a resposta que o espectador tem desde o começo: uma idéia na cabeça e uma câmera na mão não são suficientes para se fazer cinema. Claro que, embora seja filmada a resposta definitiva e ditatorial para a questão partindo dos realizadores e não dos entrevistados (existe uma cena que mostra claramente isso), nada mais óbvio do que o projeto vir por água abaixo. Não porque se constatou que a felicidade é um estado de espírito utópico. Não porque o universo pesquisado não conseguiu ser capaz de trazer respostas apropriadas. Mas porque, na ficção “realista”, a diretora se deu conta de que acabara de realizar uma grande bobagem – só que aí já é tarde demais, o produto está pronto.

Érico Fuks