ESTHER
Amos Gitai, Esther, Israel/Inglaterra, 1985

Amos Gitai já havia realizado alguns de seus documentários, aos quais tivemos acesso na retrospectiva organizada pela 28 Mostra Internacional de São Paulo, quando estreou em ficção com Esther. Na definição do crítico Serge Toubiana, no livro Exils et Territoires, publicado no volume intitulado Amos Gitai (edição da Cosac & Naify), é o primeiro filme da “trilogia da diáspora”, completada por Berlim Jerusalém e Golem, O Espírito do Exílio. O fundo histórico-bíblico é a vitória dos judeus em Soussa, na Pérsia antiga, após um prolongado processo de perseguição, empreendido pelo rei Nabucodonosor. Quem viabiliza essa reviravolta é Esther, esposa do rei Assuero - que ignora a origem judaica da esposa. Esther e seu tio Mordechai, um herói mitológico dos judeus, viram a mesa e invertem a jogo: passam de perseguidos a perseguidores, abandonando a luta pela sobrevivência para se entregar à luta pelo poder, não sem sadismo em sua imposição de força.

Gitai filma esse episódio do Livro de Ester, no qual Deus não é mencionado, para falar da situação contemporânea - no caso a dos anos 80. Ambientou a ação nas ruínas de Wadi Salib, em Haifa, antigo bairro árabe abandonado após a chegada dos imigrantes judeus em 1948, para ressaltar algo explícito em sua obra posterior: as visitas ao passado menos como reconstituição histórica e mais como revelação de uma genealogia de conflitos correntes. Em alguns momentos, em especial em Kedma, essa operação soa óbvia. Impõe-se um discurso retroativo que, ao reler fatos distantes no tempo (décadas ou milênios), simplifica questões do presente. Em Esther, esse discurso é construído como um colete de proteção contra a vingança dos oprimidos quando têm a chance de se tornar opressores (e é inevitável a lembrança de Dogville, o mais recente filme sobre a questão). No entanto, se politicamente é ajustado à moral de nossos tempos, é na encenação, aqui tomada como semente de um projeto ficcional depois elaborado com algumas variações, que o filme se destaca.

Os primeiros minutos já nos colocam dentro das regras do jogo de encenação. A câmera é colocada em determinado ambiente, externo, e após o início do plano dois homens entram em quadro, como se estivessem agachados embaixo da câmera, e andam de costas até sumir do campo de visão. No fundo do plano, surgem outros dois homens que fazem caminham inverso dos primeiros, caminhando em direção à câmera, até passar por ela e sumir do quadro novamente. Na seqüência, um sujeito, que se confirmará adiante como narrador-comentador metalingüístico dos eventos, dirige-se à câmera. Ele pode estar entre figurantes em uma cena, pode surgir de algum canto do quadro, sempre interrompendo a ação, quando não interagindo com ela. Ouvimos sons de pensamentos. A câmera, na maior parte dos planos, mantém-se fixa. A referencialidade nos deixa de fora da representação, assim como o caráter fake de figurinos e cenografia, que nos transportam para o aquecimento de alguma escola de samba, daquelas bem fuleiras.

Gitai estava em 1985, momento em que a referencialidade, percorrendo os corredores labirínticos do esvaziamento do pós-moderno, tinha muito de maneirismo, sem se filiar à cartilha do distanciamento crítico bretchtiano. Brecht é uma presença que salta aos olhos em Gitai, mas, nos limites do cinema e de Esther, vemos o respingar de tintas de Pasolini (de Os Contos de Cantebury) - mas sem o estudo de rostos do cineasta italiano. Sentimos ainda os ecos visuais de Paradjanov e o desmonte do ilusionismo de Straub-Huilet, mas sem a musicalidade verbal do cinema do casal (embora, sem o conhecimento do hebraico, qualquer observação sonoro-idiomática cheire a fraude). Gitai afirma que, embora na época da realização morasse em Paris, com acesso a toda história do cinema, ignorava Pasolini e jamais tinha ouvido falar de Straub, associando-se ao clube por outros caminhos (intuitivos e literários), desvinculados da cinefilia formadora do cinema moderno. A despeito de suas palavras, e de sua ignorância em relação à genealogia da própria linguagem sobre a qual está debruçado, vemos o “Cinema” em Esther, cuja modalidade cênica poderia ter sido concebida nos anos 70.

Os sinais do presente invadirão o universo em cena, construído como esquetes baseados em miniaturas persas. Um som de avião invade a cena, outro de buzina penetra o tecido audiovidual. Também veremos pneus queimando em uma espécie de lixão, meninos com uniformes escolares em uma batucada para celebrar um enforcamento, imagens contemporâneas da cidade com carros passando ao fundo. No trecho final, um plano seqüência em que a câmera acompanha cinco atores, saindo de um e indo para outro enquanto eles caminham em fila pela calçada, Gitai tira de vez o pano: cada um dos intérpretes resume sua trajetória biográfica e seus sentimentos em relação à experiência de morar em Israel. Ouvimos percursos com origens diversas, de um judeu húngaro a um árabe palestino, passando por um armênio e uma judia marroquina, todos com algo em comum: a sensação de não estarem totalmente integrados a Israel, de não pertencerem integralmente ao lugar, de sentirem-se incompletos e/ou multifacetados, frustrados com a utopia da terra prometida. Em suas ficções, Gitai jamais foi o mesmo: atitude e cinema, aqui ainda sem o peso como projeto estético, dão as mãos em Esther.

Cléber Eduardo