Amos Gitai já havia realizado
alguns de seus documentários, aos quais tivemos acesso
na retrospectiva organizada pela 28 Mostra Internacional
de São Paulo, quando estreou em ficção com Esther. Na definição do crítico Serge Toubiana,
no livro Exils
et Territoires, publicado no volume intitulado Amos
Gitai (edição da Cosac & Naify), é
o primeiro filme da “trilogia da diáspora”, completada
por Berlim Jerusalém e Golem, O
Espírito do Exílio. O fundo histórico-bíblico é
a vitória dos judeus em Soussa, na Pérsia antiga, após
um prolongado processo de perseguição, empreendido pelo
rei Nabucodonosor. Quem viabiliza essa reviravolta é
Esther, esposa do rei Assuero - que ignora a origem
judaica da esposa. Esther e seu tio Mordechai, um herói
mitológico dos judeus, viram a mesa e invertem a jogo:
passam de perseguidos a perseguidores, abandonando a
luta pela sobrevivência para se entregar à luta pelo
poder, não sem sadismo em sua imposição de força.
Gitai filma esse episódio do Livro de Ester, no qual
Deus não é mencionado, para falar da situação contemporânea
- no caso a dos anos 80. Ambientou a ação nas ruínas
de Wadi Salib, em Haifa, antigo bairro árabe abandonado
após a chegada dos imigrantes judeus em 1948, para ressaltar
algo explícito em sua obra posterior: as visitas ao
passado menos como reconstituição histórica e mais como
revelação de uma genealogia de conflitos correntes.
Em alguns momentos, em especial em Kedma, essa operação soa óbvia. Impõe-se um discurso retroativo que,
ao reler fatos distantes no tempo (décadas ou milênios),
simplifica questões do presente. Em Esther,
esse discurso é construído como um colete de proteção
contra a vingança dos oprimidos quando têm a chance
de se tornar opressores (e é inevitável a lembrança
de Dogville,
o mais recente filme sobre a questão). No entanto, se
politicamente é ajustado à moral de nossos tempos, é
na encenação, aqui tomada como semente de um projeto
ficcional depois elaborado com algumas variações, que
o filme se destaca.
Os primeiros minutos já nos colocam dentro das regras
do jogo de encenação. A câmera é colocada em determinado
ambiente, externo, e após o início do plano dois homens
entram em quadro, como se estivessem agachados embaixo
da câmera, e andam de costas até sumir do campo de visão.
No fundo do plano, surgem outros dois homens que fazem
caminham inverso dos primeiros, caminhando em direção
à câmera, até passar por ela e sumir do quadro novamente.
Na seqüência, um sujeito, que se confirmará adiante
como narrador-comentador metalingüístico dos eventos,
dirige-se à câmera. Ele pode estar entre figurantes
em uma cena, pode surgir de algum canto do quadro, sempre
interrompendo a ação, quando não interagindo com ela.
Ouvimos sons de pensamentos. A câmera, na maior parte
dos planos, mantém-se fixa. A referencialidade nos deixa
de fora da representação, assim como o caráter fake
de figurinos e cenografia, que nos transportam para
o aquecimento de alguma escola de samba, daquelas bem
fuleiras.
Gitai estava em 1985, momento em que a referencialidade,
percorrendo os corredores labirínticos do esvaziamento
do pós-moderno, tinha muito de maneirismo, sem se filiar
à cartilha do distanciamento crítico bretchtiano. Brecht
é uma presença que salta aos olhos em Gitai, mas, nos
limites do cinema e de Esther,
vemos o respingar de tintas de Pasolini (de Os
Contos de Cantebury) - mas sem o estudo de rostos
do cineasta italiano. Sentimos ainda os ecos visuais
de Paradjanov e o desmonte do ilusionismo de Straub-Huilet,
mas sem a musicalidade verbal do cinema do casal (embora,
sem o conhecimento do hebraico, qualquer observação
sonoro-idiomática cheire a fraude). Gitai afirma que,
embora na época da realização morasse em Paris, com
acesso a toda história do cinema, ignorava Pasolini
e jamais tinha ouvido falar de Straub, associando-se
ao clube por outros caminhos (intuitivos e literários),
desvinculados da cinefilia formadora do cinema moderno.
A despeito de suas palavras, e de sua ignorância em
relação à genealogia da própria linguagem sobre a qual
está debruçado, vemos o “Cinema” em Esther, cuja modalidade cênica poderia ter sido concebida nos anos
70.
Os sinais do presente invadirão o universo em cena,
construído como esquetes baseados em miniaturas persas.
Um som de avião invade a cena, outro de buzina penetra
o tecido audiovidual. Também veremos pneus queimando
em uma espécie de lixão, meninos com uniformes escolares
em uma batucada para celebrar um enforcamento, imagens
contemporâneas da cidade com carros passando ao fundo.
No trecho final, um plano seqüência em que a câmera
acompanha cinco atores, saindo de um e indo para outro
enquanto eles caminham em fila pela calçada, Gitai tira
de vez o pano: cada um dos intérpretes resume sua trajetória
biográfica e seus sentimentos em relação à experiência
de morar em Israel. Ouvimos percursos com origens diversas,
de um judeu húngaro a um árabe palestino, passando por
um armênio e uma judia marroquina, todos com algo em
comum: a sensação de não estarem totalmente integrados
a Israel, de não pertencerem integralmente ao lugar,
de sentirem-se incompletos e/ou multifacetados, frustrados
com a utopia da terra prometida. Em suas ficções, Gitai
jamais foi o mesmo: atitude e cinema, aqui ainda sem
o peso como projeto estético, dão as mãos em Esther.
Cléber Eduardo
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