Há
uma linha, ainda que um tanto enigmática, unindo
alguns dos filmes mais instigantes trazidos pelos festivais
recentes. Se a última década transbordou
em filmes episódicos e se refestelou na narrativa
fragmentária pós-Pulp Fiction,
o fato é que de três ou quatro anos para
cá o cinema vem apresentando filmes tanto mais
importantes quanto mais simplificam seu recorte temporal,
de preferência mantendo-o linear (Elefante
e Dez, como sempre, são as exceções
das exceções). Passada a euforia da desconstrução
narrativa – que, de Corra, Lola, Corra a 21
Gramas, expõe um vasto painel pelo qual perdemos
o interesse lá pela metade do caminho –, alguns
filmes manifestaram novas opções estéticas
interessantes. Gerry, Shara, Eureka,
Eternamente Sua, The Brown Bunny, Encontros
e Desencontros, Japão, O Pântano:
cada qual a seu modo, estes filmes trazem alguma coisa
muito simples e muito singular.
Os planos alongados de Eternamente Sua e Gerry,
por exemplo, não se sustentam apenas numa
proposta de narratividade mínima: são
planos que respondem a uma duração de
outra ordem, não necessariamente da ação
(ou não-ação, que seja) e sua inserção
no espaço-tempo, mas antes da pregnância
de uma sensação. Muito mais do que o narrador
de uma história, o cineasta passa a ser o arquiteto
do espaço onde se projetam sensações
- e estas formam corpos. Mostrar diversos pontos de
vista sobre um mesmo evento importa menos do que impregnar
o espaço com uma visão que, em meio a
tantas outras, é apenas uma visão possível.
Está em jogo justamente a singularidade do olhar,
seu prolongamento afetivo na imagem. Instaura-se uma
nova modalidade de concepção realista
do espaço fílmico, em nada lacunar ou
dispersiva, e sim calcada no preenchimento: é
como se houvesse agora a possibilidade de uma linguagem
que suprime os intervalos entre os signos, estruturando-se
na contigüidade radical entre eles.
A questão deixa de ser a ausência (total
ou parcial) de sentido e passa a ser a profusão
de sentidos. A complexidade da violência nas escolas
americanas está menos na sua falta de sentido
do que na extensão indeterminável do campo
de percepção que aqueles jovens atravessam
(Elefante). Da mesma forma, o deserto de Gerry
não tem tamanho apreensível, cresce indefinidamente
pelas bordas da imagem. Impossibilitadas de crescer
para o fundo (Gus Van Sant já trabalha nesse
filme com pouco uso da profundidade de campo), as imagens
de Gerry fogem para as laterais do formato 1:2.35,
e o filme se esprai pelo deserto como uma pintura abstrata.
Os personagens de Matt Damon e Casey Affleck pouco a
pouco desmontam a representação, perdem
a consciência que têm do entorno, perdem
a noção do espaço, para refazê-la
então do zero (como na cena deles olhando o mapa,
Affleck tentando lembrar o caminho que percorreram).
Seus corpos se des-diferenciando em relação
à paisagem e quase engatinhando (a marcha deles
vai progressivamente tornando-se lenta, à medida
que os pensamentos se infantilizam), até não
mais ser possível discernir esses corpos enquanto
centros de ação guiados por certa necessidade
e por certo conhecimento. O deserto os obriga a interrogar
os sentidos, a reconfigurar as dimensões do espaço
exterior a partir das dimensões e prioridades
do próprio corpo (como na infância da consciência).
Matt Damon calha de reencontrar a estrada no justo ponto
em que seu organismo estava prestes a falhar – mas o
som dos carros o faz perceber que está perto.
Se a percepção tem sua verdadeira razão
de ser na tendência motora do corpo (Bergson),
é bastante curioso que os personagens de Gerry,
praticamente abandonados à "percepção
pura", passem o filme inteiro arrumando o que fazer,
ora em resposta a uma necessidade (ir à procura
de água, tentar achar a estrada, descer de uma
pedra alta), ora simplesmente edulcorando um tempo morto
com brincadeiras ou inventando histórias. O que
cabe aos dois personagens de Gerry, perdidos
que estão, é desvendar o espaço
e insuflar o tempo. O próprio som do filme corresponde
a essa estratégia de preenchimento; todos os
detalhes se tornam relevantes e ganham volume: os passos
no solo árido, o vento, as vozes ecoantes, toda
a paisagem sonora construída e captada, tudo
é valorizado de modo a não sobrar vazio
na pista de som.
Não é privilégio de Gerry
esse interesse pelas coisas todas que o envolvem. O
Pântano e Encontros e Desencontros,
para citar dois filmes que passaram nos cinemas brasileiros
este ano, alcançam uma extraordinária
investigação do espaço e das relações
entre as pessoas que o ocupam. É com o pretexto
do tédio e da falta do que fazer que Bill Murray
e Scarlett Johansson resolvem desbravar Tóquio
em companhia um do outro, e suas perambulações
destacam o cenário específico da cidade.
É por contrapor diferenças tão
bem marcadas à falta de uma motivação
nas ações (a ausência de um vetor
de causalidade) que as porções de espaço-tempo
em O Pantâno são preenchidas com
tamanha e latente violência – a abertura que o
filme faz para a ambigüidade e a circunstancialidade
imanentes ao momento presenciado é tão
grande, que a situação em si (o conjunto
de fatos brutos, sem lapidação) se torna
violenta. Todo o filme de Lucrecia Martel se banha na
substância pegajosa de sua paisagem-título:
os personagens se encostam e se afastam como um deslizar
natural de corpos que ocupam o mesmo recipiente (com
a devida pressão inserida nele).
A personagem de Eternamente Sua (Blissfully
Yours, de Apichatpong Weerasethakul, obra-prima
exibida no Festival do Rio de 2002) que forja um atestado
médico para conseguir dispensa no trabalho e
passar a tarde ao lado do namorado está tão-somente
criando um tempo livre, que deverá ser aproveitado
com nada mais (nem nada menos) que vida, com o passeio
bucólico ao paraíso que o filme – e, conseqüentemente,
o espectador – desvela no seio de uma floresta da Tailândia.
O filme nos passa a sensação de escoamento
de tempo como raramente se vê: na sua última
hora, o tempo de metragem praticamente bate com o tempo
diegético (mas não é um tempo pesado,
tarkovskiano, e sim um tempo leve e fugidio). Apichatpong
ainda dedica uns vinte minutos à mise en scène
do sono (evocando a experiência warholiana, mas
trabalhando estética e narrativamente diferente),
quando seus personagens deitam à beira do rio
para descansar. É mostrada uma sucessão
de planos em que os corpos são recortados de
forma precisa pelo enquadramento, sendo justapostos
a outros planos em que eles aparecem ao longe, rodeados
pela natureza. Essa seqüência, definitivamente
antológica, organiza as superfícies e
as intensidades luminosas através de ritmos visuais
que conjugam plástica e temporalidade na medida
em que colaboram com a duração específica
do espaço e, conseqüentemente, dos corpos
que a ele se integram. Os sons da floresta e do rio
que corre ao lado se tornam mais audíveis que
em qualquer outra passagem do filme.
Pouco antes do término de Eternamente Sua,
como que para coroar a obra-prima, há um plano
com a câmera apontada para o céu, onde
o sol acha brecha entre as nuvens e copas de árvores:
aguardou-se pelo acontecimento da luz. Assim como O
Pântano, Eternamente Sua não
se furta à perscrutação de uma
paisagem específica (mais delimitada no filme
de Apichatpong, e mais espacialmente complexa no de
Martel – uma vez que ela articula também um tecido
social focado em vários núcleos) e à
pesquisa sensorial em torno dela. Trata-se, num caso
ou no outro, de um cinema em que o pano de fundo se
descola e migra para a superfície, e em que a
luz de preenchimento se torna a própria luz do
filme. O cineasta constrói paisagens visuais
e sonoras muito particulares, corroborando atmosferas
locais, incrementando a sensibilidade do material, quase
que inventando imagens táteis. Em Eternamente
Sua, chegamos muito perto de sentir a pele em contato
com o mato e com as formigas vermelhas. O Pântano
ressalta texturas e estados físicos das coisas
como a nos querer oferecer as imagens também
ao tato. Shara (de Naomi Kawase, um dos cinco
maiores destaques do Festival do Rio do ano passado)
quase nos molha com a chuva abrupta na cena do desfile.
É, em grande medida, a capacidade de imersão
e de incitação a uma experiência
hipnótica o que o cinema está aprimorando
através desses filmes. As paisagens ultrapassam
os personagens e, ao mesmo tempo, escapam ao campo de
visão do cineasta. A cidade que absorve o estrangeiro
nas suas luzes e nos seus sons (Encontros e Desencontros),
o deserto que engolfa seus visitantes (Gerry),
a floresta que abriga placidamente um casal em tarde
de folga (Eternamente Sua), o solo movediço
que desfaz e refaz a distância entre aqueles que
o pisam (O Pântano), a estrada sem fim
que serve de palco para o travelogue sentimental
e intimista de Vincent Gallo (The Brown Bunny).
Da continuidade da obra desses cineastas (em sua maioria,
pertencentes a uma geração que começou
a filmar da segunda metade dos anos 90 para cá),
no mínimo os novos filmes de Apichatpong Weerasethakul
(Mal dos Trópicos) e Lucrecia Martel (Santa
Menina) o Festival do Rio deste ano já nos
dá a chance de ver. Mais do que imperdível.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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