DIAS DE SANTIAGO
Josué Mendez, Dias de Santiago, Peru, 2003

Algo de impressionante brota da tela ao iniciarmos a experiência de ver Días de Santiago. Sensação também presente quando assistimos os dois filmes de Lucrecia Martel (O pântano e Santa menina) e os dois primeiros de Pablo Trapero (Mundo grua e El bonaerense): a constatação de estarmos diante de uma modalidade bastante especial de naturalismo e de diretores capazes de manejar a linguagem cinematográfica de tal forma a ponto de conseguirem captar através da câmera o que antes não era possível. Atmosferas, climas, sugestões e sutilezas que emanam não apenas dos gestos e expressões faciais dos atores como também da própria mise-en-scene, das opções de enquadramento. Vemos nesses filmes a “forma” em sua significação mais transcendental saltitar e tornar-se substância evidente e pulsante. Substância essa que nunca aparece como elemento transbordante ou ocupando um espaço que não deveria preencher e sim unicamente como recurso que se mescla de maneira perfeita ao conteúdo que se pretende abordar, para assim transformá-lo e amplificá-lo.

Esse momento mágico que não está em nenhuma fórmula ou cartilha cinematográfica resulta propriamente da plena e harmônica fusão entre “forma” e “conteúdo”. Procedimento esse que pode parecer elementar, mas é simplesmente o que mais está em falta na cinematografia recente, em que abundam maneirismos ou articulações de linguagem apenas executadas para realçar e mostrar que a chamada sintaxe cinematográfica e suas possíveis “subversões” existem e são pelo realizador facilmente manuseadas. Nos filmes argentinos citados, e em Dias de Santiago, não há espaço para esse narcisismo formal-autoral onde forma e conteúdo ao invés de se harmonizar se agridem e se repelem.

Aqui, Josué Mendez quer primeiramente contar a história de um marinheiro que ingressou nas forças armadas como único meio de escapar da pobreza, e que após seis anos de serviço resolve abandonar a corporação e retornar à vida civil. O detalhe é que esses anos de marinha coincidiram com o combate ao terrorismo senderista e com o conflito territorial travado com o Equador - a história do homem e a história de seu país. O principal obstáculo, porém é o estado da sociedade peruana em sua volta, como encontrado por Santiago e a sua completa falta de habilidade de interagir com ela. Vemos através do olhar do personagem a atual condição social de um país terceiro-mundista recém saído de episódios cruéis onde todas as portas parecem estar terrivelmente fechadas. Cruamente esse é o conteúdo. Agora, como Mendez resolve enfrentá-lo?

Primeiramente cabe enfatizar a importância da atuação de Pietro Sibille, que transcende o ato de atuar no sentido usual aplicado ao termo constituindo ao lado de Mendez um autêntico trabalho de co-autoria. Vemos de maneira surpreendente a total afinação compartilhada entre ator e autor em cada mínimo gesto efetivado pelo personagem, alternando momentos de retenção e explosão. O porte físico de Sibille, evidentemente harmônico á composição, completa a constituição desse “ser” confuso e angustiado, altamente tímido e sensível apesar de sua armadura de brutamontes. Santiago parece sempre desejar articular um gesto que nunca se completa e que morre antes de seu nascimento. Ele ensaia a abordagem à uma menina que em sua imaginação se concretiza perfeitamente, quando no mundo real sequer tinha saído do lugar. Ele verbalmente expõe para si mesmo ordens que deveria dirigir à esposa, porém quando ela chega, repentinamente se cala. A contenção de gestos, a “dureza” de movimentos e a sua expressão facial rude revelam que Santiago é uma força que guarda dentro de si um potencial não utilizado e que está constantemente na iminência de realizar algo que por fim não se realiza. Quando esse gesto retido e resguardado finalmente explode, ele basicamente ocorre nos momentos mais inoportunos. Esse eterno “fora de lugar”, que Santiago não consegue evitar que sejam suas relações com os demais e com o mundo, sintetiza a sua grandiosa falta de referência. A sua figura não está à margem de algo pois ela sequer consegue ocupá-la, ela sim está em um não-espaço, em um local sem inicio e sem fim.

A maneira como é usada a alternância entre o colorido e o preto e branco traduz esse sentimento de confusão por experimentar a situação de não pertencer a absolutamente nada. O excelente uso da edição de som poderia render um estudo maior sobre as mil e uma possibilidades desse valioso recurso muitas vezes negligenciado. Ele é o responsável por nada menos que a melhor seqüência do filme, que por si só já o colocaria na classificação de um dos melhores filmes de estréia dos últimos anos: após uma situação de tensão com a esposa em que Santiago perde a cabeça, ele surge no plano seguinte na discoteca articulando na pista de dança gestos que se assemelham com os anteriores. Só que agora ele está vivenciando uma cena de aparente alegria, quando na anterior era de fúria. Coloca-se então uma melodia que sublinha essa ação e comenta a interação entre esses dois planos fazendo suscitar a imensa tristeza e melancolia que respira por trás daquela falsa euforia. O espaço da discoteca adquire uma maior força na sua afirmação como um espaço de fuga e alienação do que acontece no exterior. A melodia não diegética que ouvimos na discoteca, visceralmente oposta à diegética (que não escutamos), serve para deslocar-nos daquele recinto e colocar-nos em outro: o tormento do personagem.

Imagem tão potente, inquietante e emblemática quanto à da ultima seqüência seria difícil encontrar para ser o derradeiro canto de Días de Santiago: Santiago, como seu último recurso tenta se matar com um tiro na cabeça, mas ele mais uma vez não consegue finalizar uma ação iniciada. Ele então experimenta um desespero duplo: o de querer se matar e o de não conseguir se matar. Essa impotência travestida de potência, ao mesmo tempo em que resume o personagem, desenha uma visão de mundo - ou mais precisamente, a visão de como é viver no Peru (como poderia ser qualquer país da América Latina ou do terceiro mundo) daqueles dias. Dias que, de forma alguma, são muito diferentes dos de hoje.

Estevão Garcia