DIÁRIO DE CAMPANHA
Amos Gitai, Yoman sadeh, Israel/França, 1982

Há um culto do plano seqüência, às vezes como artifício,  às vezes como cacoete, nas ficções de Amos Gitai. Em muitos filmes, o procedimento esconde-se, de modo a não ser notado: a câmera se move pelo espaço, para manter em quadro um personagem em deslocamento, e pára em algum ponto. Por lá fica um tempo e, na seqüência, move-se de novo, outra vez atrás de um personagem (o mesmo de antes ou um diferente), e novamente estaciona. Trata-se de uma construção de estilo, sutil em sua prática, que não submete a cena à coreografia visual. Já em outras obras, nas de linguagem documental especialmente, a falta de cortes ergue cartazes. Torna-se quase o próprio tema do filme, elevando o processo de realização à linha de frente, sem com isso escancarar a metalinguagem.

Tomemos como exemplo a operação da câmera em Diário de Campanha. Não são poucos os momentos em que algum solado entrevistado ou filmado, sentindo-se coagido pela simples presença da câmera (e não pelas perguntas de Gitai, como em outros filmes seus), colocam a mão na lente ou empurram o aparelho - com medo de terem algo de suas atitudes e aparências captados nas imagens. Nesse confronto, a câmera é inimiga, uma arma apontada contra quem é filmado, a proteger quem a manuseia. Não se trata mais de encadear as causas e efeitos da ocupação israelense no Líbano e na Faixa de Gaza, como pressupomos pelo letreiro inicial, mas sobretudo mostrar o confronto entre a personificação dessa ideologia da ocupação com a disposição da equipe cinematográfica em requisitar seus direitos de registrar os acontecimentos.

Nos perguntamos: é legítimo desrespeitar o desejo de alguém em não ser filmado, mesmo se esse alguém faz parte da promoção de uma situação de anormalidade, exercendo sua porção de poder para constranger os dominados física e moralmente? A resposta de Gitai é simples: sim. Sua câmera ouve em silêncio a apologia do extermínio feito por alguns jovens uniformizados, sem reagir às colocações com uma contextualização histórica (política de extermínio da qual os judeus foram vítimas em vários momentos), mas também enerva outros soldados ao transformá-los em miras da câmera (não das palavras). Naquele momento, Gitai crê em seu instrumento. Contra as armas, não bastam armas, nem palavras, mas imagens. É com elas que Gitai vai à guerra.

Nestes momentos de confronto, não falta tensão, como os quase sopapos de soldados truculentos levados pela equipe, com inspiração para cerrar dentes e atirar palavras grosseiras, cheias de ameaça e arrogância covarde (estão armados, são soldados, são o Estado). Mas estaríamos em mais um daqueles registros de militância maniqueísta? Não. Entre os entrevistados de uniforme, ouvimos posições mais serenas, mesmo envergonhadas em seu papel crítico, mais coagidas pelo uniforme que pela câmera de Gitai, revelando assim um jogo de forças dentro do quadro: a coerção pelo Estado e o contra-ataque da câmera.

Buscaria o diretor a captação de uma verdade bruta e imparcial com sua opção de transformar processo em tema (a partir do próprio título)? Não. Gitai usa a música e o som de noticiários para conduzir sua narrativa para onde lhe interessa, provocando tanto as emoções mais diretas como a indignação impulsiva, sem estar interessado em propor reflexão política mais aguda. É um cinema do “ali e daquela hora”, do embate com um real minado a cada centímetro, da captura de um presente enquanto ele se  desenrola aos solavancos, criando dificuldades para a seleção de ângulos de onde é melhor registrá-lo. Talvez por isso evite o corte, efetuando-o apenas nas mudanças de geografia - para assim filmar tudo, para assim detectar algo. E talvez por isso, para mostrar o sentido de busca de sua filmagem, não corte nem quando, à primeira vista, não há sentido em certas passagens, e paisagens, embora o sentido esteja todo nas imagens: a terra como sinônimo de território.

Cléber Eduardo