Há um culto do plano seqüência,
às vezes como artifício, às vezes como cacoete, nas ficções de Amos Gitai. Em muitos filmes,
o procedimento esconde-se, de modo a não ser notado:
a câmera se move pelo espaço, para manter em quadro
um personagem em deslocamento, e pára em algum ponto.
Por lá fica um tempo e, na seqüência, move-se de novo,
outra vez atrás de um personagem (o mesmo de antes ou
um diferente), e novamente estaciona. Trata-se de uma
construção de estilo, sutil em sua prática, que não
submete a cena à coreografia visual. Já em outras obras,
nas de linguagem documental especialmente, a falta de
cortes ergue cartazes. Torna-se quase o próprio tema
do filme, elevando o processo de realização à linha
de frente, sem com isso escancarar a metalinguagem.
Tomemos como exemplo a operação da câmera em Diário
de Campanha. Não são poucos os momentos em que algum
solado entrevistado ou filmado, sentindo-se coagido
pela simples presença da câmera (e não pelas perguntas
de Gitai, como em outros filmes seus), colocam a mão
na lente ou empurram o aparelho - com medo de terem
algo de suas atitudes e aparências captados nas imagens.
Nesse confronto, a câmera é inimiga, uma arma apontada
contra quem é filmado, a proteger quem a manuseia. Não
se trata mais de encadear as causas e efeitos da ocupação
israelense no Líbano e na Faixa de Gaza, como pressupomos
pelo letreiro inicial, mas sobretudo mostrar o confronto
entre a personificação dessa ideologia da ocupação com
a disposição da equipe cinematográfica em requisitar
seus direitos de registrar os acontecimentos.
Nos perguntamos: é legítimo desrespeitar o desejo de
alguém em não ser filmado, mesmo se esse alguém faz
parte da promoção de uma situação de anormalidade, exercendo
sua porção de poder para constranger os dominados física
e moralmente? A resposta de Gitai é simples: sim. Sua
câmera ouve em silêncio a apologia do extermínio feito
por alguns jovens uniformizados, sem reagir às colocações
com uma contextualização histórica (política de extermínio
da qual os judeus foram vítimas em vários momentos),
mas também enerva outros soldados ao transformá-los
em miras da câmera (não das palavras). Naquele momento,
Gitai crê em seu instrumento. Contra as armas, não bastam
armas, nem palavras, mas imagens. É com elas que Gitai
vai à guerra.
Nestes momentos de confronto, não falta tensão, como
os quase sopapos de soldados truculentos levados pela
equipe, com inspiração para cerrar dentes e atirar palavras
grosseiras, cheias de ameaça e arrogância covarde (estão
armados, são soldados, são o Estado). Mas estaríamos
em mais um daqueles registros de militância maniqueísta?
Não. Entre os entrevistados de uniforme, ouvimos posições
mais serenas, mesmo envergonhadas em seu papel crítico,
mais coagidas pelo uniforme que pela câmera de Gitai,
revelando assim um jogo de forças dentro do quadro:
a coerção pelo Estado e o contra-ataque da câmera.
Buscaria o diretor a captação de uma verdade bruta e
imparcial com sua opção de transformar processo em tema
(a partir do próprio título)? Não. Gitai usa a música
e o som de noticiários para conduzir sua narrativa para
onde lhe interessa, provocando tanto as emoções mais
diretas como a indignação impulsiva, sem estar interessado
em propor reflexão política mais aguda. É um cinema
do “ali e daquela hora”, do embate com um real minado
a cada centímetro, da captura de um presente enquanto
ele se desenrola
aos solavancos, criando dificuldades para a seleção
de ângulos de onde é melhor registrá-lo. Talvez por
isso evite o corte, efetuando-o apenas nas mudanças
de geografia - para assim filmar tudo, para assim detectar
algo. E talvez por isso, para mostrar o sentido de busca
de sua filmagem, não corte nem quando, à primeira vista,
não há sentido em certas passagens, e paisagens, embora
o sentido esteja todo nas imagens: a terra como sinônimo
de território.
Cléber Eduardo
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