A VOZ DO CORAÇÃO
Christophe Barratier, Les choristes, França/Suiça, 2003

Quase no final de A Voz do Coração vem uma imagem extremamente elucidativa para explicar o funcionamento do filme: no papel de um dos alunos (já envelhecido, lógico) da escola aonde boa parte do filme se passa em flashback, o também produtor do filme Jacques Perrin termina de ler a história que acabamos de assistir (no filme, conteúdo de um diário), e chora copiosamente. Pois bem, não é difícil de imaginar a mesma cena na vida real: Perrin lendo o roteiro (ou vendo o filme que deu origem a este), e chorando, com vontade de contar aquela história para mais gente. E, a julgar pela reação da platéia (sucesso absoluto nos cinemas franceses), ele conseguiu emocionar quem queria. E é aí que pode aparecer aquela velha (e falsa) questão: se era isso que o filme queria (atrair multidões, emocionar a platéia), faz sentido criticá-lo negativamente a partir de outros pressupostos. Para os realizadores, certamente não, e parabéns para eles pelo sucesso. Mas, para quem acredite que vale a pena pensar o cinema para além dos números de bilheteria e ver o que mais os filmes podem nos passar, sempre vale a pena sim.

Pois bem, A Voz do Coração é uma típica produção francesa que os "jovens turcos" da Cahiers du Cinema inicial chamariam de "cinema de qualidade". Qualidade esta que, como sabemos, era uma ofensa e não um elogio: um cinema que pegava a influência norte-americana pelo que ela tinha de pior - a ostentação de valores de produção e de uma dramaturgia um tanto rasteira, ao invés da riqueza do cinema de gêneros exercitado nos EUA. "Qualidade" esta que traz consigo todos os valores mais reacionários e conservadores de um determinado status quo para fazer com que o filme seja bem recebido pela platéia local (envaidecida que no cinema nacional se faça algo de "tanta qualidade" - lembra algum país conhecido nosso?), e eventualmente circule fora do país de origem também. Os tempos hoje são outros, mas a distância dos anos 50/60 parece apenas temporal porque no cinema a velha discussão cisma em vir à tona de novo (tanto por aqui, quanto na França): há que se comemorar os feitos deste cinema reacionário só por ser ele "nacional", ou ele se prova mais daninho do que uma boa coisa?

Por exemplo, neste caso em questão, falemos do tipo de coisa que comprova o primarismo de mais esta versão da mesma velha história do professor que chega em instituição careta para provocar a revolução dos alunos, e ao mesmo tempo sair mexido por estes (cuja mais recente versão, diga-se, pelo menos tinha leveza pop e falta de auto-seriedade em Escola do Rock). No clímax do filme, duas sequências nos ajudam na missão: primeiro, quando a escola pega fogo, e um pequeno plano insertado esclarece somente para os espectadores (os personagens do filme não vêem o que vemos) quem foi o responsável pelo incêndio. Porque este plano é primário: porque, para além da informação ser completamente desnecessária e só existir para dar conta do tatibitatismo da narrativa, ele vai contra a lógica enunciativa do filme, que é ser narrado a partir de um diário em primeira pessoa sendo lido no futuro por um ex-aluno - só que quem escreveu este diário não poderia saber daquele fato que acontece longe dos olhos dos personagens. Ou seja, é banal e sem nexo dentro da lógica interna que o filme mesmo monta. Mas nada disso parece muito ter importância para um filme que passa toda a sua duração nos dizendo para não julgarmos um livro por sua capa (no caso, o professor que chega e descobre por trás dos aparentes deliquentes juvenis da escola, pérolas esperando para serem buriladas), mas que dá ao seu vilão (o diretor da escola, claro) o exato mesmo tratamento que afirma que não devíamos dispensar a ninguém: a punição brutal (humilhação e demissão finais), e a certeza de ser ele irrecuperável.

Ou seja, trata-se de mais um filme sobre os "bons sentimentos", mas desde que para aqueles que aprovamos. Alguém ainda precisa disso - ainda mais encenado com tanta falta de talento, de qualquer interesse para além da mais estúpida e repetitiva "storytelling"? E, no final da sessão, não custa perguntar para as senhoras bem vestidas que choram copiosamente com esta bela lição de vida em um chateau francês: e na nossa Febem, não devíamos ser tão compreensivos quanto com os belos delinquentes loirinhos gauleses? Não, porque eles, como o diretor da escola no filme, são da estirpe dos irrecuperáveis - e lá o barato mesmo é a tortura e a repressão policial a rebeliões, para manutenção da "nossa ordem". Oh, captain, my captain!

Eduardo Valente