BOM DIA, TRISTEZA
Otto Preminger, Bonjour Tristesse, EUA, 1958

Em 1959, no plano final de Acossado, Jean Seberg desvia os olhos do protagonista deitado e dirige seu olhar para a câmera, e enfim diz sua última fala: "Qu'est-ce que c'est dégueulasse?". Dois anos antes, no entanto, a mesma Jean Seberg olhava, também em preto e branco, para a câmera. Não era no final do filme, antes no começo. Não observando um homem morrer, mas dançando com um homem que não lhe dá nenhuma vida. Por motivos muito evidentes, o plano de "olhar para a câmera" que se tornou revolucionário foi o do primeiro longa-metragem de Jean-Luc Godard, e não o de Bom Dia, Tristeza, de Otto Preminger. Mas esses motivos são tão evidentes quanto improcedentes: o primeiro apenas obedecia mais claramente a um programa de contestação da linguagem oficial, enquanto o segundo passeava sorrateiramente por uma complexificação da linguagem mais tradicional da ficção para dar conta em seus filmes da imensa gama de complexidade e ambigüidade moral que existe no mundo.

Nosso objetivo, naturalmente, não é jogar dois dos maiores cineastas que o mundo já deu um contra o outro, mas esboçar uma tentativa de compreensão do porquê de um determinado tipo de cinema, a saber, o de diretores como Otto Preminger e John Ford, possa ser colocado com tanta imprudência no saco de gatos de um "cinema narrativo clássico" que, a princípio, fecharia sobre si mesmo um universo de significados em que o espectador faria o papel de intérprete passivo dos signos evocados pela película, enquanto os filmes pós-Godard e Antonioni seriam a antítese disso tudo, a transubstanciação de Brecht no cinema. Bom Dia Tristeza, como diversos dos grandes filmes de Preminger, nos dá grandes motivos para duvidar dessa desajeitada clivagem teórica – e, com o passar dos anos, cada vez mais contestável. Ora, nos parece que há inúmeros meios de inscrever o espectador como entidade participante na ficção, e o distanciamento e o "cristal" são só alguns possíveis dentro de um extenso repertório, que de forma alguma exclui necessariamente o cinema narrativo. Otto Preminger é responsável por várias delas.

De todas, sua forma preferida de interferir na inocente fruição do espectador é a ausência de julgamento em relação a seus personagens. Preminger está mais interessado em criar uma relação entre valores distintos do que em dizer que um presta e outro não. Diante disso, cabe ao espectador sair de seu papel costumeiro e exercer ativamente seu próprio julgamento, sem a mão do diretor para direcionar para um ou outro lado, sob risco de ver unicamente planícies estéreis e plácidas ali onde há terrenos pra lá de tortuosos (e mesmo assim floridos). Em Bom Dia, Tristeza, nenhum dos personagens guarda para si o ponto de vista do filme. O trabalho de ponto de vista em Preminger consiste sempre em armar o teatro: dentro dele, as ações transcorrem sem torcida para qualquer parte.

Quando Jean Seberg olha para a câmera, logo no começo do filme, é na verdade para o palco, onde Juliette Gréco canta "Bonjour tristesse", que ela está olhando. Daí, o filme deslancha o passado recente da família de Jean Seberg, aliás Cécile. A trama é por demais simples: pai e filha, os bon vivants Raymond (David Niven) e Cécile aproveitam a vida entre Paris e o litoral francês. Sem preocupações de dinheiro, a vida é sempre uma festa, o mundo do trabalho e das obrigações encontra-se em outro lugar, mas não entre eles. À maravilhosa casa de veraneio deles na Côte d’Azur se junta Elsa Mackenbourg (Mylène Demongeot), namorada muito mais jovem de Raymond, tão frívola quanto eles mas um tanto mais tola. A adversidade nasce quando chega Anne Larsen (Deborah Kerr), antiga amiga da mãe de Cécile, uma estilista famosa, elegante, inteligente, linda e solteira. Convidada por Raymond um tanto sem pensar, Anne inicialmente sente-se humilhada pela presença de Elsa na casa, mas vai aos poucos lutando a luta no terreno um tanto licensioso da casa e acaba por conquistar Raymond. Com Anne como nova namorada, a vida de Cécile, que repetiu seu último ano na escola, vai ser reconduzida à responsabilidade. Cécile então arma com seu namorado Philippe e Elza um plano para separar os dois, que não dá exatamente os resultados que a moça esperava.

Há em toda essa maquinação gestos muito suspeitos, ou dúbios, ou até imorais. O fato de o filme ser constituído como um grande flashback em que o presente é em preto e branco e o passado é colorido acresce o tom de uma vida morosa, muito mais do que arrependida. Preminger abusa do underacting e evita uma estrutura de roteiro cheia de momentos de clímax, estabelecendo a situação de um presente contínuo e achatado, em que os personagens parecem mais flutuar do que agir propriamente. Ali, nesse ambiente cheio de marasmo e nesse espaço de tempo quase entre parênteses, qualquer gesto de personagem, da futilidade mais grave à maior alegria de viver, encontra sua plena expressão sob a câmera de Preminger que, passiva, registra e aceita da mesma forma, sem hierarquia moral, tudo que chega até ela.

Preminger, mais do que uma intriga, cria personagens. É a partir deles que se constrói o filme, das características de cada um e das relações estabelecidas entre eles. A intriga parece bem secundária, quiçá irrelevante. Podemos esquecer por que Cécile monta um quadro comparativo entre ela mesma e Anne, mas jamais nos esqueceremos da cena do quadro (da mesma forma que, em Tempestade sobre Washington, infelizmente jamais lançado em vídeo ou dvd no Brasil, podemos nos esquecer qual é o motivo inicial da celeuma no senado, mas jamais nos esqueceremos de todos os momentos de Charles Laughton, Henry Fonda e Walter Pidgeon). A partir daí, podemos imaginar dois possíveis modos de evocar a participação do espectador. (1) O personagem é multifacetado, e é difícil conciliar, por exemplo, a graça de Cécile com seu comportamento fútil, ou a estupidez de Elsa com seu eterno sorriso – coisa que nem o papel deles na intriga nem os elementos expressivos da direção fazem por nós. Assim, é preciso sozinho medir suas próprias distâncias em relação a cada personagem. (2) O personagem tem uma vida que parece ultrapassar seu lugar na intriga (o que é ligeiramente diferente de ser multifacetado). Pouco importa por onde Cécile/Jean Seberg passa ou o que ela faz, contanto que ela esteja no plano, e que ela continue sendo um enigma para nós do começo ao fim (Godard fez um uso bem semelhante dela em seu primeiro longa). Fonte irradiadora, menos pela beleza do que pela perene sensação de confusão por jamais saber o que se pode esperar dela na cena seguinte, Cécile nos remete a um buraco negro instalado dentro da narrativa e que parece sugá-la e criar momentos puros de cinema, emanando da beleza do instante e não da concatenação da narrativa.

Um dos momentos decisivos da nouvelle vague é a publicação nos Cahiers du Cinéma, por François Truffaut, do artigo "Uma certa tendência do cinema francês". O título provisório do texto era "O cinema do desprezo", num questionamento, entre outras coisas, do fato de que os personagens do cinema francês eram todos desprezíveis, uma maneira de dizer que o julgamento moral de cada personagem parecia se anteceder à própria criação do personagem. A nouvelle vague, como muitos parecem esquecer, não foi um movimento de defesa de um cinema "de vanguarda" contra um cinema clássico (Rohmer, para citar só um exemplo, jamais deixou de ser adepto do classicismo), mas um movimento em que os personagens não estivessem mais submetidos a um crivo moral terrível que os fechasse numa significação limitadora e espúria. A nouvelle vague, sem dúvida, está mais para Madame Bovary e Flaubert do que para Ulisses e James Joyce. Tanto que não há, por parte dela, negação a filmes narrativos americanos de linguagem "convencional" como os de Nicholas Ray, Joseph L. Mankiewicz e... Otto Preminger. O que esses jovens cineastas franceses queriam primeiramente, como Otto Preminger (e mais diversos) antes deles, era estabelecer um espaço para os personagens ganharem liberdade sem o entrave de uma narrativa opressora demais. Em Bom Dia, Tristeza, os nacos de realidade, os instantes partilhados em família ou entre amantes têm uma vida própria, uma pregnância que ultrapassa (ou briga contra) a mera função narrativa e existe por si só. Lembremos da cena de festa em praça pública. Ela tem um motivo narrativo central, mas mesmo assim esse motivo parece perder-se no meio de tanta beleza criada pela relação entre enquadramento e movimentação dos figurantes, tornar-se apenas mais uma característica no meio da dança e da música. Quase indiscerníveis, Deborah Kerr e David Niven se beijam na multidão, mas o olho chama a outros lugares. Otto Preminger abraça-os, mas deixa que eles tenham uma existência própria, longe da significação óbvia que fecharia a cena num plano fechado que desprezaria todo o resto da festa. Preminger deixa que eles vão com o fluxo. E nós com eles.


Ruy Gardnier

(VHS LK-Tel/Columbia, DVD Columbia)