BLINDING EDGE
Sobre A Vila e o cinema de M. Night Shyamalan

Em todos os filmes a figura da morte como destaque; para cada morte uma renascença; a cada renascença, uma mudança. Etapa final de um processo interminável (a dor humana), tal mudança surge como o maior de todos os tabus, ao mesmo tempo impraticável e imprescindível, fantástico e real. Esta mudança inicia-se no momento preciso onde a crença abandona sua condição única de crise e a dúvida completa passa a maquinar as poucas certezas (não só as dos filmes como também as nossas) que ainda restam.

É através de todos estes movimentos que dramaticidade, poder e encantamento manifestam-se no cinema de M. Night Shyamalan. O diretor de O Sexto Sentido, atualmente um dos mais célebres jovens realizadores do cinema norte-americano, conseguiu com seus últimos três filmes consolidar uma posição hoje virtualmente inédita na indústria cinematográfica Hollywoodiana: a do cineasta que, trabalhando para os grandes estúdios na realização de filmes fantásticos, "contrabandeia" para o interior destes filmes uma razão reflexiva que em muito põe em xeque a idéia que se faz daquilo que costuma ser reconhecido como filme-Hollywoodiano-de-gênero. É portanto de enorme interesse notar que com o lançamento de seu último filme, A Vila, Shyamalan chega à encruzilhada da situação que criou (e criou-se) ao seu redor após 5 anos e 3 filmes de sucesso. Vendido como uma espécie de pós-Bruxa de Blair, filme-programático destinado ao público adolescente, A Vila teve da comunidade crítica nacional e internacional uma acolhida quase que completamente calamitosa, e apesar de ótimas bilheterias a recepção entre o público mundial foi uma de enorme estranhamento.

O fato é que já com Sinais, filme anterior a A Vila, uma radicalização de propostas parecia enunciar-se na obra de Shyamalan: formal, temática, filosófica, mesmo politicamente é possível perceber uma evolução enorme; um salto que, no cenário pouco afeito a mudanças radicais que é Hollywood, continha ares pouco saudáveis para a carreira de um jovem cineasta. Contudo, o filme conheceu boa fortuna pública quando lançado, e foi neste momento que muitos começaram a perguntar-se quanto ao próximo passo do diretor hindu-americano.

Eis que surge A Vila, e mais uma vez Shyamalan confunde mais que esclarece, trazendo às telas mais um misto de tristeza resoluta e fé descabida. O que hoje mais parece interessante numa análise de sua obra – fora o percurso bizarro que traça com filmes tão peculiares e distintos entre si como O Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais e A Vila – é o apego incondicional às emoções mais absurdas dos personagens de seus filmes, um apego que pode parecer simplesmente sem medidas num primeiro contato (algo que provavelmente foi um dos grandes responsáveis pela enorme repercussão à época do lançamento de O Sexto Sentido) mas que num momento posterior talvez revele a real força do cinema de Shyamalan. Mas o que seria essa força, e de onde ela vem precisamente?

Muito já se falou sobre a coerência temática do cinema de Shyamalan – correlações entre crença e misticismo (caso de Corpo Fechado), medo e descrença (caso de Sinais), angústia e insegurança (O Sexto Sentido, A Vila), pós-vida e pós-morte (todos estes filmes). Mas talvez seja de maior interesse procurar ainda uma outra chave de compreensão para aquilo que podemos desde já chamar de função-Shyamalan, ou mesmo forma-Shyamalan. Se seus filmes se estabelecem num tempo "pós" (essa questão será desenvolvida mais abaixo) é principalmente por conta de um mecanismo decorrente deste momento do após, do depois, e que ajuda a colocar os dramas de Shyamalan junto àquilo que de mais contemporâneo se realiza em cinema hoje (e que inclui obras tão diversas quanto as do taiwanês Tsai Ming-liang e o americano Todd Haynes). Trata-se do único fator que agrupa em um só tempo crenças e questionamentos, absurdo e real, teologia e ciência; sem mais delongas, trata-se de um anseio real pela dúvida, a dúvida primordialmente como sentimento e sentido (bom lembrar que um dos filmes de Shyamalan se chama O Sexto Sentido) mas também como um clamor pela espera, por uma espécie de "suspensão" de eventos e idéias (talvez daí o sucesso de Shyamalan ao incorporar todo este repertório de conceitos a um gênero cinematográfico, o suspense).

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Ainda na primeira cena de A Vila assistimos a um enterro. Um grupo de pessoas observam de longe a cerimônia, onde um pai lamenta-se diante da lápide do filho recém-morto. O filme se passa num pequeno vilarejo do século XIX, mais exatamente no ano de 1897. Este vilarejo é cercado por uma floresta onde vivem estranhas criaturas, às quais os nativos se referem apenas como "aqueles-dos-quais-não-falamos". Em termos de trama e intriga do filme tratam-se apenas de criaturas, de monstros; mas de que maneira estes-dos-quais-não-se-fala se inscrevem no cinema realizado por Shyamalan, no projeto que o cineasta vem edificando desde O Sexto Sentido? Afinal de contas, quem são? Pois talvez sejam os mortos das tragédias que iniciam as narrativas de A Vila e Corpo Fechado; talvez sejam monstros e fantasmas como aqueles que assolam os protagonistas de Sinais e O Sexto Sentido; talvez sejam esta face do mal capaz de um acordo com a inocência como visto em Corpo Fechado e O Sexto Sentido. Porém, antes de serem qualquer uma destas coisas eles são apenas e tão-somente um mistério, este mistério que só consegue existir em sua plenitude após um momento em que muito se fez e muito aconteceu, um momento em que é preciso dizer "Basta" e pôr fim a alguma coisa: um mundo, uma vida, a maldade, uma ameaça, medo, apatia, descrença e mesmo crença.

De tudo isso surge a necessidade de discutir a maneira como a obra de Shyamalan se inscreve num momento "pós": tragédias, acidentes, traumas, tristeza, loucura, fantasmagorias... Enfim, tudo aquilo que ativa este processo de dor à qual os protagonistas invariavelmente reagem: a perda da amada e subseqüente perda da crença do padre Mel Gibson em Sinais; os encontros aterrorizantes que o garotinho Haley Joel Osment em O Sexto Sentido trava com fantasmas; a desilusão com a qual o guarda Bruce Willis preenche todos os seus dias após ter anulado sua função de super-herói e homem invencível em Corpo Fechado. Mas é em A Vila, mais que em qualquer outro filme, que essa idéia do momento-pós alcança uma espécie de ápice, chegando mesmo a algo próximo de um esgotamento e um paroxismo completo (não por acaso o filme começa com a já citada cena de enterro). Existe uma desolação enorme partilhada pelos personagens do filme, talvez por conta do impossível que é o abandono desta "vila" em favor da travessia pela floresta onde residem "aqueles-dos-quais-não-falamos", ou talvez pelo sentimento de que será impossível a manutenção da harmonia que durante tanto tempo preencheu este espaço improvável que é "a vila".

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O que o espectador talvez redescobre com os filmes de Shyamalan – e principalmente com A Vila – é justamente a possibilidade de que o cinema fantástico ainda pode verificar a existência de humanidades, em outras palavras de personagens. Tratam-se não mais de meros corpos que balançam e correm de um lado para o outro ao serem perseguidos pelo assassino psicopata (geralmente na sua encarnação mais esgotada) mas de personagens que se apavoram com o puramente abstrato, que possuem medo daquilo que é de qualquer maneira absolutamente inverossímil (invasão de alienígenas, mundo povoado por fantasmas e monstros, super-vilões). Ainda é muito cedo para responder se devemos inscrever ou não Shyamalan no panteão dos grandes realizadores de cinema fantástico – ao lado de nomes como Alfred Hitchcock, Jacques Tourneur, John Carpenter, Fritz Lang, Mario Bava e muitos outros. O fato é que com A Vila o cineasta se inscreve no que de melhor se realiza em cinema hoje, e isto já nos diz o bastante sobre o que esperar deste fantástico homem de cinema que é Shyamalan.


Bruno Andrade