BERLIM JERUSALÉM
Amos Gitai, Berlin Yerushalaim, Israel, 1989

Para Amos Gitai, um travelling não é questão de moral, mas uma palavra de ordem e relativização dos tempos. Seus travellings rompem com uma noção de dramaturgia onde o passado parece existir separadamente do presente, enquanto tempo narrativo. Em seu cinema , passado e presente convivem como duas realidades que se fundem.

Há nesse procedimento duas vertentes: de um lado a militância política, onde Gitai deposita sua revolta contra a violência que foi, e continua sendo, a tônica involuntária do Estado de Israel. Por vezes duro com seu próprio povo (como em Diário de Campanha, onde a câmera era usada como arma contra os soldados israelenses que expulsavam os libaneses), por vezes pertinente, colocando em perspectiva toda a complicação que acontece quando limites geográficos tentam abrigar diferentes povos e crenças.

De outro lado, há o aspecto formalista, que nos força a uma análise fria do que está sendo mostrado e muitas vezes impossibilita uma assimilação imediata (fazendo surgir por parte de alguns, adjetivos como chato, arrastado ou hermético). Como se Gitai, por meio desses travellings atemporais, nos forçasse a ter uma interpretação mais fechada de seu filme, algo mais amplo e pretensioso, que impossibilitaria a pluralidade de leitura. Às vezes, a necessidade de incutir a mesma idéia em todos os seus filmes fracassa, por exemplo na frieza de concepção de Eden. Mas, quando acerta, é capaz de genuínos momentos de bom cinema político, como em Esther, Kippur, Kedma e neste Berlim Jerusalém.

Em Kedma e Kippur, os travellings funcionam muito mais como opção estética do que como comentário político, e talvez por isso mesmo sejam mais bem sucedidos. Em Esther, o travelling final expõe as personas dos atores que atuam no filme, numa chave brechtiana eficaz. No entanto, muitas vezes suas panorâmicas nos minutos finais pecam pelo exagero, como na cena em que meninos portando relógios de pulso assistem ao enforcamento de Haman - uma invasão dos anos 80 nos tempos bíblicos. Mas Gitai, inseguro de ainda não estar passando devidamente o seu recado, faz questão de virar a câmera em direção aos carros que passam numa rua colina abaixo.

O travelling final de Berlim Jerusalém estende-se por quase dez minutos, acompanhando a personagem Else, uma poetisa alemã que, para fugir do nazismo, migra para Jerusalém nos anos 30. Começa em 1946, passa por explosões, tumultos diversos, cartazes descolando dos muros, carros modernos, tudo isso em meio às narrações de diversos atentados terroristas. Quando deixa a personagem, perde-se em vitrines e muros, hesitando em captar o presente. Um curioso duelo entre intenção e instinto, como se a câmera adquirisse vontade própria e resolvesse abandonar a personagem - indicando o final do filme. Revela também a arbitrariedade de Gitai, incapaz de encerrar seu filme sem o seu movimento fetiche; movimento que aqui se mostra equivocado, até mesmo sem rigor, mas, talvez por isso mesmo, incrivelmente belo.

Há no filme uma outra personagem, Mania, uma russa que migra, como Else, de Berlim para Jerusalém - onde vai morar num kibbutz, e envolve-se com os movimentos da formação de Israel. Mas Mania aparece menos, e acaba funcionando mais como complemento às idéias de deslocamento e constante militância do cineasta (ele mesmo, um auto-exilado).

Berlim Jerusalém, para além de exemplificar com perfeição o cinema de Gitai, desenvolve-se como uma homenagem (se voluntária ou não, pouco importa) a Fassbinder. Há muito do diretor alemão nos travellings que acompanham Else, nos enquadramentos sinuosos, captando grades, janelas e vitrais. Gitai parece acreditar, sobretudo, numa espécie de enquadramento que coloca o personagem em detrimento do motivo (nisso ele se diferencia de Fassbinder, mais preocupado com o aspecto pictórico do quadro). Um belo exemplo (existem muitos mais) é a cena da fogueira, com metade dela fora do quadro, enquanto Else aproxima-se da câmera no centro do quadro.

É bem possível que seja por essa preferência de enquadramento que Berlim Jerusalem é considerado o mais humano de seus filmes. Ao abandonar uma possibilidade estética em favor da personagem, Gitai parece diminuir-se, dando mais espaço para suas atrizes. Notemos também que é um dos filmes mais comportados nos travellings (excetuando-se o do final, claro). Berlim Jerusalém tem, ainda, uma das mais impactantes aberturas do cinema de Gitai, onde se rompe a noção do que é encenado para o filme e o que é encenado dentro do filme. É como se Gitai anunciasse, sutilmente, o propósito básico de seu cinema – o de encenar o passado para falar do presente. Espetáculo e espetacularização em uma só nota, dissonante e um tanto estranha, mas que abre brilhantemente essa pungente carta de intenções.

Sérgio Alpendre