Para Amos Gitai, um travelling
não é questão de moral, mas uma palavra de ordem e relativização
dos tempos. Seus travellings rompem com uma noção
de dramaturgia onde o passado parece existir separadamente
do presente, enquanto tempo narrativo. Em seu cinema
, passado e presente convivem como duas realidades que
se fundem.
Há nesse procedimento duas vertentes: de um lado a militância
política, onde Gitai deposita sua revolta contra a violência
que foi, e continua sendo, a tônica involuntária do
Estado de Israel. Por vezes duro com seu próprio povo
(como em Diário
de Campanha, onde a câmera era usada como arma contra
os soldados israelenses que expulsavam os libaneses),
por vezes pertinente, colocando em perspectiva toda
a complicação que acontece quando limites geográficos
tentam abrigar diferentes povos e crenças.
De outro lado, há o aspecto formalista, que nos força
a uma análise fria do que está sendo mostrado e muitas
vezes impossibilita uma assimilação imediata (fazendo
surgir por parte de alguns, adjetivos como chato, arrastado
ou hermético). Como se Gitai, por meio desses travellings
atemporais, nos forçasse a ter uma interpretação mais
fechada de seu filme, algo mais amplo e pretensioso,
que impossibilitaria a pluralidade de leitura. Às vezes,
a necessidade de incutir a mesma idéia em todos os seus
filmes fracassa, por exemplo na frieza de concepção
de Eden. Mas,
quando acerta, é capaz de genuínos momentos de bom cinema
político, como em Esther,
Kippur, Kedma e neste Berlim Jerusalém.
Em Kedma e
Kippur, os travellings funcionam
muito mais como opção estética do que como comentário
político, e talvez por isso mesmo sejam mais bem sucedidos.
Em Esther, o travelling final expõe as
personas dos atores que atuam no filme, numa chave brechtiana
eficaz. No entanto, muitas vezes suas panorâmicas nos
minutos finais pecam pelo exagero, como na cena em que
meninos portando relógios de pulso assistem ao enforcamento
de Haman - uma invasão dos anos 80 nos tempos bíblicos.
Mas Gitai, inseguro de ainda não estar passando devidamente
o seu recado, faz questão de virar a câmera em direção
aos carros que passam numa rua colina abaixo.
O travelling final de Berlim Jerusalém estende-se por quase dez minutos, acompanhando a
personagem Else, uma poetisa alemã que, para fugir do
nazismo, migra para Jerusalém nos anos 30. Começa em
1946, passa por explosões, tumultos diversos, cartazes
descolando dos muros, carros modernos, tudo isso em
meio às narrações de diversos atentados terroristas.
Quando deixa a personagem, perde-se em vitrines e muros,
hesitando em captar o presente. Um curioso duelo entre
intenção e instinto, como se a câmera adquirisse vontade
própria e resolvesse abandonar a personagem - indicando
o final do filme. Revela também a arbitrariedade de
Gitai, incapaz de encerrar seu filme sem o seu movimento
fetiche; movimento que aqui se mostra equivocado, até
mesmo sem rigor, mas, talvez por isso mesmo, incrivelmente
belo.
Há no filme uma outra personagem, Mania, uma russa que
migra, como Else, de Berlim para Jerusalém - onde vai
morar num kibbutz, e envolve-se com os movimentos
da formação de Israel. Mas Mania aparece menos, e acaba
funcionando mais como complemento às idéias de deslocamento
e constante militância do cineasta (ele mesmo, um auto-exilado).
Berlim Jerusalém,
para além de exemplificar com perfeição o cinema de
Gitai, desenvolve-se como uma homenagem (se voluntária
ou não, pouco importa) a Fassbinder. Há muito do diretor
alemão nos travellings que acompanham Else, nos
enquadramentos sinuosos, captando grades, janelas e
vitrais. Gitai parece acreditar, sobretudo, numa espécie
de enquadramento que coloca o personagem em detrimento
do motivo (nisso ele se diferencia de Fassbinder, mais
preocupado com o aspecto pictórico do quadro). Um belo
exemplo (existem muitos mais) é a cena da fogueira,
com metade dela fora do quadro, enquanto Else aproxima-se
da câmera no centro do quadro.
É bem possível que seja por essa preferência de enquadramento
que Berlim Jerusalem
é considerado o mais humano de seus filmes. Ao abandonar
uma possibilidade estética em favor da personagem, Gitai
parece diminuir-se, dando mais espaço para suas atrizes.
Notemos também que é um dos filmes mais comportados
nos travellings (excetuando-se o do final, claro).
Berlim Jerusalém
tem, ainda, uma das mais impactantes aberturas do cinema
de Gitai, onde se rompe a noção do que é encenado para
o filme e o que é encenado dentro do filme. É como se
Gitai anunciasse, sutilmente, o propósito básico de
seu cinema – o de encenar o passado para falar do presente.
Espetáculo e espetacularização em uma só nota, dissonante
e um tanto estranha, mas que abre brilhantemente essa
pungente carta de intenções.
Sérgio Alpendre
|