A BATALHA DE AUSTERLITZ
Abel Gance, Austerlitz, França/Itália/Iugoslávia/Liechtenstein, 1960

"Eu sou um ator. E meu palco é o mundo!", responde Napoleão Bonaparte (Pierre Mondy), com sarcasmo, ao Papa Pio VII (Vittorio De Sica), para quem o futuro imperador não passa de mero comediante. Justificando a expressão "teatro de operações", Abel Gance, em A Batalha de Austerlitz, encena tanto as intrigas e artimanhas políticas que levam Napoleão ao trono quanto a maior vitória militar de sua carreira, ao derrotar as tropas austríacas e russas no embate que dá nome ao filme.

Expoente, com Jean Epstein e Marcel L’Herbier, do cinema de vanguarda francês, Abel Gance, durante a década de 20, escreve seis roteiros sobre a vida de Napoleão Bonaparte, personagem que representa a obsessão maior do cineasta, que o toma por ídolo pessoal. O fracasso financeiro, quando levado às telas em 1927, do espetacular Napoléon – início da cinebiografia napoleônica, que narra da infância até a invasão da Itália em 1795, e cujo centro nervoso é a participação do então general nos acontecimentos que precipitaram a Revolução Francesa, bem como sua identificação com os ideais de Robespierre, Danton e Saint Just – força Abel Gance a vender a conclusão a Lupu Pick, que filma, em 1929, Napoleão em Santa Helena. Mais de trinta anos são necessários a fim de que Gance, após reescrever (com Roger Richebé e com a futura cineasta Nelly Kaplan) o que seria o terceiro episódio do projeto original, possa finalmente realizar a obra-prima A Batalha de Austerlitz.

Já que a nova versão restaurada de Napoléon (que recupera os 330 minutos integrais do filme) não chega ao Brasil, comemore-se o lançamento, pela Classic Line, do DVD de A Batalha de Austerlitz, que preserva a janela de 1:2.35 – processo Dialyscope – tão cara a Gance, cuja tela triplicada de Napoléon significa uma das primeiras tentativas para a obtenção do formato. No entanto, em aparelhos de DVD que não desanamorfisam a imagem, A Batalha de Austerlitz é apresentado em 16:9 Anamórfico, o que esmaga o quadro e, em conseqüência, coloca os elementos de cena fora de proporção.

A Batalha de Austerlitz se compõe de duas partes: na primeira, a narrativa acompanha a ascensão de Bonaparte, de um dos três cônsules da República a imperador auto-coroado, enquanto a segunda mostra com impressionante detalhismo todas as táticas de guerra empregadas, pelos franceses e pelos austro-russos, em Austerlitz. Partes distintas, acarretando tratamentos diferenciados, pois, se a politicagem que fomenta o Império ocorre nos interiores palacianos, o combate que o assegura dá-se ao ar livre, junto aos soldados provenientes das classes baixas.

Politicagem que Gance aproxima explicitamente à sacanagem. As tramóias que se estabelecem, de início para deter os planos ingleses de derrubar Napoleão, e depois para conduzi-lo ao trono – paradoxo de retornar ao Império com o intuito de preservar os ideais revolucionários –, em nada devem às aventuras sexuais de Bonaparte com suas amantes (sobretudo Mlle. de Vaudey, interpretada por Leslie Caron), ou às escapadas de Joséphine (Martine Carol) com o cabeleireiro. É Pauline Bonaparte (Claudia Cardinale) quem melhor define as intenções do cineasta, ao afirmar que faz na cama com os homens o que seu irmão realiza nos gabinetes com a Europa. Quando segredos de Estado se comparam aos mistérios da alcova, quando, para Napoleão, favorecer parentes e aliados com cargos e pensões equivale a sustentar, com dinheiro público, os gastos excessivos das mulheres com que dorme.

Já na batalha, Abel Gance contrapõe o gênio militar de Napoleão à empáfia do general austríaco Weirother (Jack Palance), cuja tática apenas copia – como faz questão de dizer – outra já utilizada por Bonaparte. Mais do que oponente que serve para valorizar a vitória francesa, Weirother é a imagem em espelho do imperador, seu duplo. Se a História se repete somente como farsa, conforme Marx, Weirother encarna o aspecto cômico e patético – reforçado pela atuação circense de Palance – de todos os imitadores de Napoleão, bem como aponta para a originalidade deste em relação ao mundo que o cerca.

História, farsa: representação. Para Gance, trata-se de entender o próprio cinema enquanto repetição, enquanto potência para re-encenar eventos que já aconteceram no espaço e no tempo. Em A Batalha de Austerlitz, o cineasta se une a Jean Renoir ao teatralizar o real, ao ver tanto a política quanto a guerra como prolongamentos dos papéis sociais interpretados por cada personagem dentro da História, autora suprema que subordina os homens à sua vontade, manipula-os, transforma-os em atores – reparar como cada seqüência do filme se passa em cenário único, como no teatro, do mesmo modo que os demorados fades out que determinam a mudança de cena se equiparam ao descer da cortina que indica o final dos atos. Assim, é irrelevante procurar, no filme, qualquer aprofundamento psicológico ou humano em Napoleão, Talleyrand, Joséphine ou nas demais figuras que participam da construção histórica do Império francês: como demonstra a seqüência da coroação, filmada a partir de maquete feita a mando do futuro imperador, todos não passam de marionetes, simples bonecos cujas atuações no teatro europeu já se encontram previamente marcadas e determinadas.

Porém, Robert Fulton (Orson Welles) e Alboise de Portoise (Michel Simon) não se enquadram neste jogo criado e mantido pela História. Fulton, americano que inventa o barco a vapor, ao ser rejeitado por Napoleão, prevê o destino trágico do protagonista – e o imperador, de fato, será derrotado pela marinha inglesa, através do Bloqueio Marítimo. Por sua vez, Alboise, soldado idoso que de tudo reclama, jamais se deixa impressionar por Bonaparte, pois nele enxerga apenas outro condenado, pela sucessão temporal dos acontecimentos que lhe fogem ao controle, à morte inevitável.

Se em Renoir o teatro possibilita aos atores se libertarem de seus papéis para inventarem novos, em gance, ao contrário, constata-se que não há escapatória. A Batalha de Austerlitz, como Badaladas à Meia-Noite (Chimes at Midnight, 1965, de Orson Welles), segue a máxima de que o rei não detém a coroa, mas é antes a coroa que faz do rei o instrumento para se efetivar: no olhar perdido de Alboise após a vitória das tropas francesas, o qual parece expressar o ditado romano de que "toda glória é efêmera", a certeza de que Napoleão e seu Império estão com os dias contados, visto que a História, mesmo com os heróis, é implacável.

Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Classic Line)