A PAZ
Krzystof Kieslowski, Spokój, Polônia, 1976

Não deixa de ser um tanto peculiar a chegada deste filme de Kieslowski às telas de cinema brasileira durante a Mostra de SP - ainda mais, diga-se, projetado em vídeo. O ator principal Jerzy Stuhr, também cineasta e convidado bastante constante da Mostra, é quem deu a explicação: num encontro anterior com Leon Cakoff, falou de um filme de Kieslowski mais antigo que quase não tinha sido visto por ninguém, e interessou o organizador da Mostra em trazer o filme este ano. Contextualizada sua presença um tanto aleatória em SP, e embora não seja de jeito nenhum um mau filme, também não é por acaso que A Paz pouco interesse causou em sua época: trata-se de um filme claramente menos marcante (para o bem ou para o mal, aí depende do gosto do freguês quanto ao cinema do diretor polonês) dentro da obra de Kieslowski.

Sabe-se que o cineasta polonês começou sua carreira dirigindo documentários, e depois fez a transição para a ficção. Pois bem, sua carreira no registro ficcional também faz um trajeto algo semelhante no que se refere a suas relações com um certo realismo de encenação: cada vez mais, Kieslowski foi abrindo mão de uma linguagem extremamente direta, em busca de uma certa poética da expressão audiovisual. Não se trata necessariamente de uma evolução qualitativa, mas sem dúvida é um caminho claramente perceptível, e dentro dele A Paz encontra-se bem no início. Desde os primeiros planos, numa prisão, a mise-en-scène e o trabalho com os atores buscam um ultra-realismo, uma sensação até mesmo bastante perto do documental nesta história dos dramas de uma determinada classe proletária polonesa.

Na estruturação de sua história, Kieslowski faz um uso bastante interessante de elipses temporais e de cortes em meio à ação, para fazer com que a história do ex-presidiário e trabalhador Gralak evolua em saltos um tanto bruscos, buscando nitidamente a negação de uma dramaturgia cinematográfica mais convencional, mais fluida. O mais interessante dentro deste trabalho buscado é uma certa des-psicologização do drama do personagem, uma vez que nos mantemos a considerável distância dele no que sabemos de fato de sua vida (nunca sabendo exatamente porque ele foi preso, por exemplo, ou tendo versões um tanto contraditórias de fatos importantes, como sua relação com os pais), enquanto nos mantemos radicalmente próximos no que se refere à relação da câmera com o objeto filmado. De fato, não seria absurdo comparar o trabalho estético de Kieslowski neste filme com a forma que seria levada ao paroxismo no cinema dos irmãos Dardenne, bem mais recentemente.

No entanto, mesmo que este jogo de aproximação/distanciamento do personagem mantenha interesse inegável, o que não se consegue deixar de perceber, na medida em que a trama evolui, é um claro viés trágico por parte do cineasta - e aí sim pode-se afirmar uma quebra completa com o cinema dos Dardenne. Se no cinema dos irmãos belgas o trajeto duro de seus personagens é inequívoco no que afirma ao seu final quanto a possibilidade da redenção pelo humano, Kieslowski afirma seguidamente uma trajetória marcada pelo jogo da culpa com a perseguição, que leva ao mais que esperado (e mesmo esperado no que tem de abrupto, uma vez que este é o tom do filme todo) final trágico. Neste, ressurge inequivocamente como imagem-síntese do que interessa a Kieslowski um grupo de cavalos que cavalga solto por uma floresta - e que é tudo que seria negado, enquanto imagem idílica (a paz que entitula o filme), a homens como seu protagonista. A inserção desta imagem, aliás, como motif que surge no filme algumas vezes, pode ser lida como um ruído no realismo da encenação que antecipa alguns dos interesses do cineasta. Pois é este fechamento que reforça a sensação que o filme constrói lentamente (de que nenhum momento de contato humano resistirá ao teste no final), e que diminui justamente aquilo que o filme quer parecer afirmar (uma espontaneidade que vem da encenação/dramaturgia), uma vez que aprisiona toda sua aparente liberdade num conceito absolutamente apriorístico e pessimista a respeito das relações humanas.

Eduardo Valente