Não deixa de ser um tanto
peculiar a chegada deste filme de Kieslowski às
telas de cinema brasileira durante a Mostra de SP -
ainda mais, diga-se, projetado em vídeo. O ator
principal Jerzy Stuhr, também cineasta e convidado
bastante constante da Mostra, é quem deu a explicação:
num encontro anterior com Leon Cakoff, falou de um filme
de Kieslowski mais antigo que quase não tinha
sido visto por ninguém, e interessou o organizador
da Mostra em trazer o filme este ano. Contextualizada
sua presença um tanto aleatória em SP,
e embora não seja de jeito nenhum um mau filme,
também não é por acaso que A
Paz pouco interesse causou em sua época:
trata-se de um filme claramente menos marcante (para
o bem ou para o mal, aí depende do gosto do freguês
quanto ao cinema do diretor polonês) dentro da
obra de Kieslowski.
Sabe-se que o cineasta polonês começou
sua carreira dirigindo documentários, e depois
fez a transição para a ficção.
Pois bem, sua carreira no registro ficcional também
faz um trajeto algo semelhante no que se refere a suas
relações com um certo realismo de encenação:
cada vez mais, Kieslowski foi abrindo mão de
uma linguagem extremamente direta, em busca de uma certa
poética da expressão audiovisual. Não
se trata necessariamente de uma evolução
qualitativa, mas sem dúvida é um caminho
claramente perceptível, e dentro dele A Paz
encontra-se bem no início. Desde os primeiros
planos, numa prisão, a mise-en-scène
e o trabalho com os atores buscam um ultra-realismo,
uma sensação até mesmo bastante
perto do documental nesta história dos dramas
de uma determinada classe proletária polonesa.
Na estruturação de sua história,
Kieslowski faz um uso bastante interessante de elipses
temporais e de cortes em meio à ação,
para fazer com que a história do ex-presidiário
e trabalhador Gralak evolua em saltos um tanto bruscos,
buscando nitidamente a negação de uma
dramaturgia cinematográfica mais convencional,
mais fluida. O mais interessante dentro deste trabalho
buscado é uma certa des-psicologização
do drama do personagem, uma vez que nos mantemos a considerável
distância dele no que sabemos de fato de sua vida
(nunca sabendo exatamente porque ele foi preso, por
exemplo, ou tendo versões um tanto contraditórias
de fatos importantes, como sua relação
com os pais), enquanto nos mantemos radicalmente próximos
no que se refere à relação da câmera
com o objeto filmado. De fato, não seria absurdo
comparar o trabalho estético de Kieslowski neste
filme com a forma que seria levada ao paroxismo no cinema
dos irmãos Dardenne, bem mais recentemente.
No entanto, mesmo que este jogo de aproximação/distanciamento
do personagem mantenha interesse inegável, o
que não se consegue deixar de perceber, na medida
em que a trama evolui, é um claro viés
trágico por parte do cineasta - e aí sim
pode-se afirmar uma quebra completa com o cinema dos
Dardenne. Se no cinema dos irmãos belgas o trajeto
duro de seus personagens é inequívoco
no que afirma ao seu final quanto a possibilidade da
redenção pelo humano, Kieslowski afirma
seguidamente uma trajetória marcada pelo jogo
da culpa com a perseguição, que leva ao
mais que esperado (e mesmo esperado no que tem de abrupto,
uma vez que este é o tom do filme todo) final
trágico. Neste, ressurge inequivocamente como
imagem-síntese do que interessa a Kieslowski
um grupo de cavalos que cavalga solto por uma floresta
- e que é tudo que seria negado, enquanto imagem
idílica (a paz que entitula o filme), a homens
como seu protagonista. A inserção desta
imagem, aliás, como motif que surge no
filme algumas vezes, pode ser lida como um ruído
no realismo da encenação que antecipa
alguns dos interesses do cineasta. Pois é este
fechamento que reforça a sensação
que o filme constrói lentamente (de que nenhum
momento de contato humano resistirá ao teste
no final), e que diminui justamente aquilo que o filme
quer parecer afirmar (uma espontaneidade que vem da
encenação/dramaturgia), uma vez que aprisiona
toda sua aparente liberdade num conceito absolutamente
apriorístico e pessimista a respeito das relações
humanas.
Eduardo Valente
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