ANATOMIA DE UM CRIME
Otto Preminger, Anatomy of a murder, EUA, 1959

Uma estrada americana. Sob a música-tema do filme, um carro avança em direção à câmera. Pela janela, vê-se o rosto familiar de Jimmy Stewart. Enquanto dirige, ele balança a cabeça, ao ritmo da música. Logo se reconhece: um jazz elegantíssimo. Do mais puro Duke Ellington. E o que marca o espectador, a imagem que não lhe sairá do espírito durante os 160 minutos restantes - entre intrigas e complôs, entre estupro e assassinato, entre Bem e Mal, justiça e injustiça, verdade, mentira... - é Jimmy balançando a cabeça, com um sorriso malandro.

Talvez este plano inicial de Anatomia de um crime nada queira dizer. Verdade que ele não parece dos mais funcionais. É difícil dar-lhe um sentido, além da piada; mas é certo, entretanto, que ele anuncia o espírito do que vem pela frente. Anuncia que o filme vai girar em torno daquele personagem (o que balança a cabeça) e que aquele personagem gosta de jazz. Esta última afirmativa pode parecer supérflua, mas explico: gostar de jazz, aqui, não é só gostar de uma música, mas de um estilo de vida - de enxergar a vida: como cineasta, como músico, como advogado e homem da lei. Ou como um simples ser de passagem por este planeta, tentando fazer o melhor e se divertir (afinal, para emprestar uma frase do próprio personagem, uma dessas frases de almanaque que proferidas por Stewart soa de uma profundidade abissal: "As pessoas não são sempre boas ou sempre más: as pessoas são muitas coisas").

O personagem em questão se chama Paul Biegler e é advogado, de ótima reputação. Quando o vimos de carro, no plano inicial, ouvindo Duke Ellington, voltava ele de uma pescaria. O salário de sua empregada está atrasado, assim como - é provável - a maioria de suas contas. Acima de tudo, faz muito tempo que ele não pega um bom caso. Despreocupado com as dívidas e com o desemprego, ele pesca. Ainda no carro, passando por um bar, encontra Parmall (Arthur O’ Neill), gênio da advocacia e inseparável amigo, extensão de seu espírito vadio - mesmo que um pouco mais descontrolado na bebida - e que o acompanha em longas madrugadas filosóficas, onde a ciência do direito é discutida entre dois acordes de piano. Pois, como se sabe, Biegler gosta de jazz. Nesta mesma noite, ele dedilha o piano, em companhia do amigo, quando o telefone toca. Segue então uma seqüência memorável, em que Biegler conversa no telefone dedilhando o piano, e os acordes elegantes ditam o ritmo do filme, mostrando que Anatomia de um Crime tem um jeito, uma sonoridade, que passa intrinsecamente pelo jazz.

Começa a se desenrolar a intriga, o processo se anuncia. Mais um filme de tribunal. Sabemos que será preciso obedecer algumas regras. Um gênero ordena certos clichês, de que o filme não escapará (até o final se parece muito com o de Testemunha de Acusação). Assim, temos dois advogados, gênios do direito, ambos fora do sistema. Ou seja, puros, porque não sujaram a mão com o arrivismo, e, portanto, renegados pelo próprio sistema. Lembremos a regra máxima: o primeiro conflito de um filme de tribunal não é o caso (um conflito externo), e sim o advogado (com seu conflito interno). Aos poucos, é claro, os dois conflitos irão se misturar. Às vezes, temos o advogado que perdeu a reputação; outras, o que perdeu o amor da filha, ou da esposa; há, ainda, o que perdeu a fé e quase tudo que poderia perder. O caso é sempre sua redenção, o único jeito de recuperar o que perdeu (quem não se lembra de Paul Newman em O Veredicto: "Não haverá outro caso... Este caso é o caso! Este caso é o caso!"). Paul Biegler, por sua vez, está mais para um solteirão (na linha de um Charles Laughton em Testemunha de Acusação, se bem que menos afetado) que parece querer recuperar seu amor pelo direito.

Mandamentos respeitados, Anatomia de um Crime vai além. Logo se vê que este não é, tão somente, um filme de tribunal. Apesar de carregar todos os clichês do gênero, a obra de Preminger transita entre diversas categorias. E com toda naturalidade, simplicidade, elegância: o filme flui. Fluir quer dizer não forçar, não se fazer sentir, perceber. Nenhum esforço - aparente - de direção. De musical a filme noir, de filme noir a drama, de drama a tribunal... Aí está a sonoridade. Neste sentido, a música de Duke Ellington não cumpre uma função meramente decorativa. Preminger, que é talvez o cineasta que melhor utilizou a música no cinema, faz do jazz uma voz interior de seus personagens. (Esta, inclusive, não foi a primeira vez que Preminger usou o jazz. A trilha de O Homem do Braço de Ouro, composta por Elmer Bernstein, é a primeira integralmente inspirada pelo jazz em Hollywood. Além disso, enquanto os outros filmes sempre usaram o gênero para criar atmosferas e ambientes – normalmente de forma negativa, evocando o mundo das drogas –, a música de Bernstein tira todo um potencial dramático do jazz, até então inédito no cinema.) A seqüência do bar, em que Duke toca com seus parceiros de sempre (Johnny Hodges, Clark Terry, Harry Carney e Paul Gonsalves) testemunha entre os músicos a mesma cumplicidade entre Biegler e Parmall - algo de um companheirismo tocante.

Esta mesma cumplicidade se dá entre todos os elementos do filme - música, imagem, atores, fotografia, montagem - se completando e formando um só. A impressão que se tem, principalmente, é de que estão todos em seu melhor momento, de que Preminger tirou o máximo de cada um, compartilhando sua elegância, emoção e sutileza, numa unidade perfeita, entrosada, que vai do contra-regra ao porteiro do estúdio. Poderia haver realização maior para um diretor de cinema? Formada a simbiose, fica impossível não funcionar. O filme corre, tranqüilo, como numa longa reta, sem acidente nenhum.

Bolívar Torres Corrêa

(VHS/DVD Columbia)