ALICE NÃO MORA MAIS AQUI
Martin Scorsese, Alice doesn't live here anymore, EUA, 1974

Além dos inéditos – e obrigatórios – Alice Não Mora Mais Aqui e Quem Bate à Minha Porta?, a caixa que a Warner lançou com quatro filmes de Martin Scorsese ainda traz Caminhos Perigosos e Depois de Horas, dois dos melhores filmes dele, que já existiam em VHS mas agora ganham cópias em DVD com alguns extras interessantes. Apesar do recorte parecer meio aleatório, há alguma ligação possível entre os filmes, a começar pelo fato de que são obras menos vistas e menos comentadas de Scorsese e, no entanto, estão entre as melhores coisas por ele realizadas. Pode-se fazer associações mais curiosas também, a exemplo daquela que descobrirmos ao ver o making of que vem como extra no DVD de Depois de Horas. Nesse making of, descobrimos que Griffin Dunne, protagonista, produtor e co-roteirista de Depois de Horas, havia feito teste para o personagem do filho de Alice em Alice Não Mora Mais Aqui. O problema é que ele já tinha dezoito anos, e o personagem tem doze. Segundo Dunne, Scorsese olhou para ele e disse algo como: "Você é um pouco velho para o papel, mas vamos ver o que acontece". Ainda que Scorsese não se lembre daquilo, para Dunne foi um momento inesquecível, o que tornou o projeto de Depois de Horas uma espécie de sonho realizado.

Mas o ator que fez Tommy, o filho de Alice, naturalmente não foi Griffin Dunne, e sim o menino Alfred Lutter, que um ano depois apareceria em Love and Death, de Woody Allen. A geração dele no filme é vista como um berço de profunda irreverência. Tommy e sua amiga (feita por Jodie Foster ainda pré-adolescente – e muito cativante na sua interpretação) são pessoas tão mais espertas que os adultos quanto mais desrespeitosas. Eles desdenham dos gostos e da conduta emocional de seus pais, assim como das instituições e da monotonia do cenário interiorano do filme, reagindo a isso com tédio quase permanente. Um dos grandes trunfos do filme está justamente no detalhamento de gestos que não só Tommy e Alice, mas todos os personagens apresentam. É impressionante como, em toda a carreira de Scorsese, seus personagens estão sempre no estágio ideal em que a tipologia, a ambigüidade e a densidade existencial não se fecham uma na outra, mas se misturam para originar um concentrado protéico.

Foi justamente Gangues de Nova York a motivação principal da pauta da edição 49 de Contracampo, em que a construção do mito norte-americano no cinema era revista levando em conta o que se desenvolveu a partir do pós-Easy Rider. Estávamos falando de um movimento de revisão crítica que começa justamente com filmes como Alice Não Mora Mais Aqui, cujo prólogo não poderia ser mais emblemático: Alice, ainda criança, caminha pelos arredores de sua pequena casa situada em meio a um vale do oeste americano. O formato da tela está reduzido a 1:1.33, formato clássico por excelência. O cenário é nitidamente de estúdio, e a fotografia cria um pôr do sol que, de tão avermelhado, soa bastante artificial. A trilha sonora, é claro, entoa uma típica introdução de melodrama. Alice vagueia pelo espaço e fala seus sonhos em voz alta, até que sua mãe a chama para entrar, pois está tarde. É então que, convidado pela resposta mal-criada que Alice dirige à sua mãe, o filme realmente começa: a música é interrompida, a tela implode e se refaz em 1:1.85, ao passo que começa um estridente rock dos anos 70. A câmera percorre uma rua de casas iguais, escolhe uma delas e a invade (no plano em que Scorsese deixa já de entrada sua assinatura virtuosística). Em suma, o filme é direto com relação à sua proposta. Mas o que faz dele uma obra realmente singular é que esse recado inicial de "bem vinda à realidade, Alice" não é uma afirmação de fratura irreparável entre o imaginário sedutor do sonho americano e a vida amarga que ele pode encobrir. O que Scorsese faz aqui é o que Wenders depois também faria, ainda que na ótica do estrangeiro (Paris, Texas, Alice na Cidade): a reaproximação entre essa mitologia desacreditada (porém ainda fascinante), que povoou o cinema durante muito tempo, e o homem a ela não mais sensibilizado. O agente desse processo, evidentemente, é o próprio cinema. Após sofrer nas mãos de homens abrutalhados e indiferentes aos seus sonhos (o que inclui o marido, um motorista de caminhão da Coca-Cola que falece em acidente no início), Alice termina o filme achando um homem que pelo menos tenta compreendê-la. Ela decide, então, desistir da jornada de redescoberta e retorno às origens (Alice estava disposta a retornar à sua cidade natal) e ficar por ali mesmo, morando ao lado do personagem de Kris Kristofferson. Ao contrário de um signo mor da cultura consumista (o logo da Coca-Cola do uniforme que o marido de Alice não tirava nem quando estava em casa), ele usa um chapéu de caubói e tem como hobby tocar canções country no violão. De um lado e de outro, é de um estilo genuinamente americano que se está falando, não importa em que versão ele apareça ou vá agradar mais.

Assim como Five Easy Pieces/Cada um Vive Como Quer (1970), memorável obra-prima de Bob Rafelson, Alice Não Mora Mais Aqui possui ares de western moderno, ganha a estrada (como era palavra de ordem naquele momento) e se concentra em interiores para traçar um caloroso e pulsante retrato da vida do americano médio. São dois filmes que revelam cineastas ao mesmo tempo profundamente americanos – interessados tanto na crônica do seu cotidiano quanto na projeção do imaginário mais típico que perpassa toda a nação – e marcadamente tingidos pelo cinema moderno europeu. A câmera na mão em Alice Não Mora Mais Aqui em certos momentos atinge uma agressividade de movimentos que sugere uma vontade de intervir fisicamente na cena, tirando a decupagem do plano das composições dramáticas e das motivações psicológicas e colocando-a no plano da corporalidade que em Scorsese é irredutível a qualquer perscrutação de interioridade. Ele antecipa seus movimentos aos dos personagens, mas se equaliza com eles da mesma forma. Ellen Burstyn, que interpreta a protagonista e venceu o Oscar por esta atuação, ganha um espaço de criação que poucos diretores são capazes de oferecer sem abdicar de tamanha preocupação estilística. Indo na direção contrária aos tradicionais seriados americanos de família, Alice acabou gerando uma série televisiva – o que diz bastante sobre o estado de coisas na América dos anos 70.

Cléber Eduardo

(DVD Warner)