AS 48 CACHOEIRAS DE AKAME
Genjiro Arato, Akame shijuya taki shinju misui, Japão, 2003

Genjiro Arato foi produtor dos filmes independentes de Seijun Suzuki nos anos 80-90 (Zigeunerweisen, Kagerosa, Yumeji). Isso, por si só, não seria uma credencial, não viesse essa atividade como produtor dar continuidade a uma carreira abortada após o escândalo de A Marca do Assassino (1967). As 48 Cachoeiras de Akame pode não ser tão visualmente delirante ou impecável quanto os filmes da produção mais recente de Suzuki, mas guarda com muito brio uma certa poética da opacidade e da imprevisibilidade que encanta e assombra. Em seu segundo longa-metragem (o primeiro, The Girl of Silence, de 1995, é uma verdadeira incógnita), Arato escolhe como personagem principal um homem truncado, de passado incerto, que decide reiniciar sua vida a partir do zero. O filme parece com o personagem: existe um movimento de suspense/suspensão que permeia o filme e, à medida que nos impede de prever os próximos passos que a história tomará, causa uma estranha tensão num a princípio corriqueiro conto de convívio entre diferentes. As 48 Cachoeiras de Akami se movimenta com gestos insuspeitos, e apesar da facilidade da comparação com Suzuki, o filme tem provavelmente muito mais a ver com os filmes de Raul Ruiz. Aliás, é o filme que esperávamos e esperamos de Ruiz e que há alguns anos ele não fornece mais.

Yoichi Ikushima (Takijiro Onishi) é um postulante a escritor que, em meio a dúvidas sobre sua vocação, decide reiniciar a vida em solo mais palpável, mesmo que isso signifique trabalhar como trabalhador braçal, pegando continuamente pedaços de carne vermelha e branca para colocá-las em espetinhos. Ikushima se submete a tudo: ao baixo salário, à intrusão da empregadora e proprietária do apartamento que habita, à grosseria de pessoas que habitam o mesmo prédio. Aliás, o próprio trabalho de preparar e empilhar espetinhos é filmado mais como uma espécie de terapia ocupacional do que como um trabalho propriamente. Estamos diante de um personagem-problema, de alguém que, traumatizado, não corresponde mais com os acting outs ou com os surtos costumeiros dos personagens perturbados, mas reage com uma completa incapacidade de agir diante de um dado estado de coisas. Ikushima é um parente próximo dos protagonistas de Eureka e A Floresta Sem Nome, ambos de Shinji Aoyama, e de Carisma, Cure ou Água Viva de Kiyoshi Kurosawa: num limbo social e existencial provocado por uma sociedade (não só japonesa como mundial) que não supre as demandas de inserção das gerações mais jovens, aparece a apatia e a falta de caminho como processo generalizado.

Se Kiyoshi Kurosawa prefere perseguir essa temática utilizando geralmente os códigos do cinema de suspense e terror, Genjiro Arato prefere trabalhá-lo no seio de um drama-comédia de situação, onde um prédio congrega uma série de personagens pitorescos em suas manias e misteriosos em suas auras. Uma vez instalada a ficção (e instalado o protagonista em seu novo apartamento e emprego), o filme desenvolve sua primeira parte apresentando os personagens e delineando suas relações com Ikushima e entre si: um tatuador, a já referida empregadora-senhoria, a prostituta Aya e seu irmão estúpido e mafioso recém-saído da prisão. Posteriormente, o filme volta a fixar-se nos hábitos do protagonista, nada transparentes para nós, e na relação amorosa que se desenvolve entre ele e Aya, o que leva a narrativa a finalmente abandonar o seio daquele prédio e instalá-los em estações de trem, hotéis, até chegar à famosa localidade que dá título ao filme e que representa um dos pontos turísticos mais famosos de Kansai, onde os dois pretendem se suicidar (o título japonês traduz-se como "tentativa de suicídio duplo nas 48 cachoeiras de Akame"). As 48 Cachoeiras de Akame é tanto sobre personagens como sobre lugares. Uma das grandes forças do filme é criar as atmosferas em torno da qual os personagens vivem, sobretudo a do prédio, que ocupa mais da metade do filme.

Mas os prazeres do filme não são necessariamente tributários da história que está sendo contada e tampouco das questões sobre a vida que ele traz. O interesse de Genjiro Arato em seu segundo longa-metragem é antes de tudo tomar uma história interessante que sirva de cimento para organizar em torno dela uma série de procedimentos expressivos no uso de edição de som, de inserção de planos misteriosos (um menino que ao começo do filme tenta olhar diretamente para o sol, ou que no final do filme aparece numa das quedas d'água de Akame com uma rede de caçar borboletas), mas acima de tudo num clima de estranhamento que permeia todo filme e que se deve muito à capacidade que a câmera tem de realizar planos simples de cotidiano e misturá-los com planos que parecem tão estranhos como um sonho – ou na capacidade que tem cada plano de ser quase os dois ao mesmo tempo. As 48 Cachoeiras de Akame é um filme que se apropria de uma temática recorrente no melhor cinema japonês da atualidade (K. Kurosawa, Aoyama), encontra outros lugares para desenvolvê-la (tanto lugares narrativos como geográficos) e cria através da câmera um espaço audiovisual de experimento que faz delirar a vida cotidiana em cenário surrealista sem que para isso precise fazer a disjunção entre um mundo e outro (o que fatalmente iria diminuir consideravelmente o interesse no filme). A confiança na sensação mais que no sentido, na atmosfera mais que na história faz todo o encanto sobrenatural que brota desses 160 minutos um pouco irregulares, mas que se instalam aos poucos em nossa memória e dificilmente sairão tão cedo.

Ruy Gardnier