Genjiro
Arato foi produtor dos filmes independentes de Seijun
Suzuki nos anos 80-90 (Zigeunerweisen, Kagerosa,
Yumeji). Isso, por si só, não seria
uma credencial, não viesse essa atividade como
produtor dar continuidade a uma carreira abortada após
o escândalo de A Marca do Assassino (1967).
As 48 Cachoeiras de Akame pode não ser
tão visualmente delirante ou impecável
quanto os filmes da produção mais recente
de Suzuki, mas guarda com muito brio uma certa poética
da opacidade e da imprevisibilidade que encanta e assombra.
Em seu segundo longa-metragem (o primeiro, The Girl
of Silence, de 1995, é uma verdadeira incógnita),
Arato escolhe como personagem principal um homem truncado,
de passado incerto, que decide reiniciar sua vida a
partir do zero. O filme parece com o personagem: existe
um movimento de suspense/suspensão que permeia
o filme e, à medida que nos impede de prever
os próximos passos que a história tomará,
causa uma estranha tensão num a princípio
corriqueiro conto de convívio entre diferentes.
As 48 Cachoeiras de Akami se movimenta com gestos
insuspeitos, e apesar da facilidade da comparação
com Suzuki, o filme tem provavelmente muito mais a ver
com os filmes de Raul Ruiz. Aliás, é o
filme que esperávamos e esperamos de Ruiz e que
há alguns anos ele não fornece mais.
Yoichi Ikushima (Takijiro Onishi) é um postulante
a escritor que, em meio a dúvidas sobre sua vocação,
decide reiniciar a vida em solo mais palpável,
mesmo que isso signifique trabalhar como trabalhador
braçal, pegando continuamente pedaços
de carne vermelha e branca para colocá-las em
espetinhos. Ikushima se submete a tudo: ao baixo salário,
à intrusão da empregadora e proprietária
do apartamento que habita, à grosseria de pessoas
que habitam o mesmo prédio. Aliás, o próprio
trabalho de preparar e empilhar espetinhos é
filmado mais como uma espécie de terapia ocupacional
do que como um trabalho propriamente. Estamos diante
de um personagem-problema, de alguém que, traumatizado,
não corresponde mais com os acting outs
ou com os surtos costumeiros dos personagens perturbados,
mas reage com uma completa incapacidade de agir diante
de um dado estado de coisas. Ikushima é um parente
próximo dos protagonistas de Eureka e
A Floresta Sem Nome, ambos de Shinji Aoyama,
e de Carisma, Cure ou Água Viva
de Kiyoshi Kurosawa: num limbo social e existencial
provocado por uma sociedade (não só japonesa
como mundial) que não supre as demandas de inserção
das gerações mais jovens, aparece a apatia
e a falta de caminho como processo generalizado.
Se Kiyoshi Kurosawa prefere perseguir essa temática
utilizando geralmente os códigos do cinema de
suspense e terror, Genjiro Arato prefere trabalhá-lo
no seio de um drama-comédia de situação,
onde um prédio congrega uma série de personagens
pitorescos em suas manias e misteriosos em suas auras.
Uma vez instalada a ficção (e instalado
o protagonista em seu novo apartamento e emprego), o
filme desenvolve sua primeira parte apresentando os
personagens e delineando suas relações
com Ikushima e entre si: um tatuador, a já referida
empregadora-senhoria, a prostituta Aya e seu irmão
estúpido e mafioso recém-saído
da prisão. Posteriormente, o filme volta a fixar-se
nos hábitos do protagonista, nada transparentes
para nós, e na relação amorosa
que se desenvolve entre ele e Aya, o que leva a narrativa
a finalmente abandonar o seio daquele prédio
e instalá-los em estações de trem,
hotéis, até chegar à famosa localidade
que dá título ao filme e que representa
um dos pontos turísticos mais famosos de Kansai,
onde os dois pretendem se suicidar (o título
japonês traduz-se como "tentativa de suicídio
duplo nas 48 cachoeiras de Akame"). As 48 Cachoeiras
de Akame é tanto sobre personagens como sobre
lugares. Uma das grandes forças do filme é
criar as atmosferas em torno da qual os personagens
vivem, sobretudo a do prédio, que ocupa mais
da metade do filme.
Mas os prazeres do filme não são necessariamente
tributários da história que está
sendo contada e tampouco das questões sobre a
vida que ele traz. O interesse de Genjiro Arato em seu
segundo longa-metragem é antes de tudo tomar
uma história interessante que sirva de cimento
para organizar em torno dela uma série de procedimentos
expressivos no uso de edição de som, de
inserção de planos misteriosos (um menino
que ao começo do filme tenta olhar diretamente
para o sol, ou que no final do filme aparece numa das
quedas d'água de Akame com uma rede de caçar
borboletas), mas acima de tudo num clima de estranhamento
que permeia todo filme e que se deve muito à
capacidade que a câmera tem de realizar planos
simples de cotidiano e misturá-los com planos
que parecem tão estranhos como um sonho
ou na capacidade que tem cada plano de ser quase os
dois ao mesmo tempo. As 48 Cachoeiras de Akame é
um filme que se apropria de uma temática recorrente
no melhor cinema japonês da atualidade (K. Kurosawa,
Aoyama), encontra outros lugares para desenvolvê-la
(tanto lugares narrativos como geográficos) e
cria através da câmera um espaço
audiovisual de experimento que faz delirar a vida cotidiana
em cenário surrealista sem que para isso precise
fazer a disjunção entre um mundo e outro
(o que fatalmente iria diminuir consideravelmente o
interesse no filme). A confiança na sensação
mais que no sentido, na atmosfera mais que na história
faz todo o encanto sobrenatural que brota desses 160
minutos um pouco irregulares, mas que se instalam aos
poucos em nossa memória e dificilmente sairão
tão cedo.
Ruy Gardnier
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