UKAMAU
Jorge Sanjinés, Ukamau/Así es!, Bolívia, 1966

O primeiro longa-metragem de Sanjinés nos instiga por dois aspectos: um, pela busca de um cinema de identidade nacional (idéia cara nos anos 60/70) e, para quem viu as obras posteriores do cineasta, conhecer o ponto de partida do Grupo, que adotou o nome do filme, para realizar um cinema andino, um "cine junto al pueblo". Os dois aspectos se unem: fazer um cinema boliviano, um cinema de identidade nacional, é se voltar para a cultura indígena, compreendê-la e afirmá-la. Em suma, a questão social, nos países ‘colonizados’, é antes de tudo uma questão racial. Frantz Fanon, em sua obra-prima "Os condenados da terra", questiona o marxismo e os partidos nacionais por seu eurocentrismo. Para evocar a consciência de classe nesses países é necessário sublinhar o fator racial, subestimado pelos autores marxistas: "Nas colônias, a infra-estrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é conseqüência: se é rico porque é branco, se é branco porque é rico"(1). Ou seja, as idéias da esquerda tradicional, da luta proletária pela revolução que irá conciliar as relações de produção com o atual estágio das forças produtivas, não funcionam nos países do Terceiro Mundo, sendo necessária uma reformulação teórica, criar novas idéias. Esse processo de reformulação pode ser testemunhado no cinema através da obra de Sanjinés: a partir de uma linguagem cinematográfica tradicional chegou a um cinema singular, fruto de autocrítica e de anos de experimentação.

Fanon afirma que o colonialismo é um mundo maniqueísta: de um lado, o colonizador; de outro, o colonizado. Ukamau (Así es!) é o confronto de dois pólos diametralmente opostos, a cultura indígena versus a civilização branca, traduzida na vingança pessoal do índio Andrés Mayta ao mestiço Rosendo Ramos. O enredo é muito simples: Andrés vive com sua abnegada e bela esposa Sabina na Ilha do Sol, no Lago Titicaca. Um dia, ele vai à feira vender por conta própria os produtos que planta, sem passar pelo intermediário, o mestiço Ramos. Durante sua ausência, Ramos tenta violar Sabina, que por resistir, termina sendo assassinada. A partir de então, o enredo se baseia na constante expectativa se Andrés irá vingar-se ou não. No final ocorre o clímax, quando Ramos, em uma viagem solitária, é seguido discretamente por Andrés, que após um duelo corpo a corpo, mata o homicida de sua amada esposa.

O que nos salta aos olhos no filme é que a apresentação dos personagens ocorre basicamente após o crime que deflagra a narrativa. As primeiras seqüências possuem um tom documental, com Andrés e Sabina na ilha, integrados à terra, com um claro objetivo de emocionar o espectador pela fotografia, com a beleza da paisagem, a vegetação e o brilho do sol nas águas do lago. Um caráter sumamente idílico e pitoresco, como no plano do barco deslizando no Titicaca (que era sagrado para os Incas). Portanto, os primeiros minutos do filme exibe uma harmonia ‘homem-terra’, uma ordem primordial que será evocada, ao longo da narrativa, após sua ruptura provocada por um elemento da cultura branca. Esse viés documental não se resume ao início do filme, mas o sustenta narrativamente ao contrapor o cotidiano dos antagonistas. Enquanto Andrés vive junto com seus companheiros, participa das atividades da comunidade e visita (sozinho) o túmulo de Sabina; Ramos é duro com os indígenas, vai à missa mas bebe e bate em sua esposa, se diverte com seus amigos, mas embriagados brigam entre si por uma discussão banal. Assistimos a dois tipos de vida, e podemos identificar de forma bem clara qual dos personagens é mais ético e próximo à felicidade. Porém, a morte de Sabina paira sobre todo o filme.

A morte, tema caro à obra de Sanjinés, é o esteio da narrativa de Ukamau (Así es!). Ela deflagra o enredo e o desenvolve. Logo após o crime, Ramos foge enquanto Andrés volta da cidade. Já nesta seqüência, o fator ‘medo’ é conduzido pelo som da quena (flauta típica andina). Durante todo o filme, Ramos escuta a suave melodia da quena e se apavora. Esse som, que o persegue, trabalha mais o medo que o remorso. O que podemos deduzir sobre Ramos não é a culpa por ter matado Sabina, mas o medo constante de ser morto por seu marido. E aqui identificamos o papel do racismo no mestiço Ramos - o que o intranqüiliza não é a morte de uma índia, mas a sua própria morte nas mãos de um provável vingador (índígena, expresso por um dos elementos mais ‘folclóricos’- para nós brancos – das comunidades andinas, os seus instrumentos de sopro). O personagem de Andrés é trabalhado não através dos diálogos, mas da música e de sua inserção na paisagem. Em certos momentos, em algumas seqüências de Andrés junto à sepultura da esposa ou tocando a sua quena, ocorre uma ‘seqüência subjetiva’ com o aparecimento de Sabina sozinha entre as árvores ou a lembrança do dia de suas bodas. A música (da quena) é o elemento perturbador da narrativa, que quebra o tom documental do filme em seu registro do dia-a-dia dos antagonistas. Evocação de um passado feliz para Andrés; medo de uma vingança no futuro para Ramos. Assim, a melodia da quena é o fator de suspense da trama, i. e., a distensão temporal de uma ação que ainda não se completou. Melhor dito, não sabemos se irá se completar ou não, pois o enigmático Andrés, tocando bucolicamente a sua flauta, não demonstra ser uma pessoa transtornada e violenta, sedenta de vingança. E é assim, pelo aspecto enigmático (e introspectivo) do vingador que o suspense é construído.

É lícito, através dessa característica, aproximar Ukamau (Así es!) de um ‘western psicológico’, que estava sendo trabalhado nesse mesmo período (segunda metade dos anos 60) por Sergio Leone. A violência é semeada por personagens enigmáticos e errantes mas longe da contraposição maniqueísta entre o ‘caubói bom’ e o ‘bandoleiro mal’ do western clássico (e aqui não podemos deixar de evocar o racismo presente nesses filmes, em seus vilões indígenas e hispanos). A obra de Leone re-siginifica um dos elementos mais importantes do cinema norte-americano (e por conseguinte, do gênero western): o herói. Na verdade, esse processo se iniciou nos anos 50, com o fenômeno que Bazin chama de ‘meta-western’. Em sua opacidade, o herói épico transparece um valor simbólico (moral), como elemento civilizador na terra sem lei. O western moderno o questiona, matizado por heróis descompassados em sua função dramática, titubeando em suas ações e exibindo uma ‘ética da violência’ onde o que é moral (lícito) é um tanto indefinido. Todo o esforço de Ukamau (Así es!) é exibir, quase que didaticamente, ao espectador quem é o bom e quem é o mau, porém Andrés não é um herói épico, pois está constantemente adiando a sua função heróica. O fato do filme definir os personagens após o crime, sobretudo por um mecanismo que aproxima do ‘documentário’, rompe com uma narrativa tradicional, mas às vezes falha por um uso de ‘idealização’ da ordem original rompida. As seqüências de Andrés lembrando de sua querida esposa são um tanto gratuitas, pois a música e a paisagem bastam para evocar a sua felicidade perdida. O que prejudica, mas simultaneamente, instiga o filme é sobretudo o uso do herói - por vezes enigmático (ou débil) e em outros momentos, um esforço para idealizá-lo em contraposição à vida mesquinha de seu antagonista. Não é por acaso que será justamente em relação à figura do herói que Sanjinés realizará a sua autocrítica em busca de um cinema andino. E junto com essa remodelação do herói, a necessidade de uma outra concepção de enquadramento e de montagem.

Assim, é interessante contrapor os dois pontos desse processo: a estréia em Ukamau (Así es!) e a maturidade em La nación clandestina. Em ambos, vemos a presença de um protagonista. O Sebastián Mamani (de La nación clandestina), em seu regresso à comunidade, condensa os valores da cultura andina através da necessidade vital de ser reintegrado ao seu universo simbólico enquanto que Andrés Mayta encontra na vingança pessoal não somente a satisfação do desejo de justiça, mas a afirmação de uma harmonia que foi rompida pela civilização branca. Contudo, o drama pessoal de Sebastián é trabalhado por lembranças de sua tumultuada relação com sua comunidade enquanto que Andrés (e a sua quena) são trabalhados a partir da inter-relação com seu antagonista mestiço. Em suma, vemos um mecanismo inverso nos filmes (embora com a mesma intenção de valorizar a cultura andina): o drama pessoal de Sebastián serve como simples meio de expressar o papel do coletivo ao passo que o drama de Andrés é o centro da narrativa, pelo qual é valorizado, em termos pessoais, a sua cultura. O mesmo mecanismo inverso ocorre na forma. A elaboração teórica do ‘plano seqüência integral’, posto na prática em La nación clandestina, se traduz pelo movimento circular da câmera, integrando o personagem à paisagem e, sobretudo, um enquadramento (em plano geral) em que insere o grupo e suas ações. Em Ukamau (Así es!), ocorre o uso de primeiros (e primeiríssimos) planos picotados na construção do clímax (nas seqüências de desejo que antecede a tentativa de estupro e o de duelo final entre os antagonistas) e os planos gerais de inserção do personagem solitário na paisagem árida (que remete ao western). A interação dos planos picotados é uma clara referência ao cinema mudo soviético, com o uso sucessivo de primeiros planos em detrimento de planos gerais. Embora o conceito de ‘personagem coletivo’ tenha sido criado pelos soviéticos (seja nas massas na fase construtivista clássica de Eisenstein ou no protagonista-símbolo de uma classe em Pudovkin), a desvalorização do primeiro plano e o uso de um plano contínuo sem cortes denota a busca de Sanjinés em aplicar tal conceito a partir de características da cultura coletivista andina (junto com uma nova concepção de "direção de atores"). Isso significa um afastamento das conclusões da teoria soviética, baseada no "princípio de Kulechov" (a significação provém da interação dos planos entre si, i. e., o espectador não suporta o corte; há uma tendência lógica em construir uma continuidade entre os planos). Portanto, encontramos um procedimento ‘fanoniano’ na obra de Sanjinés, na qual o modelo clássico de ‘cinema marxista’ (o construtivismo soviético) é re-conceitualizado por fatores raciais condizentes ao processo revolucionário nos países do Terceiro Mundo. Ukamau (Así es!) é, em termos de narrativa, um filme ambíguo e problemático, sobretudo por seu herói, mas é muito claro em sua proposta: um cinema militante, de forte caráter nacional. E foi por essa via que o Grupo Ukamau construiu uma obra sem comparação na cinematografia ocidental.

1) FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: Gallimard, 1991. p. 70

Fabián Nuñez