O primeiro longa-metragem de
Sanjinés nos instiga por dois aspectos: um, pela
busca de um cinema de identidade nacional (idéia
cara nos anos 60/70) e, para quem viu as obras posteriores
do cineasta, conhecer o ponto de partida do Grupo, que
adotou o nome do filme, para realizar um cinema andino,
um "cine junto al pueblo". Os dois aspectos
se unem: fazer um cinema boliviano, um cinema de identidade
nacional, é se voltar para a cultura indígena,
compreendê-la e afirmá-la. Em suma, a questão
social, nos países ‘colonizados’, é antes
de tudo uma questão racial. Frantz Fanon, em
sua obra-prima "Os condenados da terra", questiona
o marxismo e os partidos nacionais por seu eurocentrismo.
Para evocar a consciência de classe nesses países
é necessário sublinhar o fator racial,
subestimado pelos autores marxistas: "Nas colônias,
a infra-estrutura econômica é igualmente
uma superestrutura. A causa é conseqüência:
se é rico porque é branco, se é
branco porque é rico"(1). Ou seja, as idéias
da esquerda tradicional, da luta proletária pela
revolução que irá conciliar as
relações de produção com
o atual estágio das forças produtivas,
não funcionam nos países do Terceiro Mundo,
sendo necessária uma reformulação
teórica, criar novas idéias. Esse processo
de reformulação pode ser testemunhado
no cinema através da obra de Sanjinés:
a partir de uma linguagem cinematográfica tradicional
chegou a um cinema singular, fruto de autocrítica
e de anos de experimentação.
Fanon afirma que o colonialismo é um mundo maniqueísta:
de um lado, o colonizador; de outro, o colonizado. Ukamau
(Así es!) é o confronto de dois pólos
diametralmente opostos, a cultura indígena versus
a civilização branca, traduzida na vingança
pessoal do índio Andrés Mayta ao mestiço
Rosendo Ramos. O enredo é muito simples: Andrés
vive com sua abnegada e bela esposa Sabina na Ilha do
Sol, no Lago Titicaca. Um dia, ele vai à feira
vender por conta própria os produtos que planta,
sem passar pelo intermediário, o mestiço
Ramos. Durante sua ausência, Ramos tenta violar
Sabina, que por resistir, termina sendo assassinada.
A partir de então, o enredo se baseia na constante
expectativa se Andrés irá vingar-se ou
não. No final ocorre o clímax, quando
Ramos, em uma viagem solitária, é seguido
discretamente por Andrés, que após um
duelo corpo a corpo, mata o homicida de sua amada esposa.
O que nos salta aos olhos no filme é que a apresentação
dos personagens ocorre basicamente após o crime
que deflagra a narrativa. As primeiras seqüências
possuem um tom documental, com Andrés e Sabina
na ilha, integrados à terra, com um claro objetivo
de emocionar o espectador pela fotografia, com a beleza
da paisagem, a vegetação e o brilho do
sol nas águas do lago. Um caráter sumamente
idílico e pitoresco, como no plano do barco deslizando
no Titicaca (que era sagrado para os Incas). Portanto,
os primeiros minutos do filme exibe uma harmonia ‘homem-terra’,
uma ordem primordial que será evocada, ao longo
da narrativa, após sua ruptura provocada por
um elemento da cultura branca. Esse viés documental
não se resume ao início do filme, mas
o sustenta narrativamente ao contrapor o cotidiano dos
antagonistas. Enquanto Andrés vive junto com
seus companheiros, participa das atividades da comunidade
e visita (sozinho) o túmulo de Sabina; Ramos
é duro com os indígenas, vai à
missa mas bebe e bate em sua esposa, se diverte com
seus amigos, mas embriagados brigam entre si por uma
discussão banal. Assistimos a dois tipos de vida,
e podemos identificar de forma bem clara qual dos personagens
é mais ético e próximo à
felicidade. Porém, a morte de Sabina paira sobre
todo o filme.
A morte, tema caro à obra de Sanjinés,
é o esteio da narrativa de Ukamau (Así
es!). Ela deflagra o enredo e o desenvolve. Logo
após o crime, Ramos foge enquanto Andrés
volta da cidade. Já nesta seqüência,
o fator ‘medo’ é conduzido pelo som da quena
(flauta típica andina). Durante todo o filme,
Ramos escuta a suave melodia da quena e se apavora.
Esse som, que o persegue, trabalha mais o medo que o
remorso. O que podemos deduzir sobre Ramos não
é a culpa por ter matado Sabina, mas o medo constante
de ser morto por seu marido. E aqui identificamos o
papel do racismo no mestiço Ramos - o que o intranqüiliza
não é a morte de uma índia, mas
a sua própria morte nas mãos de um provável
vingador (índígena, expresso por um dos
elementos mais ‘folclóricos’- para nós
brancos – das comunidades andinas, os seus instrumentos
de sopro). O personagem de Andrés é trabalhado
não através dos diálogos, mas da
música e de sua inserção na paisagem.
Em certos momentos, em algumas seqüências
de Andrés junto à sepultura da esposa
ou tocando a sua quena, ocorre uma ‘seqüência
subjetiva’ com o aparecimento de Sabina sozinha entre
as árvores ou a lembrança do dia de suas
bodas. A música (da quena) é o
elemento perturbador da narrativa, que quebra o tom
documental do filme em seu registro do dia-a-dia dos
antagonistas. Evocação de um passado feliz
para Andrés; medo de uma vingança no futuro
para Ramos. Assim, a melodia da quena é
o fator de suspense da trama, i. e., a distensão
temporal de uma ação que ainda não
se completou. Melhor dito, não sabemos se irá
se completar ou não, pois o enigmático
Andrés, tocando bucolicamente a sua flauta, não
demonstra ser uma pessoa transtornada e violenta, sedenta
de vingança. E é assim, pelo aspecto enigmático
(e introspectivo) do vingador que o suspense é
construído.
É lícito, através dessa característica,
aproximar Ukamau (Así es!) de um ‘western
psicológico’, que estava sendo trabalhado nesse
mesmo período (segunda metade dos anos 60) por
Sergio Leone. A violência é semeada por
personagens enigmáticos e errantes mas longe
da contraposição maniqueísta entre
o ‘caubói bom’ e o ‘bandoleiro mal’ do western
clássico (e aqui não podemos deixar
de evocar o racismo presente nesses filmes, em seus
vilões indígenas e hispanos). A obra de
Leone re-siginifica um dos elementos mais importantes
do cinema norte-americano (e por conseguinte, do gênero
western): o herói. Na verdade, esse processo
se iniciou nos anos 50, com o fenômeno que Bazin
chama de ‘meta-western’. Em sua opacidade, o
herói épico transparece um valor simbólico
(moral), como elemento civilizador na terra sem lei.
O western moderno o questiona, matizado por heróis
descompassados em sua função dramática,
titubeando em suas ações e exibindo uma
‘ética da violência’ onde o que é
moral (lícito) é um tanto indefinido.
Todo o esforço de Ukamau (Así es!)
é exibir, quase que didaticamente, ao espectador
quem é o bom e quem é o mau, porém
Andrés não é um herói épico,
pois está constantemente adiando a sua função
heróica. O fato do filme definir os personagens
após o crime, sobretudo por um mecanismo que
aproxima do ‘documentário’, rompe com uma narrativa
tradicional, mas às vezes falha por um uso de
‘idealização’ da ordem original rompida.
As seqüências de Andrés lembrando
de sua querida esposa são um tanto gratuitas,
pois a música e a paisagem bastam para evocar
a sua felicidade perdida. O que prejudica, mas simultaneamente,
instiga o filme é sobretudo o uso do herói
- por vezes enigmático (ou débil) e em
outros momentos, um esforço para idealizá-lo
em contraposição à vida mesquinha
de seu antagonista. Não é por acaso que
será justamente em relação à
figura do herói que Sanjinés realizará
a sua autocrítica em busca de um cinema andino.
E junto com essa remodelação do herói,
a necessidade de uma outra concepção de
enquadramento e de montagem.
Assim, é interessante contrapor os dois pontos
desse processo: a estréia em Ukamau (Así
es!) e a maturidade em La nación clandestina.
Em ambos, vemos a presença de um protagonista.
O Sebastián Mamani (de La nación clandestina),
em seu regresso à comunidade, condensa os valores
da cultura andina através da necessidade vital
de ser reintegrado ao seu universo simbólico
enquanto que Andrés Mayta encontra na vingança
pessoal não somente a satisfação
do desejo de justiça, mas a afirmação
de uma harmonia que foi rompida pela civilização
branca. Contudo, o drama pessoal de Sebastián
é trabalhado por lembranças de sua tumultuada
relação com sua comunidade enquanto que
Andrés (e a sua quena) são trabalhados
a partir da inter-relação com seu antagonista
mestiço. Em suma, vemos um mecanismo inverso
nos filmes (embora com a mesma intenção
de valorizar a cultura andina): o drama pessoal de Sebastián
serve como simples meio de expressar o papel do coletivo
ao passo que o drama de Andrés é o centro
da narrativa, pelo qual é valorizado, em termos
pessoais, a sua cultura. O mesmo mecanismo inverso ocorre
na forma. A elaboração teórica
do ‘plano seqüência integral’, posto na prática
em La nación clandestina, se traduz pelo
movimento circular da câmera, integrando o personagem
à paisagem e, sobretudo, um enquadramento (em
plano geral) em que insere o grupo e suas ações.
Em Ukamau (Así es!), ocorre o uso de primeiros
(e primeiríssimos) planos picotados na construção
do clímax (nas seqüências de desejo
que antecede a tentativa de estupro e o de duelo final
entre os antagonistas) e os planos gerais de inserção
do personagem solitário na paisagem árida
(que remete ao western). A interação
dos planos picotados é uma clara referência
ao cinema mudo soviético, com o uso sucessivo
de primeiros planos em detrimento de planos gerais.
Embora o conceito de ‘personagem coletivo’ tenha sido
criado pelos soviéticos (seja nas massas na fase
construtivista clássica de Eisenstein ou no protagonista-símbolo
de uma classe em Pudovkin), a desvalorização
do primeiro plano e o uso de um plano contínuo
sem cortes denota a busca de Sanjinés em aplicar
tal conceito a partir de características da cultura
coletivista andina (junto com uma nova concepção
de "direção de atores"). Isso
significa um afastamento das conclusões da teoria
soviética, baseada no "princípio
de Kulechov" (a significação provém
da interação dos planos entre si, i. e.,
o espectador não suporta o corte; há uma
tendência lógica em construir uma continuidade
entre os planos). Portanto, encontramos um procedimento
‘fanoniano’ na obra de Sanjinés, na qual o modelo
clássico de ‘cinema marxista’ (o construtivismo
soviético) é re-conceitualizado por fatores
raciais condizentes ao processo revolucionário
nos países do Terceiro Mundo. Ukamau (Así
es!) é, em termos de narrativa, um filme
ambíguo e problemático, sobretudo por
seu herói, mas é muito claro em sua proposta:
um cinema militante, de forte caráter nacional.
E foi por essa via que o Grupo Ukamau construiu uma
obra sem comparação na cinematografia
ocidental.
1) FANON, F. Les damnés de la terre. Paris:
Gallimard, 1991. p. 70
Fabián Nuñez
|