SUPERSIZE ME - A DIETA DO PALHAÇO
Morgan Spurlock, Supersize me, EUA, 2004

Uma das problemáticas mais fortes a serem levantadas diante dos documentários contemporâneos é a da construção de objeto. Super Size Me traz um ingrediente a mais (piiiiii) para este debate ao se tornar um problema para essa construção. Isso porque, ao optar por filmar a si mesmo, o diretor Morgan Spurlock fechou um círculo mais complexo que o da mera metalinguagem (se é que alguma metalinguagem pode ser mera): Spurlock se dá como objeto físico e, mais que isso, científico, em um procedimento que não é exatamente de uma ciência social. A observação participante dele é um complicador, mais do que uma mecânica para a confissão.

Vem um bocado a reboque de uma tendência à glamourização – ou pelo menos valorização – da sinceridade fílmica que um certo cinema contemporâneo resolveu importar do neo-realismo e do cinéma vérité. Mas o que nas mãos de Abbas Kiarostami vira Close up, nas mãos do americano perde os limites de até onde se pode ir para construir o objeto filmado. A idéia dele de fazer das tripas expressão esbarra no fato mesmo que institui seu filme. É que Spurlock resolveu centrar seu trabalho nos sentidos, em vez de na informação - por mais que o filme seja recheado delas.

Para além desses dados, o que está em jogo ao se observar a estratégia do diretor é o sabor, e são sobretudo as sensações que o corpo do rapaz manifesta. Mas, ora, ele filma e ele sofre e ele descreve o sofrimento. Essa promiscuidade cria de imediato um problema: não é a vaidade de Spurlock o que atrapalha (como a de Michael Moore, sem dúvida, é um problema em seus filmes), é sua inocência. Sua crítica soa tola, porque ele acaba por esvaziar os argumentos de referência externa.

Opõem-se duas mecânicas no filme, embora ambas contem a mesma história. A primeira é a do diretor-personagem, com suas manifestações físicas. A outra é a dos médicos, com suas constatações clínicas. Sem assepsia, Superlock contamina uma com a outra e, com essa salada (piiiiii), o olhar do filme (e o do espectador).

O sociólogo Loïc Wacquant – o discípulo mais próximo de Pierre Bourdieu – tem um livro impressionante que contribui para a problemática da construção de objeto quando a questão é física: Corpo e Alma: Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe narra a experiência antropológica do pesquisador ao fazer exatamente o que o subtítulo diz, em visitas a uma academia de boxe em Chicago, ele faz observação participante e se torna aprendiz de luta. Ora, sua descrição, claro, nasce de sua interação com os procedimentos cotidianos nos ringues. O livro lança uma luz fortíssima sobre a idéia de ser capaz de descrever o outro quando o outro é o próprio a descrever. Claro, Wacquant se torna lutador apenas para ter contato com a luta. É uma quase-simulação.

Mas o experimento de alimentação kamikaze de Spurlock parte de um problema inicial: ele se presta a apagar a objetivação. Quando o corpo dado como cordeiro ao sacrifício é seu próprio, Spurlock não elimina de seu sistema de leitura qualquer possibilidade de objetividade, já que ela é, confessamente, carta fora do baralho. Pior que isso, ele sobrepõe essa perda ao procedimento objetivo. O sensível se sobrepõe ao inteligível de uma forma melindrosa neste filme.

Claro, o filme é abertamente uma obra de propaganda, uma peça de combate, dialoga com uma certa tradição de jornalismo-espetáculo de TV etc. A maior prova disso é a maior prova do quão reduzida fica a cientificidade: é a eventização da consulta médica. Delas, os ícones mais fortes são o clínico-geral e a nutricionista. Ele, embasbacado diante dos efeitos sobre o fígado de uma dieta tão pródiga em gordura quanto a do McDonald’s; ela, tentando converter em processo o conjunto de efeitos caóticos causados pelos alimentos.

Pois nenhum dos dois e nem os outros dois médicos, representantes de um discurso de verdade, são capazes de suplantar o que Spurlock faz mais central no filme, as sensações. E como é infoteinment, tome espetáculo: hambúrgueres, alface, queijo, molho especial escorrendo pelo canto da boca. Acaba por não ficar a serviço nem de seu tema e nem de seu processo. De fato, choca que o filme despreze tanto a medicina a ponto de desvalorizar a “descoberta” do que a dieta em questão pode fazer a um corpo. No final das contas, Spurlock apenas parece querer lembrar da etimologia: o pathos, a alma do negócio, está no fígado. E é, então, mais de pathos que de ethos que se trata.

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Se há um ponto positivo no filme, este é o de esboçar uma problematização da alimentação olímpica. Mas isso fica tão menos valorizado quanto mais fica a tendência olímpica da própria experiência. Ainda se pode escrever muito sobre este filme e sobre o problema do fetiche que se tem com o veneno que nos mata e sobre nossa capacidade de rir. Mas o filme não acrescentaria tantos dados importantes que outros não possam acrescentar.


Alexandre Werneck