Site
2, Aux Abords des Frontières, 1989, Camboja
Bophana, Une Tragédie Cambodgienne, 1996,
Camboja
La Terre des Âmes Errantes, 1999, Camboja
Nascido em 1964, Rithy Panh foge, em 1979, do campo
de refugiados Site 2, na fronteira com a Tailândia,
e emigra para a França. Após se formar
pelo Institute des Hautes Études Cinematographiques
(IDHEC), o realizador se notabiliza com documentários
que vasculham a História do Camboja a partir
da reconstrução das memórias individuais
de seus habitantes. Em 2003, sai consagrado do Festival
de Cannes, quando o esplêndido S-21, A Máquina
de Morte do Khmer Vermelho (2003) recebe aplausos
de pé, ovação que lhe vale capa
na Cahiers Du Cinema e, mais importante para nós,
brasileiros, a exibição do filme no último
Festival do Rio. Primeiro contato que prossegue no 9o
Festival Internacional de Documentários (É
Tudo Verdade) de 2004 com As Pessoas de Angkor
(2003), e que agora se completa através das três
obras-primas com as quais a 2ª Mostra
Internacional de Cinema Engajado (De Olhos Bem Abertos)
presenteia os espectadores cariocas: Site 2, À
Margem das Fronteiras, Bophana, Uma Tragédia
Cambojana e A Terra das Almas Errantes.
São filmes que se debruçam sobre a nação,
que se preocupam com o passado e com o presente dos
cambojanos: as atrocidades cometidas pelo Khmer Vermelho
de Pol Pot em Bophana, Uma Tragédia Cambojana
(que Rithy Panh retoma em S-21, A Máquina
de Morte do Khmer Vermelho); as condições
de vida miseráveis e a desesperança reinante
no campo de refugiados em Site 2, À Margem
das Fronteiras; a chegada da tecnologia moderna
contraposta à luta dos trabalhadores pela sobrevivência
em A Terra das Almas Errantes. Da mesma forma
que Martin Scorsese nos EUA, Abbas Kiarostami no Irã,
Luc e Jean-Pierre Dardenne na Bélgica e Shinji
Aoyama no Japão, Rithy Panh integra o seleto
grupo de cineastas que refletem acerca da sociedade
onde vivem descortinando relações de
dominação, as quais marginalizam as camadas
mais pobres e desfavorecidas do meio social sem, contudo,
deixarem de ser universais, uma vez que entendem a arte
cinematográfica enquanto revelação
e descoberta do outro. No caso de Panh, o aparente paradoxo
deste cinema local que se faz universal ganha contornos
definitivos com a negação do diretor ao
documentário totalizante, ou seja, àquele
que encadeia imagens e que constrói narrativas
a fim de defender ponto de vista único (em geral,
do próprio cineasta vide Michael Moore) como
a verdade estabelecida. Para Rithy Panh, ao contrário,
estão em jogo as memórias de cada habitante
do Camboja, as pequenas estórias dos que nele
sobrevivem às duras penas suas experiências
de vida múltiplas, fragmentadas, contraditórias
e caóticas para compor, tal qual tapeçaria
bizantina formada por diversidade de peças, a
História do país.
Através de recortes particulares, Rithy Panh,
em seus documentários, privilegia as realidades
que apontam para as feridas abertas do país
o Khmer Vermelho, a miséria generalizada do Camboja.
Em S-21, A Máquina de Morte do Khmer Vermelho,
o ponto de partida é o maior centro de detenção
do regime comunista, ápice de aparato burocrático
que objetiva o assassinato em massa da população
civil, enquanto em As Pessoas de Angkor são
as ruínas símbolo da nação
que permitem ao cineasta mostrar o cotidiano dos trabalhadores
locais frente à introdução crescente
do capitalismo (materializado nos turistas japoneses).
Já em Site 2, À Margem das Fronteiras,
o diretor acompanha Yim Om, mãe de família
exilada que, sem esperanças em relação
a si mesma, sonha com futuro melhor para os filhos,
incentivando-os a estudarem. Bophana, Uma Tragédia
Cambojana, por sua vez, procura remontar a história
de amor entre Bophana e seu marido, jovem casal de intelectuais,
separados, presos, torturados e finalmente executados
pelos khmeres em 1976. Com A Terra das Almas Errantes,
os cabos de fibra ótica que atravessam o território
cambojano cristalizam o abismo entre os que trabalham
para não morrer de fome e a tecnologia de ponta
a qual, antes de beneficia-los, apenas os explora como
mão-de-obra barata.
Trata-se, claro, de recortes políticos, pois
o cineasta, quando dá voz aos excluídos,
restitui-lhes as memórias sistematicamente ameaçadas
de destruição, seja pelo passado de horror
perpetrado pelo Khmer Vermelho, seja pelo presente capitalista
que somente aprofunda as desigualdades sociais e econômicas
da nação. Em A Terra das Almas Errantes,
três seqüências exemplificam o posicionamento
político e, em conseqüência, moral
de Rithy Panh a favor dos cambojanos. Na primeira, ao
discurso que exalta as maravilhas da fibra ótica
a qual possibilita a rede global de telecomunicações,
a internet , trabalhador responde que não tem
eletricidade em casa, arrematando que o petróleo
usado no lampião que a ilumina está em
falta. Mais tarde, o mesmo personagem reaparece para
explicar, com suas próprias palavras (que unem
o discurso tecnológico às tradições
milenares do país), como funcionam os cabos em
questão. Por fim, já na fronteira tailandesa
onde se concluem os trabalhos, duas crianças
brincam com telefone de barbante, no qual comunicam,
por um lado, a volta para casa e, por outro, o desemprego
dos pais. Desse modo, verifica-se o deslocamento do
explorador para os explorados, os quais se apropriam
dos códigos que os subjugam sobretudo financeiros,
já que se coloca a fibra ótica no Camboja
para conectar os mercados asiáticos à
Europa, através da rota da seda a fim de, ao
alterar-lhes os sentidos originais de dominação,
reinventarem-se, construindo novas memórias na
luta diária pela vida.
Porém, no que consistem essas memórias?
Para Rithy Panh, elas não se confundem às
lembranças, elas não têm traços
nostálgicos, pois existem no presente, na urgência
dos 180 mil refugiados que vivem amontoados em 4,5 hectares,
sem dignidade e às custas de ajuda internacional,
em Site 2, À Margem das Fronteiras, ou
na dificuldade dos trabalhadores em comprar comida com
os parcos salários que recebem em A Terra
das Almas Errantes. Não que o cineasta apague
o passado, omita-o a fim de despolitizá-lo. No
cinema de Panh, opera-se o inverso: o passado jamais
cai no esquecimento, uma vez que não é
compreendido enquanto acontecimentos que, de acordo
à sucessão temporal linear, já
ocorreram para não mais retornarem. A originalidade
do realizador cambojano está no tratamento dispensado
ao Tempo, a saber, o pretérito que se amalgama
ao presente, que com este co-existe para acarretar a
pobreza absoluta na qual subsiste a maioria esmagadora
da população do Camboja.
Dessa forma, se o passado convive com o presente, os
crimes cometidos pelo Khmer Vermelho entre 1975 e 1979
ainda afetam a sociedade cambojana, como cicatrizes
que doem incessantemente. Em Bophana, Uma Tragédia
Cambojana, Rithy Panh evidencia sua percepção
do Tempo: após longa panorâmica, entremeada
por tiros de canhão não-diegéticos,
a qual percorre a cidade de Phnom Penh, corta-se para
imagens de arquivo, em preto e branco, da guerra travada
pelos exércitos de Lon Nol e de Pol Pot, musicadas
com o hino dos khmeres entoado por crianças.
Do último plano em preto e branco, a princípio
imagem de arquivo como as anteriores, emerge a cor,
de maneira que Panh volta à época atual
estabelecendo, por tabela, a conexão intrínseca
entre o passado sanguinário do regime comunista
e o presente repleto de vicissitudes que assola o país.
O conceito temporal de Panh, todavia, é exibido
em outras seqüências magistrais. Em Site
2, À Margem das Fronteiras, os travellings
que dissecam as condições insalubres e
sub-humanos do campo de refugiados, bem como as crianças
que brincam, sem perspectivas, em meio à escuridão,
conseqüências diretas do terror imposto pelo
Khmer Vermelho ao Camboja. Em A Terra das Almas Errantes,
a afirmação do operário de que
os khmeres legaram ao país geração
de ignorantes, ou a esposa grávida que tenta
comprar sapatos para o marido mutilado pela guerra,
ou a mesma personagem que narra como vários de
seus filhos nasceram no exílio, para mais tarde
os pesadelos que a atormentam se devem aos dois milhões
de mortos que não encontram a paz, ou o perigo
constante das minas terrestres durante a instalação
da fibra ótica. Em Bophana, Uma Tragédia
Cambojana, tanto os planos aparentemente banais
do cotidiano mas que carregam em si, implícitos,
os massacrados por Pol Pot , quanto às belíssimas
cartas de amor trocadas entre Bophana e o marido, as
quais revelam que o maior crime do Khmer Vermelho se
encontra na aniquilação do afeto e da
sensibilidade, seja ao separar não apenas o casal
protagonista, como também inúmeras outras
famílias, seja ao doutrinar homens para agirem
cegamente, conforme relata o ex-funcionário do
S-21, o qual admite ter assassinado cinco prisioneiros
a sangue-frio.
Diante de tamanhas atrocidades, o artista, personagem
de Bophana, Uma Tragédia Cambojana (que
reaparece em S-21, A Máquina de Morte do Khmer
Vermelho), questiona ao antigo carrasco se suas
pinturas são verdadeiras, ou se as violências
que elas retratam não passam de meras fantasias.
Trata-se, evidente, do alter-ego de Rithy Panh, cujos
filmes, invariavelmente, remetem ao genocídio
imposto pelo Khmer Vermelho à população
civil. Entretanto, se o diretor fala da morte, é
para celebrar a vida. E celebra-la através do
cinema: o próprio meio que participa da preservação
e da criação das memórias cambojanas,
os próprios documentários que, junto aos
personagens filmados, resistem às agressões
que os desejam destruir.
Marcel LHerbier, em A Magia do Fantasma (1967),
surpreende ao afirmar que os irmãos Lumière,
aos quais se atribuem os primeiros filmes de vertente
realista, sempre realizaram cinema fantástico,
pois os atos de ir às ruas, ligar a câmera
e filmar, ou o trem que chega à estação
ou as operárias que saem da fábrica, representavam,
em si, pura mágica. Rithy Panh, a despeito das
teorias que edificaram, ao longo do século, a
linguagem e a estética cinematográfica,
ainda possui a crença primordial do cinema enquanto
matéria privilegiada para exprimir o maravilhoso.
Quando vemos as fotos de Bophana e do marido lado a
lado em Bophana, Uma Tragédia Cambojana
(satisfazendo o desejo do casal de serem enterrados
juntos), quando assistimos à menina que estuda
à luz de velas para, quem sabe, um dia deixar
o exílio em Site 2, À Margem das Fronteiras,
ou quando presenciamos, embevecidos, a mãe, contra
todas as dificuldades que a vida lhe oferece, batizar
o filho recém-nascido com o singelo nome de "Sorte"
em A Terra das Almas Errantes, vêm à
mente os neologismos criados por Jairo Ferreira Cinemagia,
Cineutopia: palavras ideais para definir a obra de Rithy
Panh, realizador extraordinário, quiçá
o maior do cinema contemporâneo.
Paulo Ricardo de Almeida
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