A
rêmora é um peixe que cola seu corpo à
barriga dos tubarões, de modo que se alimenta
dos restos que aqueles predadores comem. Como essa ligação
se dá através de uma ventosa aderente
que possuem à cabeça, penso que as rêmoras
podem servir como metáfora à tradição
de certos intelectuais em acoplar sua inteligência
e seu prestígio a poderosos interesses, como
forma de se beneficiar dos restos e das sobras.
Não sei se a natureza das rêmoras é
parasitária ou simbiótica, mas a reação
de alguns importantes cineastas brasileiros diante do
anteprojeto da criação da ANCINAV me fez
imediatamente me lembrar desse peixe e dos seus hábitos
alimentares. Afinal, a criação da ANCINAV,
que pretende regulamentar e disciplinar a atividade
audiovisual no país, cria condições
para reverter o quadro historicamente prejudicial ao
desenvolvimento de uma industria audiovisual brasileira,
independente e auto-suficiente. Essa reversão
não se dará sem a quebra de alguns privilégios,
vantagens e benesses de grupos e setores que hegemonizam
a produção, distribuição
e exibição do audiovisual no Brasil, em
muito apoiados e financiados pelos governos anteriores,
e sustentados pelo predomínio do produto estrangeiro
em todas as mídias existentes.
À fúria com que alguns expoentes do cinema
brasileiro reagiram à divulgação
do anteprojeto da criação da ANCINAV soma-se
à celeridade e à presteza com os quais
determinados veículos da imprensa brasileira
vieram tornar pública esta reação,
com destaque impressionante. Sintomaticamente, o principal
argumento utilizado para criticar o anteprojeto e, principalmente,
desautorizar o governo em sua intenção
de criar uma política pública clara e
precisa para as atividades audiovisuais no país
é "a defesa da liberdade de criação
e expressão". Vemos então conhecidos
representantes do cinema brasileiro serem alçados
ao papel de defensores da liberdade, paladinos da justiça,
"passionárias" do livre criar e pensar,
ocupando generoso espaço nas páginas dos
jornais, com direito à chamada de primeira página,
ou sendo entrevistados no telejornal de maior audiência
nacional.
Das "passionárias" de plantão,
quem mais se destacou foi Cacá Diegues. Talvez
por reincidente, já que Cacá é
useiro e vezeiro em vir à imprensa (e sempre
com amplo espaço e divulgação),
em denunciar as gestões supostamente "autoritárias,
dirigistas, stalinistas" do atual governo no tocante
à cultura e, em especial, à atividade
audiovisual. Com uma linguagem furiosa e apocalíptica
que remete à profetas bíblicos, Cacá
Diegues publica no jornal O Globo artigo desancando
o anteprojeto da Ancinav, definido por ele como "um
desastre conceitual e técnico, com seus 141 artigos
e 44 páginas capazes de engessar a atividade
cinematográfica". Cacá começa
exaltando o momento de crescimento do cinema brasileiro,
com a ocupação do mercado e boa receptividade
da crítica e do público, que "voltou
a se orgulhar do seu cinema", alcançando
a "admiração geral aqui e no exterior".
Este êxito seria baseado num modelo que, "apesar
de seu sucesso, ainda não está completo,
não é totalmente justo e precisa se desenvolver
melhor". Sem dizer exatamente, em nenhum trecho
de seu artigo, que "modelo" é este,
Cacá afirma que a política pública
que ora se desenha, não somente ameaça
interromper o crecimento das atividades como "produzirá
uma crise muito grave no setor, a maior desde os tempos
do velho Ipojuca Pontes".
Acusa o projeto de "autoritário, burocratizante,
concentracionista, estatizante", alerta para o
fato que o MinC, "não satisfeito em mandar
no cinema, passaria a ter também o direito de
intervir na programação das televisões,
controlar suas concessões e dispor sobre a responsabilidade
editorial e as atividades de seleção e
direção delas", temendo que, com
a aprovação desta política, o cinema
e o audiovisual ficarão eternamente dependentes
da "boa vontade e da iluminação dos
sabichões ministeriais encarregados de decidir
que filmes devem ser feitos no país", deixando
claro que estes "sabichões" seriam
dominados por "velhas superstições
ideológicas, alimentadas por gosto cinematográfico
parcial e sectário".
Dentro da estratégia de desqualificar o anteprojeto
e, por conseguinte, a pretensão do governo de
querer estabelecer uma política pública
para o audiovisual, Cacá segue protestando contra
aspectos específicos do projeto, particularmente
aquele que determina a taxação de cópias
por filme, para ele um "desrespeito ao povo e suas
escolhas". "Em breve", alerta, "irão
fixar um limite para a venda dos discos de Sandy &
Jr. ou estabelecer um teto legal para a audiência
das novelas das 8". Cabe aqui mencionar que essa
frase seria quase cômica, não fosse o tom
tão próximo da propaganda anti-comunista
mais rastaquera porém sempre eficaz para disseminar
o medo e a dúvida.
Em resumo, o artigo do Cacá alerta para o temor
de que ao projeto possibilite o MinC, através
da ANCINAV, em ter controle total e absoluto de toda
a atividade audiovisual no país, que ficaria
atrelada às "finalidades públicas
e relevantes", "valorização
de específicas e partidárias tendências
artisticas, culturais ou regionais". Ou seja, tudo
que fosse produzido pelo cinema e pela TV estaria sob
o crivo centralizador e quiçá doutrinário
do "pessoal do MinC".
Cabe aqui fazer uma breve digressão histórica.
O anteprojeto de criação da Ancinav (que
Cacá diz ter vazado "por acaso, na internet",
fazendo malícia sobre o "suposto" caráter
sigiloso e conspiratório do mesmo, e de certa
forma, alimentando a suspeição sobre sua
seriedade e pertinência e desqualificando ainda
mais seus proponentes) está sendo elaborado há
14 meses. Na verdade, o projeto remonta do 3º
Congresso do Cinema Brasileiro, realizado em 2000 em
Porto Alegre, que surgiu como uma reação
do setor à inércia política do
MinC e da Secretaria do Audiovisual no governo Fernando
Henrique. Inércia que estava conduzindo verdadeiramente
o setor a "uma crise muito grave", sem dúvida
"a maior desde os tempos do velho Ipojuca Pontes".
O 3º Congresso formulou uma pauta de ação
política contendo 76 deliberações
propostas pelo representantes do cinema brasileiro ali
presentes, (dentre eles, Cacá Diegues), que foi
entregue ao governo FHC pelo então presidente
do congresso, Gustavo Dahl.
Esta pauta, de caráter bastante propositivo e,
ao mesmo tempo, crítico à inércia
e ao descaso que reinavam no MinC e SAV, seria incorporada
ao GEDIC -GRUPO EXECUTIVO DE DESENVOLVIMENTO DA INDÚSTRIA
DO CINEMA - criado pelo governo, ligado diretamente
à presidência e incumbido de formular uma
política pública para o setor audiovisual.
Além de vários membros do governo, representando
diversos ministérios afins, participaram do GEDIC,
representando o setor audiovisual o produtor Luiz Carlos
Barreto, o representante dos exibidores Luiz Severiano
Ribeiro Neto, o representante dos distribuidores Rodrigo
Saturnino Braga, o diretor da TV Globo Evandro Guimarães
(representando o setor televisivo), o presidente do
Congresso do Cinema Brasileiro, Gustavo Dahl, e finalmente,
o representante dos diretores... Carlos Diegues.
O Gedic formularia o projeto que redundaria na criação
da Ancine. O projeto, do qual o Cacá foi seu
relator, era bastante avançado e apresentava,
entre outras medidas, a criação de um
fundo para o desenvolvimento do cinema brasileiro através
da taxação de produtos audiovisuais, particularmente
da produção televisiva, a criação
de uma cota de tela para os filmes brasileiros na TV,
e propunha, inclusive "o controle e a responsabilidade
editorial de empresas brasileiras sobre a programação
e a distribuição de obras audiovisuais
nos meios eletrônicos de comunicação
de massa" (artigo III do capítulo II ).
Espera aí... "controle e a responsabilidade
editorial de empresas brasileiras"? É isso
mesmo que estava escrito no projeto de criação
da Ancine, proposto pelo Gedic e relatado pelo Cacá
Diegues...? Mas não é justamente e com
esta mesma redação o artigo do atual projeto
da Ancinav que Cacá acusa de "autoritário,
burocratizante, concentracionista, estatizante"
e que colocará na mão de meia duzia de
burocratas sabichões o poder de determinar que
tipo de produção será permitida
no país?
O que teria mudado conceitualmente, já que a
redação não foi alterada, do artigo
proposto pelo Gedic, cujo relator era o Cacá
Diegues, para o artigo do anteprojeto de lei proposto
pelo MinC? Será o temor de que o atual governo
realmente leve adiante esta proposta, ao contrário
do governo anterior, que vetou este e todos os demais
artigos que procuravam regularizar a relação
da televisão com o cinema brasileiro (inclusive
e principalmente a taxação de 4% sobre
os lucros obtidos pelas televisões, a fim de
criar o fundo de desenvolvimento do cinema brasileiro)?
Voltemos à História. Castrado em sua parte
que referia-se à televisão, o anteprojeto
do Gedic acabou sendo votado como Lei 2228-1 que criou,
em 2001, a Ancine, presidida pelo cineasta Gustavo Dahl.
Contudo, destituída da parte que se referia à
televisão, a Ancine nasceu debilitada, enfraquecida,
restrita. Com a eleição do Lula, ganhou
força o movimento para que fosse incorporada
à Ancine toda a parte referente à televisão,
que fora amputada no governo FHC. Fortalecidos, o MinC
e a Secretaria do Audiovisual preparam então
uma legislação que recupera, atualiza
e amplia o projeto original da Ancine, formulado pelo
Gedic e fundamentado pelas deliberações
e exigências do setor, no 3o Congresso
Brasileiro de Cinema.
Feito esse histórico, cabe aqui a pergunta: por
que a reação tão exaltada e veemente
do Cacá Diegues, e de outros representantes do
setor, ao projeto - se este projeto nada mais é
do que a reedição ampliada, revisada e
atualizada de todo um repertório de reivindicações
e proposições que vem sendo debatidos,
discutidos, analisados pelos mais diferentes segmentos
do setor? Por que essa retórica do medo? Por
que o tom apocalíptico e a prosa quase anticomunista
ao se referir aos membros do MinC e da Secretaria do
Audiovisual, definidos e desqualificados como retrógrados,
autoritários, "sabichões", levianos,
xenófobos, etc?
Curiosamente, há pouco mais de um ano, quando
de sua primeira investida contra as políticas
públicas do atual governo para a cultura e o
audiovisual (o famigerado "dirigismo petista"
e a contrapartida social), Cacá Diegues fazia
questão de isolar o MinC do resto do governo,
defendendo-o como única e soberana entidade apta
a pensar, formular, dirigir, administrar políticas
para a área cultural. Os dirigentes do MinC eram
elogiados pela sua visão moderna de cultura,
pelo seu profundo senso público, eram os únicos
e verdadeiros democratas dentro de um governo repleto
de stalinistas, zdhanovistas, dirigistas, autoritários,
retrógrados, etc.
Não é estranho notar que, passado um ano,
o que era confiança vire medo, o que era elogio
vire acusação? Agora, os mesmos membros
do MinC, de vestais da democracia e da rés pública
tornam-se "sabichões", xenófobos,
autoritários, reacionários que estão
conduzindo à falência o modelo que levou
o cinema brasileiro ao sucesso e criando uma crise pior
até do que os tempos áridos de Collor
e Ipojuca Pontes.
Cabe aqui, finalmente, perguntar que modelo é
este, tão exaltado pelo Cacá Diegues,
mas nunca explicado? Qual seria o modelo que fez crescer
"a ocupação de nosso mercado pelos
filmes brasileiros em mais de 200%"?
Na verdade, o que o Cacá defende como modelo
bem sucedido está se configurando como o cartel
mais poderoso, concentracionista e restritivo já
vistos na história do cinema brasileiro: a união
entre a Globo Filmes e as "majors", as grandes distribuidoras
estrangeiras. União esta não só
restrita à exibição mas também
à produção, através do uso
do Artigo 3° (que determina a aplicação
de parte dos impostos devidos pela remessa de lucro
das distribuidoras na produção de filmes
nacionais). A seleção dos projetos tornou-se
totalmente subordinada à participação
ou não da Globo Filmes, estrangulando assim uma
possibilidade de diversidade temática e estética
e concentrando verbas e oportunidades numa pequena casta
de produtoras, mais ou menos afinadas com os projetos
culturais e artísticos da distribuidora e da
TV que ela representa.
E pior, com o resultado satisfatório de público
da maioria dos filmes (mas nem todos, ressalte-se) produzidos
por este modelo, procura-se a reafirmação
(quase endeusamento) do mesmo como solução
para os problemas atávicos do cinema brasileiro,
sem nenhum questionamento à evidente prática
cartelista, concentracionista, excludente, restritiva,
centrada num suposto gosto majoritário, porém
histórica e culturalmente questionável.
Modelo que pode até ter ampliado a participação
nacional nas salas, numericamente falando, mas que não
conseguiu nem conseguirá democratizar nem diversificar
a produção, ao contrário, reduzindo-a
a um único modelo estético, artístico
e cultural.
Por que então combater a criação
da Ancinav? Fica claro que a criação da
Ancinav, com o estabelecimento de fundos para a produção,
baseados na taxação da atividade comercial
do produto audiovisual no país (inclusive na
que vai incindir sobre o número de cópias
por filme), irá apontar para o surgimento de
um modelo alternativo e diverso, democratizante, pluralista,
diversificado. E, ao propor e financiar um novo e diferente
modelo, a Ancinav acabará por questionar este
"modelo bem sucedido" e, inevitavelmente,
combater essa cartelização. E isso irá
contrariar interesses e prejudicar determinados grupos
que obviamente irão reagir. Aliás, já
estão reagindo.
Neste sentido, é sintomático ver o Cacá
pedindo ao governo "cuidado e respeito para com
o modelo que produziu este crescimento e estas vitórias",
ao mesmo tempo que insurge-se contra a taxação
que restringe a ocupação majoritária
dos nossos cinemas pelo produto estrangeiro e reage
às investidas do governo em ampliar e democratizar
a produção das televisões brasileiras.
Os argumentos usados, contudo, não conseguem
ultrapassar os limites da retórica demonizadora
e terrorista...
O argumento de que a taxação dos filmes
por número de cópias (uma das mais antigas
reivindicações do setor), irá levar
a falência laboratórios é quase
risível. É sabido que os laboratórios
estão com seus dias contados, até pela
perspectiva da adoção do sistema de exibição
digital, que irá eliminar a necessidade da cópia
física do filme – e neste sentido, o artigo referente
se antecipa à questão, propondo a cobrança
por número de "telas" de exibição
e não somente "cópias". Curiosamente,
quem condena essa taxação esquece de dizer
que ela atinge particularmente as majors, que desde
sempre pagam impostos por título, independente
de que este título acabe ocupando 200, 300 salas,
restringindo a exibição não só
dos filmes nacionais, mas de outras nacionalidades cujas
distribuidoras não possuam igual poderio.
Da mesma forma, soa no mínimo estranho o argumento
de que, com as novas atribuições da Ancinav,
o governo estaria criando mecanismos censoriais e de
dirigismo ideológico, através do controle
da programação e conteúdo das empresas
televisivas. Por trás desta defesa da liberdade,
mais uma vez está escamoteada a defesa de um
privilégio sustentado há décadas
e sempre com o beneplácito dos poderes públicos.
Quem agora grita contra o suposto autoritarismo do governo,
esquece de mencionar que a televisão é
uma concessão pública, portanto passível
de controle por parte do estado. Quem acusa o projeto
de intervencionista e dirigista não diz que em
nenhum lugar do mundo as emissoras de televisão
produzem seus próprios conteúdos, a exceção
do jornalismo, sendo tão somente exibidoras da
produção que adquirem junto ao setor audiovisual
independente local, sendo o caso brasileiro abusivo
e portanto sujeito de revisão. E, principalmente,
os paladinos dos direitos das TVs, sempre ciosos em
protegê-las da sanha "estatizante e concentracionista"
embutida no anteprojeto da Ancinav, não mencionam
que está tramitando no Congresso Nacional um
projeto de lei que determina que 30% da programação
regional das TVs seja produzida por produtoras independentes,
visando justamente ampliar, democratizar e descentralizar
a produção audiovisual no Brasil.
Soa no mínimo contraditório que o Cacá,
após desqualificar totalmente o anteprojeto do
MinC ("desastre conceitual e técnico"),
venha propor ao governo que cuide de "expandir
a rede de exibição popular para que, com
ela, se expanda também a multiplicidade de alternativas".
Que garantias temos hoje de que a ampliação
(e sempre com o financiamento público, é
bom lembrar isso) do número de salas de exibição
em nosso país irá expandir e multiplicar
as alternativas? Sem uma legislação que
regule essa exibição, sem a taxação
das cópias exibidas ou telas ocupadas, a ampliação
do número de salas resultará numa repetição
ampliada do que ocorre hoje em dia, com a ocupação
dos cinemas pelo filme estrangeiro e, em menor escala,
por aqueles outros, nacionais, resultantes do tal "modelo"
bem sucedido que nada mais é que um cartel envolvendo
a maior empresa brasileira de televisão e as
majors hollywoodianas.
Com todo o respeito que o diretor de Bye Bye Brasil
e Chuvas de Verão merece, impossível
analisar seu artigo e não pensar na natureza
das rêmoras... e lamentar sobre o triste papel
que alguns bons artistas e intelectuais acabam se prestando,
neste momento em que são lançadas bases
para o desenvolvimento pleno de uma indústria
audiovisual independente, democrática e plural
em nosso país.
Paulo Halm - roteirista, diretor e professor de cinema.
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