REDENTOR
Claudio Torres, Brasil, 2004

Cláudio Torres é um diretor que, em suas duas experiências audiovisuais realizadas para exibição em cinema (o média-metragem Diabólicas, um dos três episódios de Traição, e o longa-metragem Redentor), escalou-se no time do excesso. No Brasil, a partir dos anos 60, essa formação é variada. Vai de Glauber Rocha a Luiz Fernando Carvalho, de Arnaldo Jabor a Fernando Meirelles, de Ruy Guerra a Guel Arraes, de Rogério Sganzerla a Neville de Almeida. Entenda-se por excesso o acúmulo e a intensidade de elementos narrativos, sejam estes a luz, o som, a música, os cortes ou a cenografia, que vão além do necessário para se desenvolver a narratividade - seja esta de uma cena, de uma seqüência ou de uma encadeamento de fragmentos.

Torres é um diretor que, nestas duas experiências realizadas para exibição em cinema, joga no time dos não-realistas. No Brasil, pelo menos desde Limite, de Mario Peixoto, a escalação é diversa. Vai de Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Julio Bressani, Andréa Tonacci e Carlos Reichenbach a Walter Lima Junior, Sergio Bianchi, Guilherme de Almeida Prado, Luiz Fernando Carvalho e Guel Arraes. Por não realista, entenda-se, sobretudo, não mimético. Independentemente de o real vazar menos ou mais nos filmes destes cineastas, a despeito de ser algum aspecto do real tratado de forma menos ou mais direta por eles, vemos nas obras destes autores um escancaramento da representação, embora em graus variados e com propostas diferentes. Vemos o símbolo mais que as experiências.

Em Redentor, o excesso "não-realista", ou a hiper-artificialidade, é um dogma. Vemos uma alegoria delirante, infelizmente muito controlada nesse delírio, sobre a realidade brasileira. Por não estar interessado na singularidade dos personagens, Torres trata essa realidade como superfície simbólica, a qual irá totalizar dentro dos limites, assumidamente redutores, dos estereótipos de classe. Em uma historiografia das representações locais, sua gênese vem lá do teatro de revista, que se referia ao real sem representá-lo, e passa pelo TV Pirata e pelo Casseta e Planeta, sem se filiar a nada disso. O pacto com o espectador é o da crença na imagem postiça. Assume-se um jogo, uma brincadeira, que exige entrega, mas entrega distanciada. É preciso ter em mente que, embora tudo esteja na tela, o ponto de partida e de chegada está fora dela. Exacerba-se aqui e ri-se da exacerbação ali.

Temos à vista uma tensão entre o roteiro todo arrumadinho, de esqueleto cheio de firulas, com imagens filmadas e montadas de tal forma que, na projeção, tiram o peso asfixiante dos processos resolvidos antes e depois do set, sem espaço para a filmagem. Pedro Cardoso e Miguel Fallabela, certamente, colaboram para essa vitalidade: atores avessos à marcações excessivas, que exigem do diretor um jogo de cintura para acompanhá-los quando decidem assumir a condução das cenas, os dois impedem que o filme só respire pelos tubos. Estão lá por suas imagens, pela significação de seus signos, não para interpretar papéis.

Embora não se busque a aproximação com os personagens pelo afeto ou pela emoção, pode-se sentir uma energia a mover as situações quando elas acontecem, em parte também por conta de uma feliz e nada óbvia seleção de músicas. Se há peso, e há, ele está no olhar. Torres é o cineasta do mal estar, do mundo em desequilíbrio, do riso cruel de cantinho de boca - sem soar sádico, mas sim consciente de seu lugar dentro dessa (des)ordem. Que lugar é esse? O do artista que, no entendimento do mundo, ri do absurdo, embora, para retrá-lo, recorra à configuração simplista, pois a complexização exigiria fôlego indisponível. Daí a opção por criar uma realidade do artifício, para não haver risco de nada do real fora da tela. Há algo de modesto nessa pretensão. E muito de pretensioso nessa modéstia. Operação de risco, de qualquer forma, nunca de jogada certa.

A representação assumida como tal inicia-se com os sons de uma orquestra em aquecimento, seguido de aplausos e dos primeiros movimentos da ópera O Guarani, de Carlos Gomes - que já tinha lugar garantido no cânone do cinema brasileiro desde o final de Ilha das Flores, de Jorge Furtado. Essa introdução musical, como se estivéssemos para ver uma ópera, dá a senha do estatuto do espetáculo: a auto-referencialidade, a negação do mimetismo, da imitação do real, que será apenas aludido, não encenado como cópia, como aproximação ou recriado. Não há cenas em ruas: o Rio entra na tela só em aéreas. Ao contrário de cineastas que saem de casa para o mundo, Torres traz o mundo para dentro de sua casa (o estúdio), mas fazendo dele apenas ponto de partida para outro mundo (o de sua representação). É como se o realismo, a essa altura, não desse conta do real. Melhor então assumir a mentira da linguagem e buscar a verdade nessa mentira.

Os letreiros luminosos-aquosos e a câmera percorrendo uma superfície indefinida, de uma virtualidade com a impressão de aspereza, azulada-metálica, que somente após alguns segundos encontra o rosto inanimado de um Cristo, antes do título explodir em um clarão, inseminam a hiperartificialidade na qual a narrativa se sustentará. Tudo na tela escancara a opção pelo fake antes da câmera reafirmar esse caminho ao sobrevoar uma lagoa, com vegetação nas margens, prédios à vista e morros ao fundo, apenas para dar a essas imagens de coisas reais uma natureza virtual. A realidade, quando surge, parece maquete.

Também a narração em off de Pedro Cardoso, Célio Rocha na ficção, reafirmará a ruptura com qualquer transparência. Ele já está morto, seu corpo extendido no chão, quando começa a narrar. Contará para nós como viveu e como foi levado à morte. Veremos cenas de sua infância e do início de sua amizade com um menino rico, Otávio Sabóia, em imagens em preto e branco de uma plasticidade publicitária autoparódica de tão veemente. Também ouviremos sobre o pai empreiteiro desse garoto, que vê futuro só na Barra da Tijuca, exatamente o templo do artificial em meio à natureza.

Em poucos minutos, a luz mudará várias vezes. A imagem será congelada, o flashback no qual a narrativa é arquitetada ganhará outras voltas ao passado, estamos sempre sendo colocados diante de rupturas (no tempo, no espaço, nos climas), sempre sendo deixados de fora, sempre sendo lembrados de que aquele mundo não é nosso (não diretamente), embora se refira a ele em tom de paródia sombria e alegórica. Redentor propõe assim o encontro da chanchada com o Cinema Novo, mas com a falta de crença (em sua falsa crença) dos marginais, Sganzerla sempre à frente de todos pela capacidade de rir da própria desgraça.

No entanto, ao contrário da esculhambação sganzerliana, aqui o coração bate culpado, mais que agressivo, ainda que uma culpa, no final das contas, de sentimentos duros e nada amanteigados (como em Walter Salles). Cláudio Torres explode Brasília, filma os moradores de favela como habitantes de um inferno arcaico e dantesco, coloca-os para berrar seu mantro religioso: DINHEIRO, DINHEIRO, DINHEIRO. Não há espaço para a idealização e para as mensagens dos anos 60, nem para a identificação dos pobres por freqüentadores de cinema, que exigiria tratá-los como coitadinhos-vítimas-do-mundo. Eles são vítimas sim, mas querem o mesmo que os ricos e a classe média, sem nenhum sacralização social. Redentor alia-se, assim, a O Invasor, de Beto Brant, e a O Homem Que Copiava, de Jorge Furtado, com o qual se aproxima em vários aspectos (a ser tratado em texto futuro).

Também não deixa de "esbarrar à distância" com experiências do artifício como meta, mas adotando como referencial sobretudo o humor da Rede Globo nos anos 80-90, em especial o do núcleo Guel Arraes - que deu o norte para Carla Camuratti em Carlota Joaquina. Um neto bastardo, do casamento de Arnaldo Jabor com Glauber Rocha, mas criado entra as paredes do Projac (simbolicamente, por favor), próximo a um primo de segundo grau, Jorge Furtado, e tendo como evangelho as invenções de mundo em estúdio, sejam as de Tim Burton ou as Terry Gilliam.

Balé de cortes de um rosto para outro, de um olhar para outro. Alguém fala, a câmera vai para quem ouve, para alguém ao fundo do plano. Na primeira entrada de Célio Rocha no apartamenro 808 do condomínio Paraíso, essa dinâmica é muito bem aproveitada, em especial ao captar os olhares de Camila Pitanga. A câmera está predominantemente baixa, filmando um mundo grandiloquente, ameaçador, diante do qual parecemos pequenos, impotentes, incapazes de agir ou sem vontade para tal. Está ai, nessa forma de filmar, o peso do filme. Não é um deslize, mas um olhar para o mundo, o olhar assustado, que ri de nervoso por estar rindo desse mundo, não porque é superior a ele, não porque está fora dele.

Célio Rocha é um classe média decadente, que mora com pai, mãe e tia, sem apartamento próprio, ressentido por ter levado pernada da elite corrupta. A relação com os de cima da pirâmide vai jogar nosso protagonista e sua família para baixo. Otávio Sabóia, o herdeiro dessa elite, justifica-se: "Não há dinheiro para todo mundo". Portanto, concentra a riqueza. Sendo assim, o jeito é tomá-la, na força que seja. Força essa legitimada por Deus, por uma idéia moral mais que por uma entidade divina, pelo receio de entrar pelo cano, caso não se faça o justo, caso se insista em atender a si próprio. Vemos assim a encruzilhada da classe média, indecisa entre adotar os métodos da elite, também sua opressora, e aliar-se aos marginalizados do sistema econômico, com os quais começa a fazer vizinhança.

Será necessário uma intervenção divina, cínica até a medula do Cristo Redentor, para essa classe média abrir os olhos. Só com milagre, portanto, segundo a visão distópica - porém nada conservadora, se bem entendida for. Não entremos na questão religiosa porque a religião não é questão; Deus, tampouco. Estamos em um filme ateu, nem por isso despido de moral. A mãe de Célio afirma com autoridade: DEUS NÃO EXISTE. Ou seja, sem Deus, não há pecado, não há regulação, não há limite, impera o individualismo, o cada um por si e todos contra todos. É contra essa falência de um projeto civilizatório da idade moderna que o filme imporá a necessidade de resgate da moralidade (da qual a religião é apenas um símbolo, não o único ou principal caminho).

Mas essa moralidade não passa necessariamente pela legalidade, conjunto de normas que, a rigor, tende a atender quem está por cima e o que a classe dominante permite. A lei é subvertida sim e substituída pela ética, uma transgressão civil também pregada, por outras razões, em Irmãos de Fé, de Moacyr Góes, no qual Paulo segue seu próprio caminho, não os dos legisladores, embora em nome de Deus. Em Redentor, a ética supera a lei em um papo marxista (não assumido como tal na cena), quando um operário não pago para construir um prédio toma um dos apartamentos para morar. Beneficia-se, assim, do fruto do trabalho.

A jornada moral de Célio Rocha é de acerto de contas com o passado. Ele age para redimir o pai injustiçado e vingar-se do filho do milionário injusto. Ao jogar a pendenga de classes para os filhos, herdeiros de uma situação do passado, o roteiro amplia o conflito ao expor o presente, acima de tudo, como resultado de processo histórico. Nesse aspecto, não estamos diante de questões de nosso tempo, mas de nossa História. Em sua representação, opta-se pelo postiço para se chegar a uma aproximação com distanciamento. O herói manchado de classe média só se redime dentro de um estatuto visual no qual nada é verdadeiro. Falsa redenção, portanto. Até porque ele não tem convicção na distribuição, é apenas tocado por forças paranormais - já que, por seu livre arbítrio (nunca tão livre assim e quase sempre arbitrário), rosnaria para conseguir seu pedaço do osso.

Cléber Eduardo