Do
início
Em entrevistas recentes, Jean-Luc Godard reclama
que a quase-totalidade dos filmes atuais começam
pelo projetor. Para ele, os filmes devem começar
sempre pelo contracampo, isto é, pela câmera.
"Um cineasta só tem necessidade da câmera",
diz Godard, "para registrar aquilo que ainda não
conhece, que ainda não viu". Um projetor e
a aversão que Godard sente por este só
serve para aquilo que já se conhece, que já
tem seu lugar na história (das formas, da humanidade:
mesma coisa); enfim, para as coisas que já iniciaram
e concluíram um percurso (histórico/visual).
O não-visto ou não-reconhecido como contracampo
do já-visto ou do visto-muitas-vezes. Nada mais
natural se considerarmos o próprio percurso que
Godard vem traçando a partir de 1975, ano em
que se junta a Anne-Marie Miéville e dá
início a um período de intensa reflexão
sobre seu próprio percurso de cineasta (Numéro
Deux, o primeiro filme de Godard após os
experimentos do Groupe Dziga Vertov, é
justamente um filme sobre os caminhos já percorridos
pelo cineasta até então e o registro da
sua tristeza por precisar encarar, com um outro olhar,
estes caminhos e conseqüentemente produzir alguma
coisa nova, um "trabalho em progresso" que prossegue
até hoje). Se Paixão parece uma
peça-chave na porção da obra Godardiana
que tem início com Numéro Deux,
é justamente por essa presença da câmera
como aparato insólito, ontológico. É
possível falar igualmente da importância
que neste filme o cineasta dá às coisas
que só podem existir com a câmera,
que se confeccionam junto à própria fabricação
intensa e ininterrupta que a câmera faz daquilo
que registra, mas por enquanto o melhor a se fazer é
uma passagem pelo início do filme.
A câmera atravessa um céu nublado, repleto
de nuvens escuras, como se borradas no azul da atmosfera;
entre estas nuvens a fumaça de um aeroplano traça
uma tênue linha branca e reta. Godard continua
a pesquisa por este céu até encontrar,
próxima a uma nuvem mais clara, a ponta que fabrica
esta linha branca, registrando assim a) um percurso
que ainda está sendo composto, que se desenha
no céu na medida em que a própria câmera
precisa encontrar uma maneira de descrevê-lo e
b) a existência de uma matéria prévia,
de objetos que já existiam anteriormente e que
sobrepõem-se àquilo que ainda está
formando um caminho, uma história própria.
Em outras palavras, esta história ainda em construção,
não-acabada e incompleta (como, por exemplo,
a do sindicato polonês "Solidariedade" em 1982,
ano de realização do filme) que Godard
almeja buscar e historiar estará sempre intrinsecamente
ligada a uma história que já está
feita, que é em si mesma um circuito concluído
(como a de um certo trajeto da história das artes,
neste caso do cinema e da pintura).
Deste elogio ao acaso, ao que é no fim das contas
uma arte que surge da investigação viva
e imperfeita dos eventos que pertencem ao mundo, Godard
parte para o plano seguinte. Vemos Isabelle, a jovem
operária que no filme será destituída
do seu "trabalho", realizando aquilo que é a
princípio este trabalho: ela carrega um carrinho
no corredor do que parece ser uma usina. Análoga
à cena anterior, a condição de
Isabelle aqui é a de justamente materializar
e animar esse itinerário incerto, que ainda avança
um pouco vacilante, mas avança de qualquer maneira;
quanto à usina, esta possui uma função
visivelmente semelhante à do céu e das
nuvens na cena anterior. Sua presença essencialmente
plástica, artificial e inflexível antecede
o corpóreo e os movimentos que a carne e apenas
ela pode realizar no seu interior. Número Dois
novamente: para haver essa história em execução
(a câmera), é preciso haver uma outra que
já acabou (e cujo itinerário é
um só, sempre: o da projeção).
O que segue são algumas das associações
de imagens mais memoráveis que já vimos
em qualquer trabalho de Godard. Retornamos ao plano
do céu, mas desta vez não encontramos
o traço composto pelo aeroplano, e no meio da
procura enérgica que a câmera realiza somos
tirados das nuvens claras onde havíamos visto
este traço pela última vez e retornamos
às nuvens escuras do início; é
neste momento que Jerzy, o diretor do filme cuja rodagem
é o centro-nervoso de Paixão, nos
é apresentado (abaixo do mesmo céu que
seu companheiro Godard explora e junto a Isabelle, que
numa bicicleta se agarra ao carro de Jerzy para poder
acompanhá-lo). Ao plano de Jerzy sucede o momento o momento exato em que a câmera finalmente
consegue sair do céu obscurecido para encontrar
novamente a linha que o aeroplano forma no céu.
Será numa cena posterior, próxima ao final,
que sai da boca de Jerzy a frase que explica todo o
mistério que está tomando forma nestes
primeiros instantes do filme: "É preciso continuar
procurando... Seguir, e achar a abertura". É
difícil pensar em outras ocasiões onde
Godard foi tão contundente na tentativa de fazer
uma declaração de princípios acerca
do seu próprio trabalho de cineasta: todos esses
vaivens trabalham com a idéia, um pouco obsessiva
e abstrata, de que é necessário continuar
procurando as coisas que acontecem, que ainda podem
acontecer no mundo onde vivemos e do qual fazemos
parte (este "fazer parte" traduz-se, na linguagem Godardiana,
em "colocar a câmera" ou "situar o olho"), pois
são nestas coisas que permanecem os espectros
daquilo que uma vez (Número Um) aconteceu.
Nas cenas seguintes, todos os trajetos por fim se completam
(Godard não é um inocente: ele sabe que
tais coisas são inevitáveis, mas mesmo
assim as encara com uma dignidade admirável):
o casal Hanna-Michel nos é introduzido, oportunamente,
ao fim de uma relação sexual. Hanna ajeita
as calças, Michel vai ao banheiro (Número
Três?). No plano seguinte, a câmera mais
uma vez procura o traço do aeroplano no céu,
mas este já se escondeu atrás das nuvens,
e assim todo este movimento inicial do filme termina:
a câmera estaciona, e não demorará
muito para sermos levados ao início das "histórias".
A coragem de Godard em reconhecer que, sim, existe este
momento onde tudo já está dito e feito
(o pós-sexo aqui tem um emprego semelhante ao
de Numéro Deux), a necessidade de olhar
na cara deste momento e tirar a possível beleza
dele, de fazer sua representação,
isto é em grande parte todo o esforço
de Godard em Paixão, toda a sua inspiração
e também seu entusiasmo (o título não
foi escolhido apenas pela sua graça, isso é
certo).
Começa o filme.
O Estado das Coisas
É 1982. Deste período, Godard parece
preocupado em incorporar ao seu filme pelo menos duas
importantes direções tomadas dos cenários
político e filosófico de então:
a discussão, que ainda encontrava-se nos seus
primórdios, sobre uma provável "morte
do cinema" (em 1981 Serge Daney abandona a editoria
do Cahiers du Cinéma para montar no jornal
Libération um "serviço imagens"
onde é posto em discussão o surgimento
de um amálgama entre cinema/novas mídias/televisão,
pois segundo o próprio "não é mais
possível se ocupar apenas do cinema"; e, no ano
seguinte, Wim Wenders lança O Estado das Coisas
e Chambre 666, espécies de filmes-manifesto
desta morte); e os acontecimentos que transcorrem na
Polônia referentes ao grupo "Solidariedade" (como
com Sarajevo em Forever Mozart e o Vietnã
em Letter to Jane).
Por que em Godard o interesse em fazer refletir, ou
melhor, em fazer passar pela sua câmera (mesmo
no imemorial Histoire(s) du Cinéma faz-se
necessário ir de encontro com Sarajevo e 2a
Guerra Mundial) esses traços do contemporâneo,
de pautar aquilo que é tão fugidio quanto...
as próprias imagens de um filme? Todo
esse furor provavelmente de uma necessidade bastante
elementar, talvez a única realmente 'metalingüística'
do seu cinema: para se filmar "o trabalho", é
necessário ir a trabalho também. E este
trabalho, para Godard, é o de evitar que o cinema
seja apenas dois espelhos que rebatem um ao outro infinitamente
(o primeiro plano de O Desprezo; o último
de Elogio ao Amor), ou o de trazer à tela
os trabalhos que podem existir num dado momento da história
daquilo que chamamos de "civilização".
As fábricas da Renault, fechadas em Elogio
ao Amor, ou a usina de Michel Piccoli em Paixão
funcionando de todo: só com a câmera,
a grande Usina Lumiére, é possível
realizar este trabalho o registro (em película)
de um mundo.
Mas ainda é 1982. Que fazer, por exemplo, do
"Solidariedade"? Que fazer deste momento de apogeu das
oficinas vídeo-cinema, como a Zoetrope Studios
de Coppola em Hollywood ou a própria Sonimage
de Godard e Miéville em... Rolle? Ou de Hanna
Schygulla e Isabelle Huppert? Hotel ou estúdio,
pintura ou cinema, apogeu ou crepúsculo? Que
fazer disto tudo? Para Godard, apenas uma alternativa:
não uma imagem justa, mas justo uma imagem. Justo
uma imagem, no caso de Paixão, está
na maneira como Jerzy se coloca diante de todos os vértices
que culminam na própria desordem que transcorre
durante o filme todo: é o ponto que Godard encontra,
ainda no início, entre céu e terra, e
que dentro do filme Jerzy irá encontrar entre
Hanna e Isabelle. Encontrará também Michel,
Sophie, László, Jean-François,
Boris Kaufman e Josef von Sternberg, Goya e Rembrandt,
mas é da fricção entre estas duas
mulheres, "noite e dia" como diz Jerzy (e como Godard
mostra), que surgem todos os trabalhos (ou movimentos)
contidos no filme.
De imediato uma hierarquia: Hanna é dona de hotel
e casada com o proprietário da usina onde trabalha
Isabelle; Isabelle é uma operária e acaba
de ser destituída do seu trabalho. Que ao final
do filme Godard destruiu essa divisão não
é de qualquer forma espantoso; o que é
espantoso é o fato de uma outra, muito mais subterrânea
e imperceptível, ser destruída ao mesmo
tempo. Pois Isabelle e Hanna não deixam de ser
peças criadas e conseqüentemente opostas
por Jerzy (e, portanto, por Godard); porém, quando
as duas se juntam ao final do filme para saírem
à procura de Jerzy não é só
a primeira hierarquia (Hanna como patroa, Isabelle como
operária) que está sendo destruída:
os patrões Jerzy/Jean-Luc estão sendo
igualmente postos à parede neste momento em que
suas criações replicam a mesma ânsia
pela busca que num primeiro instante (a fumaça
do aeroplano entrecortando o céu no início)
as originou. As duas continuarão prosseguindo
por um caminho que pode tanto levá-las a uma
fábrica da Peugeot como talvez, quem sabe, à
Polônia. Este mecanismo simultâneo de auto-aniquilação
e renovação é apenas a extensão
natural de algo já presente nos planos de abertura
do filme1.
"Não se deve zombar da classe operária"
Talvez seja interessante ou mesmo necessário
trazer à discussão um outro Jerzy que,
em 1982, estava trabalhando numa direção
semelhante à de Godard. Trata-se de um diretor
que como o Jerzy de Paixão é também
polonês, e que como Godard foi figura fundamental
no panorama cinematográfico dos anos 60. Falo
de Jerzy Skolimowski.
Quando Skolimowski, em exílio na Inglaterra,
cria num apartamento de dois andares em Londres a mais
bela transposição para cinema da situação
pela qual a Polônia passava com Classe Operária
(Moonlighting, 1982), ele está indo
de encontro a Godard em mais de uma maneira. O que ambos
fazem neste espaço privilegiado do ateliê-estúdio
(o apartamento em Classe Operária, o estúdio
de Paixão) é pôr à
luz e em cena o que de mais avançado se pensava
(e ainda se pensa) sobre estatutos de representação
factíveis e dignos de uma contemporaneidade que
ambos irão, de uma maneira ou de outra, corromper
em seus filmes. É aquilo que Inácio Araújo
descreve no seu belíssimo texto2
como "verossímil" ("Algo que parece verdadeiro,
mas é apenas uma imitação") e que
no filme de Godard é exposto na banda de áudio
a dado momento como "não uma mentira, mas algo
imaginado, que nunca é a verdade exata nem o
seu oposto, mas que em todo o caso é separado
do real exterior pelos 'quase' profundamente calculados
do verossímil"; pois bem, é precisamente
isto que tanto Godard quanto Skolimowski irão
pôr à prova em seus ensaios/reflexões/réquiens
de um certo rumo que pressentem não só
para a Polônia como também para toda uma
experiência dos cinemas modernos, todo um período
que parecia chegar ao seu fim. É verdade que
não são os únicos a realizarem
filmes neste espírito (além dos trabalhos
de Wenders, poderíamos citar ainda Olhos na
Boca de Marco Bellocchio ou Amantes de John
Cassavetes), mas o fato é que de certa forma
são filmes que esbarram um no outro, contaminam-se
do período em que foram realizados e de si mesmos.
Se os dois filmes não são meras lamentações
(como O Estado das Coisas é, por exemplo),
é porque Godard e Skolimowski acreditam que ainda
existem caminhos a serem perseguidos, de história(s)
a se acossar. É uma tarefa árdua, certamente,
que pode inclusive resultar no mais implacável
dos fracassos; mas este seria um dos mais honrados,
dos únicos que realmente valem o risco (como
disse Welles sobre seu personagem em Falstaff,
"Ele luta uma batalha já perdida"). Neste espaço
íntimo do quarto de hotel (Paixão)
ou do apartamento em construção (Classe
Operária) são retraçados e
repensados os itinerários políticos, artísticos
e pessoais de seus autores. Ambos os filmes são
espécies de "Número Dois", partilham de
um mesmo anseio em partilhar coisas recolhidas ao longo
de anos (especificamente os 70) ao mesmo tempo em que
examinam com todas as incertezas e angústias
possíveis as coisas que por volta de 82 ainda
tocam a Godard e Skolimowski: se Paixão
retoma e expande algumas das questões que ganham
importância vital na obra de Godard a partir de
O Desprezo (as maneiras como as histórias
da humanidade e da arte encontram-se e confundem-se,
a realização de um itinerário pelas
histórias das formas e das representações,
as dificuldades da criação e a futilidade
em se tentar separar o íntimo do empreendimento
filosófico), Classe Operária encerra
uma porta que Skolimowski abriu em Ato Final
(a saber, a de entrada na Inglaterra, e tudo aquilo
que irá vazar em seus filmes a partir de então:
um sentimento irreparável de desamparo, de se
encontrar sozinho num ambiente hostil e que pouco se
conhece; uma tristeza profunda por um mundo ao qual
se dá o último adeus a adolescência
em Ato Final, a Polônia de tempos distantes
em Classe Operária).
Notável como nestes pequenos réquiens
que são Paixão e Classe Operária,
O Estado das Coisas e Chambre 666, Olhos
na Boca e Amantes, a residência ganha
uma pregnância assustadora, verdadeiramente fantasmática:
espécie de ventre, forte-apache cósmico
e Arca-de-Noé em Amantes; vazio da estagnação,
da interrupção e da amargura em O Estado
das Coisas e Chambre 666; casa fúnebre
e espaço solene de uma última possível
revolução íntima e sem escalas
em Olhos na Boca. Em Classe Operária
não existe qualquer coisa próxima a uma
"realidade espacial": o ambiente do apartamento é
propositalmente precário, instável, confuso
e repleto de variações de todos os tipos
(escalas, volumes, dimensões, planimetrias: todos
são devidamente deformados num primeiro instante
para tornar possível a reforma que ocorrerá
durante o resto do filme). A maneira com que este tratamento
visual extraordinariamente consegue representar a própria
situação que ocorria na Polônia
à época surge do controle com o qual Skolimowski
mantém todos os elementos do filme num plano
que é ao mesmo tempo moderado e extremamente
figurativo. Quanto a Godard...
"O que mergulha na luz é a repercussão
do que a noite submerge...
O que a noite submerge prolonga no invisível
o que mergulha na luz"
Muito já se falou do trabalho de composição
de luz e das reproduções de pinturas célebres
que Godard realiza em Paixão, mas nada
disso neste texto ao menos até aqui. É
verdade que é tarefa das mais ingratas tentar
dar conta daquilo que numa tela de cinema já
é de beleza indizível, mas talvez seja
precisamente esta a possível glória do
trabalho crítico: fazer a história deste
fracasso.
O que acontece no estúdio onde as pinturas são
reconstituídas, remontadas? Há um diretor
que não sabe mais muito bem o que quer, que busca
a "luz verdadeira" no meio de um quase que completo
caos; vemos algumas figuras escapando de quadros dos
quais a princípio fazem parte e perambulando
por pinturas diversas, atravessando mesmo duas ou três
num só percurso; testemunhamos uma espécie
de limbo histórico onde Goya encontra Delacroix,
El Greco se soma a Rembrandt, e assim continua. Tudo
isto se configura muito menos em uma possível
crítica à tecnologia (da qual Godard sempre
se beneficiou apesar de desconfianças
muito acertadas , provavelmente mais até
que qualquer outro cineasta) que numa espécie
de pedido, de verdadeira súplica aos homens de
cinema: mesmo diante de um momento em que a memória
excede em muito a história ("os jovens de hoje
são só memória, não há
história" o próprio Godard em Prenome
Carmem), Godard mantém-se sóbrio à
ameaça de uma possível anemia (cujo diagnóstico
é o próprio leitmotif do posterior
Histoire(s) du Cinéma). As brigas pela
luz perfeita, a busca pelos mestres do passado3,
tudo isto por apenas uma razão: mesmo diante
da amnésia e da subseqüente perda (do passado,
da pintura, do cinema), faz-se necessário continuar
o trabalho (o "precisamos continuar buscando" de Jerzy,
próximo ao final do filme).
Numa das cenas mais simples e belas de todo o filme,
Jerzy e Isabelle conversam, sentados à mesa.
Isabelle pergunta por que Jerzy se recusou a deixá-la
vê-lo trabalhar, e Jerzy pergunta se ela ama o
trabalho. Ela diz que muito, e que irá sentir
falta de seu antigo emprego na usina. Jerzy pergunta
então se esse amor ao trabalho, se o "amar" de
Isabelle vem de amor. "Não...", responde Isabelle,
"... ele não vem... Ele vai em direção
ao amor". Um real amor pelo trabalho (um amor que se
pode ter pela política, pelo cinema afinal
ambos são uma coisa só), Godard nos mostra
durante todo o filme, só pode ser encarado como
uma forma de trabalho. É este tipo de amor que
vemos num filme recente, de 1997, intitulado The
Blackout. Talvez tenha sido necessário este
espaço de 15 anos para que um cineasta e um
dos grandes, Abel Ferrara pudesse retomar alguma coisa
que Godard havia deixado em aberto. No filme de Ferrara
vemos um ator dividido entre uma mulher francesa e uma
alemã, um diretor ensandecido com reproduções
em vídeo ad infinitum da Nana de
Christian-Jacque (aqui a amnésia não é
mais uma mera ameaça: trata-se de uma força
da qual é impossível escapar), mas mais
do que qualquer coisa vemos depois de 15 anos esse
"algo" que mergulha na luz e é a repercussão
do que a noite submerge. Esta substância etérea,
essa luz que se precipita no bater do mar à noite,
podemos não ter idéia do que ela é,
nem de onde vem, mas sabemos onde a vimos pela última
vez.
Bruno Andrade
1.
Alain Bergala: "Godard freqüentemente começa com o ato
da descoberta, num meio-termo entre acaso e necessidade,
sempre arraigado à concretude da criação, e é apenas
mais tarde que ele extrai as lições desta descoberta,
estendendo-as em outra cena ou entrelaçando-as com outro
filme".
2.
"Elogio à Paixão".
3.
Não é por mero acaso que Godard escolhe abrir as cenas
no estúdio com uma reprodução de Rembrandt justamente
o pintor que mais severamente se opôs ao maneirismo , chegando a fazer uso da voz de diversos personagens
do filme incluindo o diretor de fotografia Raoul Coutard para melhor estudar as peculiaridades da obra. Não
deixa de ser interessante também notar que Godard realiza
no meio disso tudo uma operação paradigmática do maneirismo a reprodução de uma reprodução de uma reprodução...
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