Mesmo antes de Mulheres Perfeitas, mais recente
filme de Frank Oz – no qual a mensagem que perpassa
toda sua obra é retirada do subtexto e expressa
em alto relevo –, já era evidente sua grande
preocupação com a natureza humana – cuja
beleza requer a imperfeição, diria Baudelaire
– sendo forçada à tentativa perfeccionista
de eliminar acidentes, concentrar tudo no exercício
programático de uma técnica, seja esta
de roubo (Os Safados, A Cartada Final)
ou de convívio social (Nosso Querido Bob,
Será que Ele É?, Mulheres Perfeitas).
Mas, segundo a frase final de Quanto Mais Quente
Melhor, ninguém é perfeito – e é
melhor assim (Billy Wilder é sem dúvida
uma influência para Frank Oz). Os Safados
e Nosso Querido Bob, seus dois maiores filmes,
já podiam ser vistos como elogios da imperfeição.
Há uma entrega verdadeira por parte de Frank
Oz à chatice de seus personagens: Bob, Bowfinger
(Os Picaretas), Freddy e Lawrence (Os Safados),
Kevin Kline em Será que Ele É?,
Joanna (Nicole Kidman em Mulheres Perfeitas):
os filmes dão a eles todo o espaço do
mundo, deixam-lhes margem ilimitada – algo, aliás,
essencial para personagens de comédia. Em Os
Safados, existem dois filmes para Steve Martin e
Michael Caine, o que envolve seus respectivos personagens
e o que eles dois estão construindo enquanto
atores que exploram suas possibilidades. O mais comum
nos extras de DVD de Os Safados ou Os Picaretas
é algum ator dizendo o quão foi divertido
trabalhar naquele filme. Ainda que sejam comentários
típicos de making of com cara de material
promocional, em que são comuns esses depoimentos
enaltecendo o estilo cool do diretor na sua relação
com os atores, é perfeitamente compreensível
que o elenco tenha se divertido ao fazer o filme de
Oz a que assistíamos antes de conferir esses
extras.
Empatia com os atores que se confirma, por exemplo,
na filmagem de um roteiro do próprio Steve Martin
em Os Picaretas, e, nesse mesmo filme, no incentivo
ao roubo de cena por parte dos atores, o que acaba nas
mãos de Eddie Murphy. A carreira de Murphy, ao
menos na parte que mais lhe parece causar interesse,
tem na multifacetagem sua mola mestra (Um Príncipe
em Nova York é um momento clássico,
em que ele encarna uma dezena de figuras ao longo do
filme), e em Os Picaretas não é
diferente: ele faz dois personagens completamente opostos,
roubando definitivamente a cena. Enquanto um de seus
personagens ironicamente tem a imagem seqüestrada
por Bowfinger, que o filma à distância,
clandestinamente, o outro, rapaz tímido que mais
tarde se revela seu irmão gêmeo, é
usado para as cenas aproximadas, invertendo a lógica
do dublê. É um filme divertido, embora
vez ou outra funcione como uma grande private joke
que tem em Crepúsculo dos Deuses e Ed
Wood suas maiores inspirações. Bowfinger
é um Ed Wood em termos inexatos, no sentido de
que acredita apaixonadamente na força do seu
filme (um autêntico trash), mas se vale da picaretagem
consciente de Freddy, personagem de Martin em Os
Safados. Sucumbindo ao trocadilho, ele seria um
Freddy Wood. O mais interessante de Os Picaretas
é o ambíguo painel de adjetivos com que
a atividade cinematográfica vai sendo tingida:
mentira, prostituição, chantagem, arrogância
(principalmente por parte dos personagens de Robert
Downey Jr. e Eddie Murphy, um megaprodutor e um astro
hollywoodianos, respectivamente), exploração
– mas, é claro, há a inocência recuperada
e o encantamento na cena da première do
filme feito por Bowfinger e equipe.
Os Picaretas espelha a mesma afeição
ao criminoso light vista em Os Safados.
Bowfinger é um ladrão de cinema assim
como Freddy suga ninharias das madames que ludibria.
Esses personagens de Oz, contudo, só podem ser
trapaceiros porque acreditam na inocência, o que
implica o duplo sentido de reconhecer as prezas e abrir
caminho para a redenção. Ao ouvir a história
de vida contada por Janet Colgate (Glenne Headly) em
Os Safados, Lawrence Jamieson (Caine) se sensibiliza
e desiste de garfá-la. "As mulheres com
que lido são ricas e corruptas. Nunca me aproveito
das pobres e virtuosas", ele diz. Mas, por mais
que Lawrence confie na pureza de Janet, o grande desfecho
do filme é ela passando a perna nos dois, nele
e em Freddy. Ela os enquadra, vê-los de fora,
despe-os. Na última cena, Janet leva um grupo
de turistas riquíssimos à mansão/hotel
de Lawrence, apresentado-o aos novos hóspedes
de modo cínico e altamente analítico.
O filme tinha adotado uma forma mais misteriosa de filmar
Lawrence e seus pontos de vista. Ele só aparece
de costas no excelente plano-seqüência inaugural,
em que ouvimos também sua voz, com a câmera
acompanhando em detalhe a passagem de um colar de pérolas
do pescoço da lady às mãos do escroque
(Michael Ballhaus é o diretor de fotografia,
apenas dois anos antes de seu antológico trabalho
em Os Bons Companheiros). Freddy, por sua vez,
é filmado de maneira mais simples e aberta, sua
entrada em cena é frontal e espalhafatosa; um
personagem mais transparente. O olhar do personagem
de Caine se confunde às tomadas de vista da decupagem
porque ele é o mais próximo do que o cinema
clássico entende por direção: planejar
cuidadosamente, controlar as peças – e ocultar
sua presença como tal. Na última seqüência,
porém, quando Janet reaparece, ambos estão
enquadrados e avaliados de fora: no fim das contas era
ela quem controlava tudo. Ao cair na armadilha de Janet,
Lawrence fica maravilhado: "Ela nos pegou desde
o início, ela é perfeita".
Lawrence é o produto ideal de um anseio burguês
que se origina do interesse estético pelo crime,
este elevado a arte. Eis a grande diferença entre
Freddy, espaçoso e vulgar como o estereótipo
de comédia sobre turista americano na Europa
(mais detalhes, ver Chevy Chase em Férias
Frustradas 2), e Lawrence, discreto e polido como
um aristocrata europeu. "Essa tapeação
levou anos para ser aperfeiçoada", afirma
Lawrence, sugerindo a existência de todo um savoir-faire,
toda uma técnica de pilantragem. Ele representa
um tipo de criminoso que surge na literatura em meados
do século XIX e que o cinema muito cedo adota
como personagem de destaque. Bem educado, erudito, engenhoso,
ele "apresenta todos os signos e todas as garantias
da burguesia" (Foucault, "Sobre a prisão",
em Microfísica do Poder), mantendo sempre
uma relação de coexistência pacífica
com a polícia (em Os Safados, Lawrence
tem conchavo com o chefe de polícia de Beaumont
Sur Mer, o paraíso mediterrânico em que
o filme se passa). É o esnobe na estrita acepção
da palavra, o burguês sem nobreza (sine nobilitate,
s. nob.), mas que constrói para si um disfarce
monumental. Um criminoso que não mata, apenas
executa roubos cirúrgicos, assépticos,
sem derramamento de sangue (qualquer semelhança
com as falsas promessas das guerras atuais pode não
ser mera coincidência).
Quando Janet surge, Lawrence e Freddy fazem uma aposta
para ver quem a seduz primeiro. O filme opõe,
então, as duas técnicas distintas, a do
homem que se rebaixa para conseguir o que quer, finge
para menos (Freddy), e a do homem que se sobreleva,
finge para mais (Lawrence). Steve Martin ressurge então
numa cadeira de rodas, vítima de um trauma psicológico
que lhe subtraiu a capacidade de andar. Michael Caine,
forçando sotaque, aparece como um grande neuropsiquiatra
alemão capaz de curá-lo (já em
resposta à estratégia de Freddy). Ao invés
de se perder na pura encenação do jogo,
entretanto, é a partir daí que o filme
se mantém mais engraçado que nunca. Lá
onde outros concentrariam o filme na engenhosidade narrativa
(os irmãos Coen, por sinal, surpreenderam ao
escapar – parcialmente – desse vício, que lhes
é tão peculiar, no recente Matadores
de Velhinha, releitura justamente deste gênero
aqui em questão), Oz prefere fazer um filme de
comédia e ponto, e nisso consiste o melhor de
Os Safados. A própria existência
do personagem de Steve Martin aponta para isso: além
do mastermind do crime, é preciso alguém
para executar o trabalho sujo. Não bastam reviravoltas
de roteiro, são necessárias também
as cenas com Ruprecht, genial personagem dentro do personagem
de Martin, ao qual se deve a antológica cena
na mesa de jantar ("perda de noção"
essencial para o filme).
A Cartada Final também trabalha numa chave
de heroificação estética do crime,
mas introduzindo uma sofisticação – no
que concerne à operação arriscada
– menos intelectual do que tecnológica. O alvo
do roubo deixa de ser novas ricas americanas e passa
a ser um cetro de ouro (de posse francesa) avaliado
em dezenas de milhões, e trancafiado num cofre
protegido pela máxima segurança. Entra
em jogo uma operação de códigos
matemáticos, instrumentos ultramodernos, ação
milimetrada. Não é mais um jogo de atores
e improvisos, uma brincadeira com as regras sociais:
o crime torna-se mais profissional. As diferenças
e as semelhanças em relação a Os
Safados se equiparam. Ainda que difiram ao optar
por comédia num caso e aventura no outro, os
filmes concordam ao fazer contracenar dois personagens
de distintos métodos e temperamento. Nick (Robert
De Niro) é o elegante artesão do crime,
que rejeita armas, age cientificamente. Jack (Edward
Norton), mais jovem e agressivo, insiste em usar armas
e tem no disfarce sua ferramenta especial. Mais ou menos
como a complementaridade da dupla Lawrence/Freddy, com
a exceção de que em Os Safados
não havia vilania declarada em nenhum dos personagens
(em A Cartada Final Jack se revelará antagonista),
assim como a "missão" principal visava
– desde que os dois pilantras haviam se encontrado e
se reconhecido enquanto concorrentes – muito mais uma
vitória pessoal do que uma compensação
financeira; todos eram vilões na medida exata
em que eram inocentes, pois ninguém – nem mesmo
as autoridades locais – estava interessado em bancar
o bonzinho na bela locação litorânea
em que cassinos e boates eram espécies de instituições
intocáveis. Nos acertos que lá se verificam
e em A Cartada Final se ausentam, os personagens
de Martin e Caine apenas partem dos clichês, para
depois serem progressivamente individualizados, matizados,
resultando em figuras tão singulares quanto inesquecíveis.
A Cartada Final, por seu turno, acorre aos clichês
como finalidade, e termina se emparedando, tão
logo o filme faz sua apresentação inicial,
numa micro-câmara de signos onde a previsibilidade
(no pior sentido possível) é a única
palavra de ordem. O filme, acima de qualquer outra crítica
negativa, é desinteressante, mero exercício
de gênero que se esgota na sua simples execução.
E não se pode negar, evidentemente, que Oz filma
muito melhor comédia do que aventura. A despeito
do belo diálogo entre Marlon Brando (que faz
um coadjuvante, o semipoderoso chefão Max) e
Robert De Niro, em que discutem a famosa "hora
de parar" (discussão presente na base de
onze entre dez filmes do gênero), A Cartada
Final não sustenta grande interesse em praticamente
nenhuma outra seqüência.
Em meio à febre dos filmes sobre golpistas em
alto-estilo – praticamente todos os típicos diretores
de estúdio deram sua contribuição
recente ao gênero –, é bastante agradável
rever Os Safados (com bela cópia em DVD,
respeitando o nítido amor de Oz pelas cores),
cujo desfecho narrativo não é mera esperteza
e cujos protagonistas são muito mais simpáticos
e bem-vindos do que a grande maioria dos trapaceiros
que vêm preenchendo o cinema. Do infantil A
Chave Mágica a Mulheres Perfeitas,
passando por Nosso Querido Bob e Será
Que Ele É?, Frank Oz sempre se deixa envolver
conscientemente pela singularidade dos seus personagens.
É justamente esse apego criativo aos personagens,
além de uma mise en scène que transmita
um "sentir-se em casa", que faltam em A
Cartada Final e dão sustância a Os
Safados, fazendo deste último uma excelente
comédia.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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