Imaginemos
por um segundo que a viagem no tempo é uma realidade
possível: imaginem então que eu possa voltar ao passado,
digamos, a 1980, no ABC paulista. Lá, misturado aos
metalúrgicos, peço a palavra numa manifestação para
deixar clara minha condição de visitante do futuro:
“Companheiros! Podem seguir tranquilos com sua luta:
no ano de 2004, o presidente do Brasil será o companheiro
Luis Inácio Lula da Silva (o Lula!), eleito pelo agora
recém-criado Partido dos Trabalhadores, e dois dos três
maiores sucessos do cinema nacional (ou melhor, dos
filmes dirigidos por diretores brasileiros) serão protagonizados
por Che Guevara e por Olga Benário, que vocês não conhecem
muito ainda, mas foi a companheira do líder comunista
Luis Carlos Prestes!” Se não me expulsassem a tapas
por tentar tumultuar com sandices a sua assembléia em
plena negociação de greves, e tomassem minha palavra
como verdadeira, os metalúrgicos (assim como toda pessoa
mesmo que levemente de esquerda naquele momento) renovariam
as forças para a luta porque, sem dúvida, era certo
que a Revolução viria a um Brasil, mesmo que tudo lá
parecesse tão distante destas possibilidades.
E assim mesmo, aqui estamos, no 2004 descrito acima.
E fica a pergunta: veio a revolução, afinal? Como não
se trata aqui de uma revista de análise do panorama
político por si, me eximo de especulações toscas sobre
esta área. Mas posso falar da área que nos interessa:
o que representa a coincidência de vermos nas telas,
com sucesso, Che Guevara e Olga? E ter como terceiro
vértice dos maiores sucessos de bilheteria nacionais
de 2004 a biografia de Cazuza, que também era um ícone
da rebeldia e conflito com o sistema sócio-cultural
que o cercava.
Quanto à resposta sobre a vinda da revolução não paramos
num redundante “não”: a situação é ainda mais complexa,
complicada e abrangente e esconde uma face quase grotesca.
Ouso afirmar que as biografias de Olga, Che e Cazuza,
como as vemos na tela, representam no seu conjunto (ainda
que precisem ser melhor discutidas caso a caso, abaixo)
a mais fragorosa derrota dentre todas aquelas que qualquer
ideário de revolta, de um idealismo anti-sistema pode
sofrer: a sua aceitação pelo mesmo sistema que desejou
enfrentar, combater (com a ressalva importante que,
no caso de Cazuza, este processo é semelhante com o
que sua arte enfrentou enquanto ele ainda era vivo).
E, ao tornarem-se parte deste sistema, não apenas temos
a perda do sentido original de suas ações, mas acima
de tudo a comprovação de que são considerados (e tornados)
inofensivos hoje, sem qualquer risco de incitarem nenhum
movimento de contestação a nada.
Embora esta observação geral quanto ao movimento engolidor
do capitalismo seja pouco original (Benjamin e Adorno
já apontavam para tal fato), o que me interessa ver,
neste contexto, são menos os significados políticos
deste abraço fagocitador do sistema a ícones de enfrentamento,
mas acima de tudo como isso é muito bem articulado e
plenamente representado como linguagem dramatúrgica,
como linguagem cinematográfica. Mas antes de partirmos
para este movimento é importante um esclarecimento:
não queremos reproduzir aqui um discurso típico de oposição
que deseja se perpetuar na oposição, para a qual tornar-se
governo, por assim dizer, seria em si sempre uma derrota
– ou seja, achar que o problema com estes filmes é o
sucesso ou a aceitação em si. Trata-se sim de achar
necessário analisar como este tratamento dramatúrgico-cinematográfico
destitui passo a passo o potencial contestatório destas
figuras e consegue extrair daí não apenas lucro para
o próprio sistema (estando neste o movimento menos grave,
a meu ver – lembremos das piadas do Casseta e Planeta
sobre a camiseta de Che como fenômeno de vendas), mas
principalmente esta mencionada “inofensização” da idéia
mesmo de revolução.
Indo então para uma análise mais aproximada do que os
filmes apresentam, a primeira constatação é bastante
óbvia, embora nem por isso menos importante. Não seria
caso apenas de se trazer de volta a pergunta se “existe
arte revolucionária sem forma revolucionária” porque
afinal nenhum dos filmes aqui mencionados sequer se
propõe a ser, em si, exemplo de uma arte revolucionária.
Ainda assim, há que se notar que era uma missão complicada
a que estes realizadores se impuseram: como fazer filmes-louvação
sobre figuras que representam idéias tão, digamos assim,
“complicadas” ainda nestes tempos. Afinal, não seria
“desejável” louvar alguns dos principais valores que
elas de fato defendiam, para não influenciar mal nossa
“juventude” e para as vovós poderem ir ver o filme e
recomendarem às outras titias: o ativismo comunista
e a revolução armada contra o sistema imperialista colonizante,
ou simplesmente o desregramento sexual e narcótico como
um dos braços de um abraço sem regras à vida. Pois as
soluções encontradas impressionam pela alta porcentagem
de sucesso em atingir o fim buscado: o esvaziamento
político das figuras, combinado a uma extrema habilidade
em fazer delas material “para toda a família”.
Aquele garoto que ia mudar o mundo agora assiste
a tudo de cima do muro
Há que se notar os primeiros dois pontos que a análise
dramático-narrativa permite enxergar: primeiro, a escolha
de nomes históricos, não por acaso já falecidos - o
que implica, no fato de que jamais saberemos o que eles
mesmos pensariam hoje sobre o mundo, sobre sua própria
figura histórica e, portanto, sobre os filmes feitos
sobre eles. Segundo, a opção pelo formato personalista
da “biografia” (Diários de Motocicleta se afirma
menos como tal, por escolher o foco em um determinado
momento, mas nem por isso não se enquadra na categoria).
Ambos parecem movimentos quase naturais do processo
de produção, mas no geral representam algo de bastante
interessante: ou alguém consegue imaginar um filme edificante
feito agora sobre um, vejamos... José Rainha, ou um
Stédile? Parece absurdo, não? Mas, sabe-se lá o que
o futuro traz – ainda mais depois que se desconsiderar
o MST como uma “ameaça real”.
Já com a escolha destes ícones mortos, o que passa a
valer é menos sua análise dos fatos de então e mais
a de seus “herdeiros” (que no caso de Che é o companheiro
de viagem Granado; no caso de Cazuza é a sua mãe; e
no caso de Olga, passou a ser seu biógrafo, Fernando
Morais). Todos os três mencionados herdeiros (e formatadores)
da “memória” destas figuras históricas trabalharam de
forma bastante próxima com os responsáveis pela produção
dos filmes, fato aliás sempre destacado por estas porque
dá verniz de “correção histórica”, de veracidade a estas
interpretações sobre suas vidas. No meio do caminho,
tenta-se ainda diminuir alguns possíveis ruídos de herdeiros
menos dados a compactuação total, como pudemos ver com
o caso bastante interessante dos protestos da filha
de Olga no final da pré-estréia de gala do filme, ou
ainda numa entrevista de Marília Gabriela, quando do
lançamento de Cazuza, com Lucinha Araújo (a mãe)
e Ezequiel Neves, na qual a constante impertinência
deste último em relembrar o espírito indômito do amigo
nas festas e noitadas criativas foi censurada veementemente
pela mãe Lucinha com a frase “temos coisas mais bonitas
a falar de Cazuza, e a lembrar dele!”
Esta frase, inocente e plenamente coerente quando proferida
por uma mãe que zela pela memória do filho, na verdade
representa o movimento dramatúrgico que se tenta fazer
nestes filmes sobre pessoas que foram frontalmente contra
vários dos valores que hoje regem a sociedade (brasileira
e/ou mundial): o que temos de bonito para lembrar e
aprender com a vida destas pessoas – apesar destas pequenas
impertinências destes espíritos excêntricos e um tanto
teimosos? O resultado é que temos, então, estas “boas
pessoas” com quem podemos aprender algo sobre a vida
- desejo muito em voga nos tempos de auto-ajuda galopante.
Cazuza e Olga de forma clara e definitiva, e Che também,
ainda que um pouco menos, recebem este tratamento então:
no primeiro, o homossexualismo e o uso das drogas; e
na segunda, o ativismo comunista são vistos como se
através dos olhos de mães compreensivas (no primeiro
caso, literalmente, já que livro e filme são feitos
sob o ponto de vista de Lucinha Araújo). São jovens
um pouco hiperativos, talvez um tanto incomuns em suas
opções de vida, mas ora, são boas pessoas acima de tudo.
Digo que Che sofre menos deste tratamento pela opção
em justamente não tratar de sua fase revolucionária
em si - o que, para além de opção de contenção dramática
até elogiável (os filmes-painel-de-vida sempre soam
simplificadores, não importa como pensados), representa
também uma opção de não-confronto com o senso comum,
pela exclusão de uma possível linha temática.
Meu Partido é um coração partido
Na narrativa dos filmes, esta tentativa de domesticação
das personas é feita por um movimento duplo, aparentemente
contraditório, mas na verdade nem um pouco: primeiro,
o de torná-los “gente como nós”, ou seja, colocá-los
em relações familiares, afetivas e de amizade que os
igualam a pessoas comuns (a obsessão em mostrar cenas
com pais é uma constante), dando familiaridade a suas
vidas que os retirem da condição anterior que poderiam
ter com platéias eventualmente conservadoras (a imagem
de ícones da esquerda, ou de porralouquice inconsequente);
e, em seguida, torná-los sobre-humanos, semideuses acima
da raça humana (Che atravessa o Rio Amazonas a nado
para estar com os leprosos e depois de “acordar para
a injustiça” não apresenta mais nenhum impulso, por
exemplo, sexual; Olga, no plano final, olha fixamente
para a lente, totalmente retirada, pelo heroísmo, do
desespero excessivamente humano das mulheres à sua volta
em plena câmara de gás; Cazuza, pós-AIDS, torna-se uma
figura sábia na sua dor e entendimento da vida, e volta
ao seio da família). Este segundo movimento se combina
com o primeiro para complementá-lo: garantida a familiaridade
de que eram filhos de famílias “como as nossas”, retira-se
da dimensão terrena suas figuras (destaque-se que com
Cazuza este movimento é bem menos marcado, até porque,
convenhamos, ele nunca pegou em armas para matar ninguém
– portanto precisa ser menos tornado “valor abstrato”).
Como aquilo que está fora do nosso mundo, as figuras
santificadas deixam de ser, finalmente, políticas. Voilá,
está completo o prato – é só servir às massas.
Olga é, de novo, o melhor exemplo: desde o cartaz do
filme percebe-se a obsessão de fazer, antes de tudo,
a transformação de uma “comunista” numa Mulher. Assim,
com M maiúsculo mesmo, de tanto que se aperta esta tecla
no filme (citemos apenas duas frases retiradas do texto:
“você mal parece uma mulher” – quando ela está em meio
a ações anti-nazistas na Alemanha; ou “entre um discurso
e um salto de pára-quedas vai te sobrar pouco tempo
para ser mulher” – quando de sua decisão de ir para
a União Soviética). A palavra “mulher” está sempre entendida,
fundamentalmente, como mãe: daí a obsessão não só pela
filha de Olga como pela mãe de Prestes e seu papel no
filme. Há um momento em que este processo de transformação
faz do filme quase um Shirley Valentine, um Sob
o Sol da Toscana, onde Luis Carlos Prestes (lembram
dele? o líder comunista?) vira o amante latino que com
sua “varinha de condão” (vale o trocadilho) desperta
a mulher que há dentro da comunista Olga. Tornada Mulher
(mãe, dona de casa), ela vai tornar-se então uma Semideusa,
pelo caminho do sofrimento (Paixão de Cristo,
alguém?). Tudo, portanto, menos ser político.
Ideologia, eu quero uma pra viver
Sobra um pequeno problema: há limites do razoável, e
seria demais pensar que se possa tirar completamente
o espírito contestador destas figuras – o que seria,
inclusive, indesejável, já que este espírito é parte
do charme destas figuras. Então torna-se preciso fazer
um astuto movimento contrário: já que eles são rebeldes
mesmo, não tem jeito, cabe retrabalhar aquilo contra
o quê eles se rebelarão. Peguemos Olga como exemplo:
seus inimigos são o nazismo e a polícia maldosa de Getúlio
Vargas (ou mesmo o próprio Vargas, cujo retrato aqui,
lançado nos cinemas dias antes dos 50 anos de seu suicídio,
é a mais polêmica posição que o filme assume). Ora,
quem pode ser a favor dos nazistas ou de policiais maldosos
e traiçoeiros – ou de um ditador como Vargas é exclusivamente
apresentado? Portanto, a adesão dela ao comunismo se
torna secundária frente à inconfundível maldade intrínseca
de todos aqueles que estão contra ela – mesmo sua mãe,
que para além de questões pessoais e políticas, mostra-se
uma simpatizante do nazismo e uma autêntica “madrasta”
(depois punida pelo mesmo nazismo, para regozijo de
platéias num clima “ela merece!”).
O mesmo vale para Che: a opção pelo recorte de juventude
limpa Che da grande “mancha” no seu currículo posterior,
aos olhos gerais de uma platéia conservadora – a escolha
do caminho da revolução armada, da militarização, do
confronto direto contra as estruturas montadas do capitalismo
imperialista na América Latina. Isso tudo é trocado
por um jovem que descobre que é contra as desigualdades
sociais, contra a injustiça. Ora bolas, e quem é a favor
da injustiça, das desigualdades sociais? Não pergunto
aqui quem as pratica no dia a dia, e sim quem afirme
na frente de todos, garboso, batendo no peito: “Eu sou
a favor das desigualdades sociais!”. Pois é, ninguém
- só mesmo o saudoso Justo Veríssimo, de Chico Anysyo.
Portanto não nos perguntemos o que nós podemos fazer
contra “isso” (nem muito menos o que Che, aquele rapaz
simpático, ia fazer), e sim nos regozijamos no pensamento:
“é mesmo, isso está errado, eu também atravessaria este
rio a nado! Querida, quer mais uma pipoca lá da lojinha?”
Golpe genial: nazismo, desigualdades sociais, injustiças,
Getúlio Vargas - o ditador; e por que não, a opressão
do espírito capitalista de papai (caso de Cazuza) -
afinal já fomos todos adolescentes! Não é contra isso
que brigavam, no fundo, Che, Olga, Cazuza? Não???
Meus heróis morreram de overdose
Resolvidos os problemas dramatúrgico-narrativos para
tornar nossos personagens não só palatáveis, como modelos
de vida para todas as platéias, prontos para passar
na TV no domingo de noite, usa-se então algumas combinações
formais infalíveis, porque sabemos que forma é conteúdo:
antes de tudo, música, muita música sempre, o tempo
todo (tá, em Olga eles exageraram!), para que
toda vez que o espectador comece a pensar, ele seja
forçado a se emocionar. Narração em off contextualizadora
também ajuda, já que aprisiona os eventos no passado,
mas sempre com a consciência que só o futuro post-mortem
pode dar a estas “lições de vida”. Mais ainda: diálogos
que pareçam escritos em manifestos – difícil crer que
alguém fale do mesmo jeito que o personagem Cazuza,
para quem cada conversa é uma exposição de motivos (especialmente
no começo do filme), ou como todos os personagens de
Olga (mais um momento cômico involuntário: o
pai de Olga ralha com ela e diz que “frases feitas não
vão mudar o mundo!” – para além desta ser uma delas,
ele segue com mais duas logo na sequência. Mas a culpa
não é dele, todos os personagens se comunicam nesta
linguagem). Diários de Motocicleta até se resolve melhor
neste ponto, durante boa parte de sua duração (em muito
graças ao personagem e ator que faz Granado), mas quando
Che “vê a luz”, vai perdendo a linha até desaguar no
discurso final no leprosário.
Mas, há que se ir mais longe, e a construção das imagens
é o lugar onde os filmes mais se prestam a estigmatizar
constantemente a leitura que tentam fazer. Na crítica
a Diários aqui na revista, Ruy Gardnier analisa
algumas das problemáticas opções dsta filmagem, mas
nenhuma parece mais escandalosa do que os planos “sebastiãosalgado”
do final, seguidos da fusão dos olhos do Granado de
então para o Granado de hoje. Mais do que manipulador
ou melodramático (que não são palavras em si negativas,
e sim como elas se manifestam), é importante ver como
o uso daquelas figuras para tal comoção (onde o excluído
se torna de novo o outro, o coitado – portanto o distante
de quem somos, como em todo trabalho de Salgado) não
parece nem um pouco necessário naquele ponto do filme
- trata-se mesmo da imposição, difícil de entender,
de uma determinda emoção.
Em Olga, vale a dinâmica televisiva de filmagem:
plano de conjunto, estabelece o ambiente, vamos para
o plano e contraplano fechado, como se estivéssemos
sempre num enorme estúdio de TV com suas quatro, cinco
câmeras. Surpreende, por exemplo, para um filme que,
como Olga,
deseja ostentar a pujança de sua produção a opção pelo
1,66 ao invés do formato de tela larga, cinemascope.
Quer dizer, não surpreende: produto adequado à dramaturgia
televisiva, já pode ir sem perdas visuais para sua exibição
posterior na Rede Globo. Mas, para além da praticidade
(e de uma certa humildade respeitosa com o cinema, aliás),
a opção demonstra mesmo é a explicitação do domínio
da emotividade simplória, típica da TV, para além das
possibilidades visuais de ampliação do escopo (metafórico
e prático, no caso).
Meus inimigos estão no poder
Uma vez que se observe com atenção estes movimentos
acima realizados para domesticar e inofensivizar as
figuras aqui discutidas, há que se pensar no quadro
maior: por que fazê-lo? E o que isso nos diria para
além dos filmes? Começando pelo final, uma constatação
que vem dos filmes sobre Olga e Che: o comunismo não
é mais uma ameaça plausível a nada nem ninguém – não
só o regime soviético, mas o ideário comunista mesmo.
De tal forma se tornou senso comum que o regime capitalista
(em suas várias formas, mesmo o capitalismo financeiro-imaterial
insano atualmente em voga) é, menos do que uma opção,
uma realidade inevitável, que pode-se buscar mesmo ícones
comunistas como heróis dramáticos para as massas – porque
o que resta de comunismo deles é purgado não só nos
filmes, como no mundo real pela queda do Muro, etc.
Fato este, aliás, que torna no mínimo ainda mais peculiar
a sanha anti-soviética dos recentes ataques de Jabor
e Diegues ao projeto de lei do Governo – nem eles mesmos
parecem entender o que o mercado já entendeu, que ninguém
mais tem medo de comunistas (mas isso é assunto de outra
pauta).
Mas o movimento é mais complexo do que isso: afinal,
a reescritura da História conforme a visão do sistema
vigente não é só algo constante em diferentes momentos
históricos do mundo – é algo que já vimos no cinema
brasileiro mesmo. Quando? Anos 70, ditadura militar,
Medici, Brasil Grande. Claro, os expedientes eram outros,
muito menos sofisticados, em filmes como Independência
ou Morte - mas em tempos de ditadura militar não
se pede mesmo muita sofisticação. Mas, se Jean-Claude
Bernardet em “Qual é a História?” pensa o cinema histórico
como resultado de um mecanismo de pressão acionado por
segmentos da classe dominante para promover a produção
de obras que sirvam diretamente a seus interesses, ideológicos
e estéticos, fica a pergunta: qual modelo de produção
realmente representa hoje a imposição de uma ditadura
efetiva, ainda que muito mais disfarçada em sua aparência
liberal e de fundo econômico? Será que para caçar fantasmas
de um distante (e, como dito, já morto) comunismo, Diegues
e Jabor não percebem que o perigo totalizante de hoje
não vem nem um pouco dos pobres “soviéticos do MinC”
e sim de um modelo vigente - cujos protagonistas corporativos,
aliás, têm ligação com uma circunstância histórica muito
mais real e presente no Brasil (a ditadura militar)
do que o comunismo – que nunca chegou perto de “pegar”
por estas bandas.
Estaria eu dizendo que Jayme Monjardim ou Walter Salles
são arautos ou defensores de uma ditadura militar? Óbvio
que não – argumentação baseada em tal simplificação
personalista e estigmatizante só faz sentido na cabeça
insana de alguns. O que eu digo é que seus filmes são
(mesmo quando feitos com todas as boas intenções que
são óbvias em Diários ou Cazuza) sintoma
de um momento histórico refletidos na arte e num modelo
produtivo. E que, quando destrinchados em termos de
linguagem cinematográfica-dramatúrgica, demonstram não
só a vitória final e acachapante (porque nem percebida
como tal) de um olhar sobre o mundo e seus fenômenos
como, principalmente, a derrota final de toda uma possibilidade
de revolta contra ele – tornados os ícones desta garotos-propaganda,
peças na engrenagem de lucro contra a qual se insurgiram.
O fim da história? Isso já se disse antes, mas ainda
vale pagar pra ver.
Eduardo Valente
|