A incessante e incansável busca travada por Sanjinés
e seu grupo Ukamau em encontrar a medida certa para
fazer nascer um cinema essencialmente andino – longe
das concepções e parâmetros definidos
pela cultura ocidental, um cinema amplamente coletivo,
popular e revolucionário – foi também
grandiosamente árdua e longa. Foi preciso se
munir de uma quantidade expressiva de paciência
e autocritica para detectar onde estava o erro em um
cinema endereçado a um destinatário especifico
(o povo andino), mas que não conseguia efetivar
a sua comunicação com ele. Essa busca
se inicia com a realização de Ukamau,
seu primeiro longa-metragem, continua já com
algumas mudanças no retrato do povo indígena
em Sangre de condor e se faz completamente radical
e intransigente a partir de Coragem del pueblo.
Esses filmes, que compõem a quase totalidade
da obra de Sanjinés – juntamente com seu vasto
trabalho teórico – se configuraram em eficientes
laboratórios utilizados para se chegar a uma
meta bem definida, a um ponto certo que mais cedo ou
mais tarde seria alcançado. Esse ponto certo,
esse momento de ápice e de Maximo esplendor chama-se
La nación clandestina.
A incrível força conseguida pelo realizador
em Coragem del pueblo e amplificada até
a máxima potência em El enemigo principal
através da vitalidade expressiva do personagem
coletivo encontra em La nación clandestina
sua depuração. Temos agora um personagem
com nome, Sebastián Mamani, que se destaca na
narrativa ao lado dos demais. Sua utilização,
porém, se justifica no objetivo de, através
de sua historia, conhecer a história de seu povo
e a afirmação de sua identidade. A grande
questão a ser resolvida é o dilema da
identidade de um povo que vive, como o titulo sugere,
de maneira clandestina dentro dos subterrâneos
de uma outra nação. A verdadeira e genuína
nação é a que está prestes
a explodir a qualquer momento.
Esse conceito de um país que vive dentro de um
outro país e que tenta ferozmente se afirmar
surge na obra de Sanjinés a partir de La nacion
clandestina de forma sistemática e incisiva.
Em Para recebir el canto de los pájaros (1995),
vemos o encontro travado entre uma equipe de filmagem
composta por representantes de uma elite branco-urbana
e uma comunidade andina. A grande problemática
levantada pela obra é justamente o confronto
de duas realidades totalmente distintas e a ignorância
da sociedade branca em relação à
cultura e a filosofia dos povos andinos. Os brancos,
munidos de sua arrogância ocidental, crêem
que todas as culturas se movimentam de acordo com as
leis de sua própria, e com isso promovem um grave
ruído comunicacional. O mesmo ocorre em Los
hijos del ultimo jardín (2004), quando um
grupo de jovens urbanos se depara com uma comunidade
aymara. O confronto cidade/campo, cultura ocidental/cultura
andina, individualismo/coletivismo ganham nesses três
últimos filmes uma especial atenção.
Na verdade, o trio de antagonismos já aparece
em Sangre de condor, especialmente através
da tomada de consciência do operário Sixto.
Após a morte de seu irmão, Sixto percebe
que seu lugar é no campo junto com o seu povo,
e será por meio dessa união que sua luta
fará sentido.
O definitivo retorno alcançado por Sixto será
constantemente ansiado por Mamani em La nácion
clandestina. Mamani na cidade é um morto-vivo,
um ser desprovido de energia e de identidade. A sua
morte simbólica se realizou no momento em que
ele foi expulso de sua comunidade. Agora, na cidade,
ele respira morte por todos os lados. A sua casa está
repleta de caixões para crianças. A sua
função nessa outra realidade é
fabricar leitos mortuários para os que tiveram
a vida decepada prematuramente. A única forma
possível para que ele seja reincorporado à
sua comunidade, e enfim renascer simbolicamente, é
a morte. È somente morrendo fisicamente que o
personagem poderá se ver livre de sua culpa e
voltar a ter identidade. A sua identidade é a
identidade de sua cultura, e é ela a responsável
por manter a vida de seu espírito.
Após um breve prólogo, pelo qual sabemos
o paradeiro de Mamani e sua fascinação
infantil pelo ritual da dança da morte, nos situamos
no trajeto do personagem que o levará da cidade
grande à sua aldeia. Utilizando o tempo circular,
a narrativa sempre volta para o percurso de Mamani,
que visualiza momentos de sua vida pregressa. Em um
mesmo plano seqüência vemos os tempos se
mesclarem. Eventos que acontecem no passado aparecem
reunidos em um mesmo espaço com os do presente.
Nos momentos finais, as cenas se mostram como o ponto
de vista do personagem, que permanece sério e
inerte diante do que acabou de ver encenado à
sua frente. As lembranças pertencem ao presente
porque elas possuem o brutal peso da culpa e estão
anexadas ao seu corpo como a máscara que carrega
em suas costas. Cada trecho de seu trajeto o transforma
na condição de espectador de sua própria
história. Tendo a distancia característica
do papel de espectador, ele enxerga com maior clareza
e senso crítico o significado e a conseqüência
de seus atos.
Entre esse cruzamento articulado por presente e futuro,
vemos flashbacks, no sentido convencional do
termo, que nos narram momentos essenciais para entendermos
a saga de Mamani e a lógica do sistema andino.
O que está claro e transparente para um espectador
andino – para o qual o filme foi feito – é nebuloso
para um espectador ocidental. Este, aos poucos, vai
decifrando os códigos apresentados como se estivesse
tirando uma carta em um jogo de baralho. Cada nova carta
é uma revelação que só fará
sentido ao ser justaposta a uma outra carta tirada anteriormente.
Assim, para nós, as informações
referentes à cosmovisão do povo andino
são tão fragmentadas quanto os tempos
narrativos da obra.
Talvez seja essa a principal sensação
evocada durante a exibição de La nácion
clandestina. A sensação de descoberta,
de estar diante de um cinema jamais feito por nenhum
realizador, de um cinema que possa sim ser descrito
com letras garrafais de não-ocidental. Mesclado
ao sabor de algo novo e insólito surge um leve
desnorteamento que é amplificado na seqüência
final. A incrível dança da morte praticada
por Mamani é interrompida pelos homens da comunidade.
Sem poder falar, por estar portando a máscara
especifica do ritual, o personagem espera inerte e aflito
a resposta sobre se poderá prosseguir a dança
e morrer redimido, ou se será "morto como
um cachorro". A dança e a música
então prosseguem até o derradeiro tombo.
Durante o plano sequência de seu enterro a câmera
se desloca lentamente para a esquerda, até que
pára nele novamente, portando uma capa preta,
agora na condição de espectador. O renascimento
simbólico de uma pessoa – e de um cinema – que
estava na intensa procura de sentido e de identidade
própria finalmente ocorreu.
Estevão Garcia
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