LA NACIÓN CLANDESTINA
Jorge Sanjinés, La Nación Clandestina, Bolívia, 1989

A incessante e incansável busca travada por Sanjinés e seu grupo Ukamau em encontrar a medida certa para fazer nascer um cinema essencialmente andino – longe das concepções e parâmetros definidos pela cultura ocidental, um cinema amplamente coletivo, popular e revolucionário – foi também grandiosamente árdua e longa. Foi preciso se munir de uma quantidade expressiva de paciência e autocritica para detectar onde estava o erro em um cinema endereçado a um destinatário especifico (o povo andino), mas que não conseguia efetivar a sua comunicação com ele. Essa busca se inicia com a realização de Ukamau, seu primeiro longa-metragem, continua já com algumas mudanças no retrato do povo indígena em Sangre de condor e se faz completamente radical e intransigente a partir de Coragem del pueblo. Esses filmes, que compõem a quase totalidade da obra de Sanjinés – juntamente com seu vasto trabalho teórico – se configuraram em eficientes laboratórios utilizados para se chegar a uma meta bem definida, a um ponto certo que mais cedo ou mais tarde seria alcançado. Esse ponto certo, esse momento de ápice e de Maximo esplendor chama-se La nación clandestina.

A incrível força conseguida pelo realizador em Coragem del pueblo e amplificada até a máxima potência em El enemigo principal através da vitalidade expressiva do personagem coletivo encontra em La nación clandestina sua depuração. Temos agora um personagem com nome, Sebastián Mamani, que se destaca na narrativa ao lado dos demais. Sua utilização, porém, se justifica no objetivo de, através de sua historia, conhecer a história de seu povo e a afirmação de sua identidade. A grande questão a ser resolvida é o dilema da identidade de um povo que vive, como o titulo sugere, de maneira clandestina dentro dos subterrâneos de uma outra nação. A verdadeira e genuína nação é a que está prestes a explodir a qualquer momento.

Esse conceito de um país que vive dentro de um outro país e que tenta ferozmente se afirmar surge na obra de Sanjinés a partir de La nacion clandestina de forma sistemática e incisiva. Em Para recebir el canto de los pájaros (1995), vemos o encontro travado entre uma equipe de filmagem composta por representantes de uma elite branco-urbana e uma comunidade andina. A grande problemática levantada pela obra é justamente o confronto de duas realidades totalmente distintas e a ignorância da sociedade branca em relação à cultura e a filosofia dos povos andinos. Os brancos, munidos de sua arrogância ocidental, crêem que todas as culturas se movimentam de acordo com as leis de sua própria, e com isso promovem um grave ruído comunicacional. O mesmo ocorre em Los hijos del ultimo jardín (2004), quando um grupo de jovens urbanos se depara com uma comunidade aymara. O confronto cidade/campo, cultura ocidental/cultura andina, individualismo/coletivismo ganham nesses três últimos filmes uma especial atenção. Na verdade, o trio de antagonismos já aparece em Sangre de condor, especialmente através da tomada de consciência do operário Sixto. Após a morte de seu irmão, Sixto percebe que seu lugar é no campo junto com o seu povo, e será por meio dessa união que sua luta fará sentido.

O definitivo retorno alcançado por Sixto será constantemente ansiado por Mamani em La nácion clandestina. Mamani na cidade é um morto-vivo, um ser desprovido de energia e de identidade. A sua morte simbólica se realizou no momento em que ele foi expulso de sua comunidade. Agora, na cidade, ele respira morte por todos os lados. A sua casa está repleta de caixões para crianças. A sua função nessa outra realidade é fabricar leitos mortuários para os que tiveram a vida decepada prematuramente. A única forma possível para que ele seja reincorporado à sua comunidade, e enfim renascer simbolicamente, é a morte. È somente morrendo fisicamente que o personagem poderá se ver livre de sua culpa e voltar a ter identidade. A sua identidade é a identidade de sua cultura, e é ela a responsável por manter a vida de seu espírito.

Após um breve prólogo, pelo qual sabemos o paradeiro de Mamani e sua fascinação infantil pelo ritual da dança da morte, nos situamos no trajeto do personagem que o levará da cidade grande à sua aldeia. Utilizando o tempo circular, a narrativa sempre volta para o percurso de Mamani, que visualiza momentos de sua vida pregressa. Em um mesmo plano seqüência vemos os tempos se mesclarem. Eventos que acontecem no passado aparecem reunidos em um mesmo espaço com os do presente. Nos momentos finais, as cenas se mostram como o ponto de vista do personagem, que permanece sério e inerte diante do que acabou de ver encenado à sua frente. As lembranças pertencem ao presente porque elas possuem o brutal peso da culpa e estão anexadas ao seu corpo como a máscara que carrega em suas costas. Cada trecho de seu trajeto o transforma na condição de espectador de sua própria história. Tendo a distancia característica do papel de espectador, ele enxerga com maior clareza e senso crítico o significado e a conseqüência de seus atos.

Entre esse cruzamento articulado por presente e futuro, vemos flashbacks, no sentido convencional do termo, que nos narram momentos essenciais para entendermos a saga de Mamani e a lógica do sistema andino. O que está claro e transparente para um espectador andino – para o qual o filme foi feito – é nebuloso para um espectador ocidental. Este, aos poucos, vai decifrando os códigos apresentados como se estivesse tirando uma carta em um jogo de baralho. Cada nova carta é uma revelação que só fará sentido ao ser justaposta a uma outra carta tirada anteriormente. Assim, para nós, as informações referentes à cosmovisão do povo andino são tão fragmentadas quanto os tempos narrativos da obra.

Talvez seja essa a principal sensação evocada durante a exibição de La nácion clandestina. A sensação de descoberta, de estar diante de um cinema jamais feito por nenhum realizador, de um cinema que possa sim ser descrito com letras garrafais de não-ocidental. Mesclado ao sabor de algo novo e insólito surge um leve desnorteamento que é amplificado na seqüência final. A incrível dança da morte praticada por Mamani é interrompida pelos homens da comunidade. Sem poder falar, por estar portando a máscara especifica do ritual, o personagem espera inerte e aflito a resposta sobre se poderá prosseguir a dança e morrer redimido, ou se será "morto como um cachorro". A dança e a música então prosseguem até o derradeiro tombo. Durante o plano sequência de seu enterro a câmera se desloca lentamente para a esquerda, até que pára nele novamente, portando uma capa preta, agora na condição de espectador. O renascimento simbólico de uma pessoa – e de um cinema – que estava na intensa procura de sentido e de identidade própria finalmente ocorreu.


Estevão Garcia