Como em toda cinematografia que se preze, na de Hong
Kong existe o dreamteam (Wong Kar-wai, Tsui Hark,
Fruit Chan, King Hu, Chang Cheh) e existem os reservas,
sendo que dentre estes últimos há também
de se separar o joio do trigo. Jingle Ma ocupa justamente
essa posição de reserva, o que devemos
enxergar menos como depreciação de sua
obra do que como reconhecimento de que, em meio a gigantes,
mesmo os que são mais que artesãos competentes,
e desenvolvem um estilo, têm seu brilho ofuscado.
Em Tokyo Raiders e Silver Hawk, filmes
lançados diretamente em DVD no Brasil, Jingle
Ma confirma um apreço pelos heróis hi-tech,
estejam eles à margem da autoridade oficial (estereotípico
desdobramento social da face oculta do herói
de quadrinho) ou a ela integrados. O agente federal
secreto interpretado por Tony Leung em Tokyo Raiders
representa o segundo caso, cabendo à Silver Hawk
de Michelle Yeoh, internacionalmente conhecida por sua
habilidade de atriz-lutadora – e que também produziu
o filme –, a dupla-personalidade de Lulu (metade do
tempo modelo e a outra metade justiceira). São
dois exemplos clássicos de ficção
conservadora, em que a fórmula situação-ação-situação
está diretamente ligada à ameaça
de uma ordem que ao final é mantida.
Silver Hawk é uma super-heroína que, como
digna representante da classe, não necessita
da ajuda dos objetos que não são os seus.
Auto-suficiente, ela dispõe de todo um arsenal
pessoal, à diferença do espião
à James Bond de Tony Leung em Tokyo Raiders,
que, em cada luta, a primeira coisa que faz é
olhar à volta para achar o que pode usar em seu
favor (o que vai de canetas e lápis até
patinetes motorizados). Silver Hawk possui a
mesma estrutura de um filme de super-herói como
Homem Aranha: par romântico com histórico
situado na inocência da infância, relação
ambígua do herói com a imprensa e a polícia
(ora a favor, outrora contra), moral e conduta (de heróis
e de vilões) transparentes, um professor cientista
cuja invenção genial e revolucionária
é apropriada pela força maligna etc. Tokyo
Raiders, por sua vez, tem uma estrutura menos empedrada,
mais fluida. Embora igualmente ancorado num imaginário
típico das histórias em quadrinho, elege
tramas e situações menos convencionais
que Silver Hawk, estando mais para um filme com
Jackie Chan como Mr. Nice Guy (de Sammo Hung,
1997) do que para as adaptações cinematográficas
dos quadrinhos da Marvel. Em comum, os filmes apresentam
a característica de Jingle Ma de concentrar a
mise en scène em torno dos atores principais
com que trabalha. Tudo se articula e se explica em torno
da presença centralizadora dos protagonistas.
Michelle Yeoh, do elenco de O Tigre e o Dragão
e que já foi bondgirl em 007- O Amanhã
Nunca Morre, está no centro do enquadramento
e da composição como um todo de Silver
Hawk (é impressionante como a fotografia
e os cenários se pautam quase que unicamente
no seu visual clean), enquanto em Tokyo Raiders
a narrativa se divide entre os personagens de Tony Leung,
Ekin Cheng (também cantor pop) e Kelly Chen.
Com relação à aproximação
entre personagens e câmera no filme de kung fu,
vale lembrar que foi a partir da mestria de atores como
Bruce Lee e Jackie Chan que surgiu uma tendência
"naturalista" de filmar a ação.
A destreza desses lutadores permite que a cena de ação
seja não mais que documentada; a decupagem se
torna um esforço tão-somente voltado para
a melhor maneira de mostrar uma composição
de movimentos por si só dotada de acabamento
e simetria. Os grandes cineastas, entretanto, buscarão
nessa possibilidade "naturalista" justamente
a chave para a sua ultrapassagem: Tsui Hark, por exemplo,
tem a opção de trabalhar com os melhores
atores de artes marciais, e compõe um quadro
de ação que tanto valoriza os movimentos
de seus intérpretes quanto supera as noções
de lógica e fisicalidade e instaura um espaço-tempo
autônomo, de pura fabulação imagética
– uma complexa e excitante coreografia. Jingle Ma não
se enquadra nem de um lado nem de outro; segue uma linha
mais "artificialista" do cinema de kung fu,
sem dúvida alguma, mas também não
pode ser visto como um "artesão do ilimitado".
Seu modo de filmar fragmenta os golpes em planos de
movimento nem sempre contínuo (eis mais um forte
adepto dos jump cuts), sugerindo a ação
numa abstração de montagem. No repertório
de Jingle Ma impera um princípio anti-baziniano
de trabalho de imagem: não são poupadas
constantes câmeras lentas ou acelerações.
Mas narrativamente seus filmes são mais (Silver
Hawk) ou menos (Tokyo Raiders) lineares e
amarrados, o que contribui para a revelação
de uma proposta inequívoca de cinema comercial:
a de ser agradável, acima de tudo. E a verdade
é que seus filmes conseguem simpatia imediata
em alguns momentos, definindo seu tom primordial na
cena de abertura de Silver Hawk, em que a heroína
persegue um caminhão, enfrenta vilões
caricatos, gasta sua energia para, no desfecho da seqüência,
abrir uma caixa do carregamento clandestino que interceptou
e encontrar um urso panda, tão afável
quanto potencialmente agressivo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Tokyo Raiders: DVD/VHS Columbia TriStar
Silver Hawk: DVD Flashstar)
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