A
cisão do Grupo Ukamau nos demonstra, com bastante
clareza, as possibilidades de um cinema dito "político".
Obriga-nos a pensar e definir o que é um "cinema
político". Tal como "cinema de autor",
o termo "cinema político" é
alvo de indefinições e debates, sendo,
antes de mais nada, um rótulo para algo que não
é ("não é cinema comercial,
não é cinema de entretenimento...").
Os integrantes que permaneceram na Bolívia foram
forçados, pela conjuntura política, a
mudar o rumo da proposta cinematográfica do grupo.
Mas, segundo eles próprios, ainda se trata de
um uso político do cinema. Por sua vez, Jorge
Sanjinés parte para o exílio e continua
a desenvolver a proposta original de um cinema popular,
andino.
Desde Ukamau (Así es), Sanjinés
se dirige para um público muito bem definido:
o povo, que em seu país é constituído
majoritariamente pela população indígena.
Um cinema de esclarecimento dirigido para o povo, para
que este compreenda as causas de sua miséria.
Tal é a proposta original do Grupo Ukamau. Contudo,
esse viés, que à primeira vista pode parecer
um tanto paternalista, é matizado pela construção
da narrativa que culmina em Jatun Auk’a (El enemigo
principal). Após um processo de autocrítica,
Sanjinés repensa o que seria, afinal, um cinema
popular, em seu caso, um "cinema andino".
Da mesma forma que El coraje del pueblo, Jatun
Auk’a (El enemigo principal) possui como ponto fulcral
de sua narrativa a reconstituição de um
fato verídico: a passagem da guerrilha peruana
na comunidade de Tinkuy. Porém, o filme lança
um aspecto; não se trata apenas de filmar um
fato em si, mas como utilizá-lo para um fim revolucionário,
i. e., o principal não é o que
se narra, mas como se narra, para que tal narrativa
possa alcançar seu objetivo junto ao seu público.
Assim, Sanjinés aflora dois aspectos da problemática
presente em toda e qualquer narrativa: como uma história
se desenvolve e para quem ela é destinada.
Para voltarmos ao problema da indefinição
do termo "cinema político", podemos
garantir, pelo menos, uma certeza: ao se utilizar o
marxismo como orientação política,
se é forçado a trabalhar com o conceito
de "luta de classes". Ou seja, um "cinema
político", que se propõe marxista,
deve buscar identificar o que é a "luta
de classes". Mas como se filma a "luta de
classes"?! Trata-se de um conceito sociológico,
político, histórico e não de um
dado empírico sobre o qual a câmera pode
registrar fotoquimicamente com o seu aparato técnico.
O cineasta pode filmar uma passeata, um piquete, um
comício, um motim, tropas de choque nas ruas,
mas não a "luta de classes".
Muitos textos foram escritos, sobretudo pelos teóricos
soviéticos dos anos vinte, em esclarecer tal
questão. Em termos narrativos, é possível
caracterizar os personagens do filme e dispô-los
em pólos antagônicos por intermédio
de mecanismos de enquadramento e montagem - o que no
cinema mudo era imbuído por toda uma riqueza
visual simbólica. Assim, é lícito
afirmar que um "cinema político" pode
muito bem dispor de elementos do melodrama, para melhor
construir personagens antagônicos (e aqui, voltamos
à indefinição do termo "cinema
político", pois o melodrama é tradicionalmente
um gênero dramático-narrativo de entretenimento).
Talvez para os mais puristas, o nosso raciocínio
pode soar à blasfêmia. Porém, cabe
ressaltar os dois aspectos aflorados por Sanjinés.
Portanto, podemos concluir que a narrativa de um filme
‘marxista’ se baseia, fundamentalmente, no resumo da
sociedade em um conflito. Ora, mas, todo filme, toda
narrativa não se resume à um conflito?
(o que Aristóteles descreveu, há mais
de dois mil e trezentos anos atrás - muito antes
dos ‘Syd Field da vida’!) Assim, chegamos ao problema
da "luta de classes". É necessário
definir os personagens e a partir deles, qual aspecto
do conflito entre eles interessa ao narrador da história.
Uma das características do chamado "Cinema
Moderno" é a falta de clareza entre os gêneros
narrativos. No caso de Jatun Auk’a (El enemigo principal),
é lícito afirmar em um jogo, uma mistura,
entre ‘ficção’ e ‘documentário’,
uma vez que Sanjinés utiliza elementos da realidade,
o mesmo lugar, os próprios protagonistas do fato,
para reconstitui-lo. Portanto, a definição
clássica de direção de atores não
se aplica em tal filme, porém, há algo
mais importante: seus filmes não são destinados
ao público tradicional de cinema e, desse modo,
nos encontramos com uma mise-en-scène,
por definição, ‘não clássica’.
No filme em questão, Sanjinés lança
mão do velho narrador, figura tradicional da
cultura quechua, que não apenas apresenta
os personagens, mas interrompe o desenrolar da história,
dividindo-a como que em blocos. Através de suas
aparições, a história é
narrada, primeiro, de modo oral, e depois, em imagens.
Assim, o espectador assiste as imagens despreocupado
com o desfecho da história, chamando a atenção
para a sua própria construção,
i. e., o que importa não é o fim visado
pela ação do personagem, mas a sua ação
mesma. A finalidade é dada pelo velho narrador,
que se encontra em um nível distinto dos personagens,
resumindo-os em uma lição moral, que impulsiona,
em última instância, toda a narrativa.
Em suma, Jatun Auk’a (El enemigo principal) é
uma fábula.
Aliás, "fábula" é o termo
utilizado por Aristóteles, segundo o qual o ‘poeta’
descreve (imita) as características (atributos)
dos personagens por meio de uma ação,
que para ser bela, deve ser una e inteira, cujas partes
seguem uma lógica (princípio, meio e fim).
Em Sanjinés, há um deslocamento da finalidade
da ação dos personagens para o velho narrador.
O que se ganha com isso? Pode ser repetitivo, cansativo,
para o espectador ocidental, que, como o filósofo
grego, está habituado a acompanhar uma narrativa
para conhecer o seu fim (em ambos os sentidos). Aliás,
é interessante pensar que tal ação
(fato verídico) é encenada duas vezes,
primeiro, pela narração oral, e depois,
pela audiovisual. O velho narrador adquire uma autoridade
sobre a narrativa, e não é gratuito o
filme começar com ele nas ruínas da civilização
Inca. O passado ensina que tal raça é
capaz de realizar grandes feitos, que o povo indígena
nem sempre foi miserável, e que, assim como seus
antepassados eram magnânimos, o público,
para quem o filme é destinado, pode continuar
a realizar grandes feitos, como expulsar o ‘inimigo
principal’.
Portanto, o deslocamento de finalidade modifica a relação
do público com os personagens, pois eles são
definidos a priori pelo velho narrador e não
por suas ações. Melhor dito, as ações
(visuais) dos personagens são uma reiteração
da narrativa oral. E, por esse mecanismo, o conflito
dos personagens é alçado para um outro
nível, que aos olhos ocidentais seria definido
de redundância. Mas, é através desse
nível que Sanjinés trabalha o conceito
de "luta de classes".
A história adquire um tom pedagógico ao
concatenar as suas partes. Quando o camponês Julián
vai reclamar o roubo de seu touro ao gamonal Carrilles,
nós já conhecemos o fim trágico
do personagem. Ou seja, a função (finalidade)
da ação que vemos não é
definir os personagens. Já sabemos que Carrilles
é um ladrão e um assassino. O conflito
do personagem (resolver o problema do roubo) nos coloca
a par da injustiça sofrida por essa comunidade.
Ilustra mais a situação dos personagens
do que defini-la. E portanto, quando os guerrilheiros
explicam à comunidade, posteriormente, que existem
povos que roubam outros povos, o espectador possui como
referência narrativa o personagem de Carrilles,
como uma pessoa exploradora e inescrupulosa. Desse modo,
esse nível abstrato da narrativa (o conceito
de "imperialismo") é enunciado por
um mecanismo de analogia. Claro que tal procedimento
pode ser alvo de críticas, mas um filme, que
se propõe ‘marxista’, deve buscar mecanismos
de fabulação, de narratividade, para pôr
em imagens a "luta de classes". Jatun Auk’a
(El enemigo principal) seria um filme simplista
caso permanecesse somente no nível dos personagens.
A história em imagens possui não apenas
a função de nos emocionar (e aqui cabe
sublinhar o uso da música nas seqüências
de multidão enfurecida), mas, também de
nos interpelar. O conflito, realizado pelos personagens
na "fábula", é tomado pelo velho
narrador que nos dá a sua lição
moral, e, desse modo, nos força a nos ver a nós
mesmos como "personagens" dentro de uma narrativa
maior: o nosso cotidiano, ou, em termos mais ‘marxistas’,
o processo histórico. Ou seja, fazer com que
o espectador se veja dentro de um conflito que é
apresentado pelos personagens do filme: a "luta
de classes".
Sanjinés afirma que o "cinema político"
não deve abandonar o seu compromisso com a beleza1.
Como arte e como atividade revolucionária, a
sua obra possui um papel de esclarecimento, dar ao espectador
uma informação (os motivos e os causadores
da miséria do povo) mas também sem esquecer
o seu papel de atividade estética, ou seja, emocionar.
O sofisticado processo narrativo de Jatun Auk’a (El
enemigo principal), fruto de um questionamento dos
filmes anteriores do Grupo Ukamau, põe na mesa,
não somente o que devemos entender por "cinema
político", mas a própria definição
de cinema: um discurso audiovisual, os meios de sua
construção e para quem esse discurso é
destinado. O essencial, às vezes, é o
mais difícil de se compreender, pois, por incrível
que pareça, alguns cineastas esquecem o que é
o cinema.
Fabian Nuñez
1.
Jorge Sanjinés e Grupo Ukamau. Teoria y práctica
de un cine junto al pueblo. México:
Siglo XXI, 2 ed, 1980.
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