O INIMIGO PRINCIPAL
Jorge Sanjinés, Jatun auk'a/El Enemigo Principal, Peru, 1973

A cisão do Grupo Ukamau nos demonstra, com bastante clareza, as possibilidades de um cinema dito "político". Obriga-nos a pensar e definir o que é um "cinema político". Tal como "cinema de autor", o termo "cinema político" é alvo de indefinições e debates, sendo, antes de mais nada, um rótulo para algo que não é ("não é cinema comercial, não é cinema de entretenimento..."). Os integrantes que permaneceram na Bolívia foram forçados, pela conjuntura política, a mudar o rumo da proposta cinematográfica do grupo. Mas, segundo eles próprios, ainda se trata de um uso político do cinema. Por sua vez, Jorge Sanjinés parte para o exílio e continua a desenvolver a proposta original de um cinema popular, andino.

Desde Ukamau (Así es), Sanjinés se dirige para um público muito bem definido: o povo, que em seu país é constituído majoritariamente pela população indígena. Um cinema de esclarecimento dirigido para o povo, para que este compreenda as causas de sua miséria. Tal é a proposta original do Grupo Ukamau. Contudo, esse viés, que à primeira vista pode parecer um tanto paternalista, é matizado pela construção da narrativa que culmina em Jatun Auk’a (El enemigo principal). Após um processo de autocrítica, Sanjinés repensa o que seria, afinal, um cinema popular, em seu caso, um "cinema andino". Da mesma forma que El coraje del pueblo, Jatun Auk’a (El enemigo principal) possui como ponto fulcral de sua narrativa a reconstituição de um fato verídico: a passagem da guerrilha peruana na comunidade de Tinkuy. Porém, o filme lança um aspecto; não se trata apenas de filmar um fato em si, mas como utilizá-lo para um fim revolucionário, i. e., o principal não é o que se narra, mas como se narra, para que tal narrativa possa alcançar seu objetivo junto ao seu público. Assim, Sanjinés aflora dois aspectos da problemática presente em toda e qualquer narrativa: como uma história se desenvolve e para quem ela é destinada.

Para voltarmos ao problema da indefinição do termo "cinema político", podemos garantir, pelo menos, uma certeza: ao se utilizar o marxismo como orientação política, se é forçado a trabalhar com o conceito de "luta de classes". Ou seja, um "cinema político", que se propõe marxista, deve buscar identificar o que é a "luta de classes". Mas como se filma a "luta de classes"?! Trata-se de um conceito sociológico, político, histórico e não de um dado empírico sobre o qual a câmera pode registrar fotoquimicamente com o seu aparato técnico. O cineasta pode filmar uma passeata, um piquete, um comício, um motim, tropas de choque nas ruas, mas não a "luta de classes". Muitos textos foram escritos, sobretudo pelos teóricos soviéticos dos anos vinte, em esclarecer tal questão. Em termos narrativos, é possível caracterizar os personagens do filme e dispô-los em pólos antagônicos por intermédio de mecanismos de enquadramento e montagem - o que no cinema mudo era imbuído por toda uma riqueza visual simbólica. Assim, é lícito afirmar que um "cinema político" pode muito bem dispor de elementos do melodrama, para melhor construir personagens antagônicos (e aqui, voltamos à indefinição do termo "cinema político", pois o melodrama é tradicionalmente um gênero dramático-narrativo de entretenimento). Talvez para os mais puristas, o nosso raciocínio pode soar à blasfêmia. Porém, cabe ressaltar os dois aspectos aflorados por Sanjinés. Portanto, podemos concluir que a narrativa de um filme ‘marxista’ se baseia, fundamentalmente, no resumo da sociedade em um conflito. Ora, mas, todo filme, toda narrativa não se resume à um conflito? (o que Aristóteles descreveu, há mais de dois mil e trezentos anos atrás - muito antes dos ‘Syd Field da vida’!) Assim, chegamos ao problema da "luta de classes". É necessário definir os personagens e a partir deles, qual aspecto do conflito entre eles interessa ao narrador da história.

Uma das características do chamado "Cinema Moderno" é a falta de clareza entre os gêneros narrativos. No caso de Jatun Auk’a (El enemigo principal), é lícito afirmar em um jogo, uma mistura, entre ‘ficção’ e ‘documentário’, uma vez que Sanjinés utiliza elementos da realidade, o mesmo lugar, os próprios protagonistas do fato, para reconstitui-lo. Portanto, a definição clássica de direção de atores não se aplica em tal filme, porém, há algo mais importante: seus filmes não são destinados ao público tradicional de cinema e, desse modo, nos encontramos com uma mise-en-scène, por definição, ‘não clássica’. No filme em questão, Sanjinés lança mão do velho narrador, figura tradicional da cultura quechua, que não apenas apresenta os personagens, mas interrompe o desenrolar da história, dividindo-a como que em blocos. Através de suas aparições, a história é narrada, primeiro, de modo oral, e depois, em imagens. Assim, o espectador assiste as imagens despreocupado com o desfecho da história, chamando a atenção para a sua própria construção, i. e., o que importa não é o fim visado pela ação do personagem, mas a sua ação mesma. A finalidade é dada pelo velho narrador, que se encontra em um nível distinto dos personagens, resumindo-os em uma lição moral, que impulsiona, em última instância, toda a narrativa. Em suma, Jatun Auk’a (El enemigo principal) é uma fábula.

Aliás, "fábula" é o termo utilizado por Aristóteles, segundo o qual o ‘poeta’ descreve (imita) as características (atributos) dos personagens por meio de uma ação, que para ser bela, deve ser una e inteira, cujas partes seguem uma lógica (princípio, meio e fim). Em Sanjinés, há um deslocamento da finalidade da ação dos personagens para o velho narrador. O que se ganha com isso? Pode ser repetitivo, cansativo, para o espectador ocidental, que, como o filósofo grego, está habituado a acompanhar uma narrativa para conhecer o seu fim (em ambos os sentidos). Aliás, é interessante pensar que tal ação (fato verídico) é encenada duas vezes, primeiro, pela narração oral, e depois, pela audiovisual. O velho narrador adquire uma autoridade sobre a narrativa, e não é gratuito o filme começar com ele nas ruínas da civilização Inca. O passado ensina que tal raça é capaz de realizar grandes feitos, que o povo indígena nem sempre foi miserável, e que, assim como seus antepassados eram magnânimos, o público, para quem o filme é destinado, pode continuar a realizar grandes feitos, como expulsar o ‘inimigo principal’.

Portanto, o deslocamento de finalidade modifica a relação do público com os personagens, pois eles são definidos a priori pelo velho narrador e não por suas ações. Melhor dito, as ações (visuais) dos personagens são uma reiteração da narrativa oral. E, por esse mecanismo, o conflito dos personagens é alçado para um outro nível, que aos olhos ocidentais seria definido de redundância. Mas, é através desse nível que Sanjinés trabalha o conceito de "luta de classes".

A história adquire um tom pedagógico ao concatenar as suas partes. Quando o camponês Julián vai reclamar o roubo de seu touro ao gamonal Carrilles, nós já conhecemos o fim trágico do personagem. Ou seja, a função (finalidade) da ação que vemos não é definir os personagens. Já sabemos que Carrilles é um ladrão e um assassino. O conflito do personagem (resolver o problema do roubo) nos coloca a par da injustiça sofrida por essa comunidade. Ilustra mais a situação dos personagens do que defini-la. E portanto, quando os guerrilheiros explicam à comunidade, posteriormente, que existem povos que roubam outros povos, o espectador possui como referência narrativa o personagem de Carrilles, como uma pessoa exploradora e inescrupulosa. Desse modo, esse nível abstrato da narrativa (o conceito de "imperialismo") é enunciado por um mecanismo de analogia. Claro que tal procedimento pode ser alvo de críticas, mas um filme, que se propõe ‘marxista’, deve buscar mecanismos de fabulação, de narratividade, para pôr em imagens a "luta de classes". Jatun Auk’a (El enemigo principal) seria um filme simplista caso permanecesse somente no nível dos personagens. A história em imagens possui não apenas a função de nos emocionar (e aqui cabe sublinhar o uso da música nas seqüências de multidão enfurecida), mas, também de nos interpelar. O conflito, realizado pelos personagens na "fábula", é tomado pelo velho narrador que nos dá a sua lição moral, e, desse modo, nos força a nos ver a nós mesmos como "personagens" dentro de uma narrativa maior: o nosso cotidiano, ou, em termos mais ‘marxistas’, o processo histórico. Ou seja, fazer com que o espectador se veja dentro de um conflito que é apresentado pelos personagens do filme: a "luta de classes".

Sanjinés afirma que o "cinema político" não deve abandonar o seu compromisso com a beleza1. Como arte e como atividade revolucionária, a sua obra possui um papel de esclarecimento, dar ao espectador uma informação (os motivos e os causadores da miséria do povo) mas também sem esquecer o seu papel de atividade estética, ou seja, emocionar. O sofisticado processo narrativo de Jatun Auk’a (El enemigo principal), fruto de um questionamento dos filmes anteriores do Grupo Ukamau, põe na mesa, não somente o que devemos entender por "cinema político", mas a própria definição de cinema: um discurso audiovisual, os meios de sua construção e para quem esse discurso é destinado. O essencial, às vezes, é o mais difícil de se compreender, pois, por incrível que pareça, alguns cineastas esquecem o que é o cinema.


Fabian Nuñez

1. Jorge Sanjinés e Grupo Ukamau. Teoria y práctica de un cine junto al pueblo. México: Siglo XXI, 2 ed, 1980.