ENTREVISTA COM JORGE SANJINÉS

Parece lugar comum ressaltar a grande importância da obra de Jorge Sanjinés no contexto do cinema latino americano da década de 60 quando ao lado de outros cineastas – teóricos como Glauber Rocha, Fernando Birri, Julio García Espinosa e Tomás Gutierrez Alea –, formulou novas linhas estéticas e conceituais para um cinema potencialmente transformador em nosso continente. No entanto, tanto a obra fílmica quanto teórica desse grande realizador permanece desconhecida e pouco discutida no Brasil. Procurando jogar um clarão nesse caminho pouco transitado que aproveitamos a visita do autor no Rio de Janeiro devido a uma breve retrospectiva de sua obra na mostra De olhos bem abertos para fazermos essa entrevista em que discute todos os momentos de sua trajetória. (E.G)

Cc: Fale um pouco do começo da sua carreira cinematográfica, de seus primeiros curtas-metragens e de seu trabalho no ICB, Instituto Cinematográfico Boliviano, junto com Jorge Ruiz.

Jorge Sanjinés: .Bem junto, não; foi depois. Antes de fazer filmes de longa-metragem de ficção, fizemos vários curtas-metragens como Revolución, depois Aysa!, El mariscal de Zepita, La Guitarrita, vários juntos. Foram trabalhos de preparação para fazer depois um longa de ficção, ainda que entre esses curtas, também, estava um filme experimental de ficção, de uns vinte minutos. Creio que nos habilitou para manejar melhor os instrumentos, pois sempre tínhamos a esperança de poder fazer um longa metragem de ficção.

Cc: Conte sobre seus trabalhos nos noticiários do ICB. (Instituto Cinematográfico Boliviano)

J. S.: Ah! Os noticiários... Sim, quando decidimos dirigir o Instituto Cinematográfico, fizemos uma transformação desse organismo. Esse organismo era um organismo de propaganda política do governo. E a nossa condição para aceitar a direção desse organismo foi que nos permitisse fazer um cinema criativo, independente, e não apenas um trabalho de propaganda política. Então, se chegou a um acordo para produzir um cinema independente, de ficção, um cinema artístico e um noticiário que, além das notícias, dava conta da vida cultural e, também, política do país.

Cc: Foi nessa época que você conheceu os integrantes do Grupo Ukamau? Como foi a idéia da formação do Grupo?

J. S.: [Antonio] Eguino era meu condiscípulo do colégio, de há muitos anos, no curso secundário; éramos muito amigos. Também, com Ricardo Rada fomos companheiros de Universidade, quando estudávamos Filosofia e Letras na Universidad de San Andrés. Depois, fui estudar cinema no exterior e quando regressei... o cinema é uma coisa que não se pode fazer sozinho. Procurei um grupo de amigos, de gente conhecida para entusiasmá-los com o trabalho de cinema. Então, Eguino, que havia morado dez anos nos Estados Unidos e, por conta própria, sem que eu soubesse nada, havia estudado cinema...

Cc: Em Hollywood?

J. S.: Não, em Nova Iorque. E depois entramos em contato com o único e mais importante escritor de cinema que havia na Bolívia, o roteirista Oscar Soria, que havia trabalhado com Ruíz. Encontramos muita simpatia e muitas coincidências no plano ideológico, porque Oscar Soria era um intelectual que vinha do processo da revolução do ano de 52. Tinha em seus contos um olhar voltado para a temática da mudança social, operária, mineira.

Cc: Vocês tinham a mesma idade?

J. S.: Não, o Soria era mais velho, ele era uns quinze anos mais velho.

Cc: Então, vocês formaram o Grupo antes de realizar o filme Ukamau.

J. S.: Sim, antes de fazer o filme Ukamau, o Grupo tinha um outro nome; se chamava Kollasuyu. Esse é o nome indígena de uma parte do Império Inca, que se dividia em quatro suyu, que eram regiões. O Kollasuyu era o que correspondia à região da Bolívia. Estava vinculada ao conhecimento do herbolário, da medicina. Era a região do império em que mais se conhecia a medicina; a parte do Kollasuyu, que hoje é a Bolívia. Com este grupo realizamos um primeiro filme comprometido, ‘engajado’ como vocês o chamam, que se chama Revolución, ano 62. E esse filme, creio, abriu as portas para o nosso trabalho porque foi muito bem prestigiado no país...

Cc: E no exterior, também.

J. S.: No exterior, também, foi bem exibido e creio que em consideração e em respeito pelo nosso trabalho. Isso permitiu também que chegássemos ao êxito cinematográfico. Houve uma mudança de governo, então, o Ministro de Comunicação, que gostava muito de cinema e conhecia o nosso trabalho, disse "Vamos dar uma oportunidade a esses jovens para que façam cinema".

Cc: Quais eram as suas principais referências cinematográficas? Eisenstein, Pudóvkin?

J. S.: Sim. O uso dos textos teóricos de Kulechov, Pudóvkin.

Cc: Mas você já tinha visto O Encouraçado Potemkin? Os filmes de Eisenstein?

J. S.: Não, não... Nesse momento, era puro conhecimento teórico... Depois, anos depois de fazer, inclusive, o Ukamau, é que eu pude ver em Paris O Encouraçado.

Cc: Você tinha contato com outros cineastas latino-americanos? Você estudou no Chile, então...

J. S.: No Chile, somente com os cineastas da velha Escola do Chile, como Patricio Kaulen, por exemplo... as pessoas, os professores que tinham vindo da Argentina para ensinar na escola de cinema.

Cc: E Fernando Birri, você conheceu nessa época?

J. S.: Birri, não, ainda não... Conheci Birri, muito tempo depois, quando fizemos o trabalho de montagem de El Coraje del Pueblo, na Itália, porque ele lá na Itália. Estávamos montando El Coraje del Pueblo, e depois o levamos ao Festival de Pesaro... E aí, conhecemos Birri., que já conhecia o nosso trabalho. Já tinha visto o Ukamau, Sangre de Cóndor... mas a primeira vez que nos encontramos foi na Itália...

Cc: Você participou dos históricos festivais de Viña , de Mérida....

J. S.: sim.

Cc: Em Viña, foi com o Revolución?

J. S: Sim. Eu não pude ir à Viña; mas passou o filme Revolución... Mas o festival mais importante para mim foi o de Mérida., pois em Mérida se apresentou, por exemplo, a obra de Santiago Álvarez. Conhecemos, também, La Hora de los Hornos, de Solanas; estava um documentário do Gleyzer... estava.....

Cc: E brasileiros?

J. S.: Brasileiro?...Creio que estava... Não, não estava nenhum cineasta brasileiro. Estava aí Cosme Alves Neto... Creio que Terra em Transe, não... Deus e o Diabo na Terra do Sol foi exibido.

Cc: Em 67?

J. S.: 67, não... 68, em outubro de 68. Em 67, foi em Viña. Creio que o festival de Mérida foi extraordinário, porque entramos em contato, cineastas latino-americanos que não nos conhecíamos, que, por sua vez, não conheciam nosso trabalho, mas todos entrelaçados por um mesmo projeto, uma mesma idéia, voltado para um cinema que acompanha o processo de libertação que se estava instalando na América Latina... E tinha ocorrido a experiência do Che na Bolívia. Creio que essa experiência foi fundamental para todo o cinema latino-americano. Penso que o Che fez... creio..... muito mais morto do que vivo. A morte do Che impactou muito a intelectualidade pequeno-burguesa da América Latina, que se questionou sobre o seu papel. O que estava fazendo você como intelectual nesses países, onde havia morrido esse homem, na Bolívia, por suas idéias? Assim, Sangre de Cóndor é um filme que se compromete muito mais que o Ukamau, porque foi um chamado poderoso para a consciência, para a responsabilidade social ... os artistas e a experiência do Che.

Cc: Como foi o seu contato com outros diretores latino-americanos nesse período dos anos 60? Glauber Rocha, Birri, Solanas... influenciaram o seu trabalho?

J. S.: Sim, eu creio que sim. Essa história das influências, muitas vezes, é inconsciente mais do que consciente, não? Dizem que tudo que impressiona a um artista ou lhe agrada, o influencia. Me impressionou muito, por exemplo, o trabalho dos cubanos Tomás Gutiérrez Alea, Solás, que vi nesses anos e, também, Terra em Transe, que me pareceu um filme extraordinário e de que gosto mais do que os outros filmes que Glauber fez. É interessante sentir que estava se formando um movimento poderosíssimo de cinema latino-americano, nesses anos, e que era, naquele momento, o melhor cinema do mundo! Muito enriquecedor... Além disso, havia um sentimento de fraternidade, que nos convencia da veracidade, da oportunidade de pôr em prática esse velho sonho de Bolívar, de fazer uma Grande Pátria, porque éramos irmãos - nós, os latino-americanos... os brasileiros se dividiam se compartilhávamos ou não o mesmo destino histórico. Isso era sempre uma festa, nos encontrarmos nos festivais, partilhar nossas experiências, nossos projetos, nos organizarmos como cineastas sem considerar barreiras políticas, unidos em torno de um mesmo projeto histórico de libertação, de independência dos países de um inimigo comum que era o Império, não?

Cc: Também nesse mesmo período, final dos anos 60, se fazem os trabalhos teóricos, os manifestos: "Por un Cine Imperfecto", de García Espinosa e "Hacia un Tercer Cine" de Solanas e Getino. Creio que são dois textos fundamentais porque Espinosa fala das escolas de cinema, pensando num país que fora libertado, Cuba, a socialização dos meios de produção audiovisual, enquanto que Solanas está pensando, com o conceito de "Tercer Cine", um cinema para a libertação. São dois textos, um para um país que já foi libertado e o outro, para a libertação. E você começa a publicar, também, seus artigos em "Cine Cubano"...

J. S.: ...e o nosso livro [Teoría y Práctica de un Cine junto al Pueblo], também. Sim, sim, creio que foi um processo de grande teorização para responder à inquietude que o nosso cinema despertou na Europa, nos críticos... para responder a perguntas que sugerem: "Por que esse tipo de cinema?"... Começamos a escrever, também, para nos indagar, a nós mesmos, por que estávamos fazendo esse tipo de cinema, para explicarmos a nós mesmos porque fazíamos esse cinema. Havia uma inquietude em saber que cinema tínhamos que fazer, como era o cinema que se tinha que fazer. Chegara o momento de colocar as idéias mais claras sobre o papel do cinema na sociedade, o papel do artista na sociedade. A necessidade mais adiante, também, de buscar uma linguagem mais própria, que seria o nosso caso, depois de Sangre de Cóndor. Ontem, na conversa [refere-se ao debate ocorrido no CCBB], esse filme que foi feito para os camponeses não conseguia se comunicar com eles, teve muito êxito com os críticos, nos festivais, nas cidades, mas fracassava em sua comunicação com o camponês. E compreendemos que, a partir de várias experiências, como a que ocorreu com a realização desse filme que esteve a ponto de fracassar. Quando chegamos na comunidade de Kaata, a uns 400 km da cidade de La Paz, pensamos que se tivéssemos a amizade do chefe, estaria tudo resolvido, porque olhávamos o chefe da comunidade como o poder político da cidade. Se o chefe é nosso amigo, está tudo resolvido. E percebemos que a coisa não era bem assim. Não entendíamos, no começo, porque ele não podia resolver o problema do trabalho. As pessoas não apareciam, não se interessavam em trabalhar no filme, embora oferecêssemos um bom salário, e tudo isso... E na última noite em que estávamos a ponto de ir embora, com muita vergonha, muita preocupação em dizer que tipo de estrangeiros... somos um corpo estrangeiro porque não conseguimos nos relacionar com a gente do povo. Não entendíamos o que estava acontecendo, não havíamos compreendido a visão coletivista das comunidades andinas. Não compreendemos que o poder político não era, não residia em uma pessoa, não era um poder piramidal, não era um poder que correspondia à relação pequeno-burguesa, mas era um poder que vinha da base para cima. Isso foi fundamental, e quando percebemos esse grave erro, pudemos reparar a situação, demonstrando um grande respeito pela comunidade. Percebemos que tínhamos que pedir um reconhecimento não ao chefe da comunidade, mas à comunidade. É o que a sociedade dominante boliviana ainda não compreendeu, não resolveu... Seu relacionamento com o elemento indígena boliviano é muito traumático e sempre houve um desencontro porque não entende essa outra visão do poder, essa outra prática do poder. Então, se gerou toda uma busca de uma linguagem... Começamos a questionar porque fomos coincidir com essa experiência da filmagem. Estamos falando de um mundo que se concebe primeiro como grupo e depois como indivíduo e tentamos fazer um cinema que primeiro é indivíduo e, depois, é socius. Tivemos que inverter a ordem, fazer um cinema com uma visão do coletivo, com o uso de uma linguagem mais democrática, menos hierarquizado nos planos, buscando construir uma narrativa que fosse coerente com a cultura, uma coerência entre forma e conteúdo na obra.

Cc: Porque tanto em Ukamau como em Sangre de Cóndor há um personagem protagonista e, por exemplo, em Ukamau a vingança de Andrés é uma vingança solitária...

J. S.: Individualista.

Cc: ...individualista, ele não compartilha a sua dor com os companheiros. E em Sangre de Cóndor também há uma mudança pessoal no personagem principal.

J. S.: Correto, porque esses filmes estão construídos conforme os parâmetros do cinema europeu, individualista.

Cc: E essa mudança ocorreu com seu filme Los Caminos de la Muerte? Conte-nos o que aconteceu com esse filme, a história desse filme.

J. S.: Sim, esse é o primeiro filme que fizemos sob um novo conceito. Esse novo conceito, diferente, de construir uma nova linguagem. Foi um filme que demandou muito trabalho. Enfim, tentava revelar e denunciar, também, a ingerência do imperialismo na política interna boliviana. Talvez porque não tivemos suficiente cuidado, e falamos demais sobre a história, é possível que, por isso, tenha ocorrido uma sabotagem. Havia um acordo de co-produção com uma empresa alemã para fazermos esse filme. Eu penso que houve uma sabotagem porque, primeiro, Antonio Eguino era um excelente fotógrafo, todo mundo pode-se equivocar um pouco, mas não pode errar durante um filme inteiro. Não se salvou nenhum fotograma! Certamente, durante o processo [de revelação], lhe deram mais tempo e queimaram tudo; porque o que o filme denunciava era muito importante. Denunciava que a embaixada norte-americana queria exercer um controle sobre uma direção sindical dos mineiros, setor social mais beligerante, mais conscientizado, mais perigoso politicamente para a classe dominante boliviana e para a embaixada. Mas o governo de Paz Estensoro tinha um compromisso histórico com os mineiros. Ele havia chegado ao poder, também, graças à luta dos mineiros e, por isso, não podia seguir as instruções da embaixada, porque a embaixada pressionava o governo para que o Ministro do Exército prendesse os dirigentes, que eram dos dois partidos comunistas - um maoísta e outro... Então, visto que o governo não cedia à pressão, a embaixada utilizou uma informação proveniente de estudos dos próprios americanos; os americanos têm estudiosos da antropologia, da geografia de nosso país. Sabia mais da cultura indígena que os próprios bolivianos. Assim, na zona mineira, próximo aos acampamentos dos mineiros , estavam os grupos indígenas do norte de Potosí – os laime e os jucumani- que, tradicionalmente, têm problemas, que se resolvem a cada ano com uma festa ritual, onde se ritualiza a violência. As pessoas fazem uma briga ritual, e com isso elas resolvem os problemas que elas têm entre si, mas essa luta ritualizada sempre responde a uma vingança sob a Lei de Talião. Quando os jucumani sentem que os laime lhe roubavam uma ovelha, iam ao outro lado e roubavam uma ovelha. É sistematicamente igual... Então, conhecendo esse mecanismo, os americanos armaram um grupo do Exército com as roupas de camponeses de um clã, atacaram uma comunidade, incendiaram, roubaram e violaram mulheres. E isso detonou uma guerra porque os outros se sentiram obrigados a fazer o mesmo. Todos eram muito bem vinculados aos mineiros; o armamento que tinham e utilizaram nessa guerra camponesa provinha das minas. E aí estavam equipamento militar, fuzis... enquanto outros eram alimentados pelo Exército. Quando, num determinado momento, se tentou fazer um assalto final aos acampamentos mineiros, onde seriam todos presos, e fuzilariam os dirigentes, não puderam fazer, porque os mineiros estavam informados, se adiantaram e atacaram o acampamento do Exército. Os soldados, que estavam vestidos com roupas de camponeses... Vieram muito antes, tomaram o acampamento e fizeram um julgamento sumário com as pessoas. Toda essa história - como se fez, por que se fez, com quem se fez - reconstruía o filme. Isso era como construir um documento irrefutável; junto com os protagonistas dos fatos... eram muito diferentes. Mas quando fui ao laboratório, não havia filme. E essa experiência quase que acaba com todo o processo cinematográfico, porque o nível de gastos, de endividamento, é terrível... A equipe de filmagem trabalhara vários meses... pra nada!

Cc: E como conseguiu o financiamento para a realização de Los Caminos de la Muerte?

J. S.: Bem, era um acordo com essa empresa alemã, era um acordo de pré-venda. Recebi o dinheiro da TV alemã, que estava interessada em comprar o filme e fez um adiantamento muito importante, e também com a contribuição que vinha de nós, pelo dinheiro importante da negociação, para todo o mundo, de Sangre de Cóndor.

Cc: E depois veio o El Coraje del Pueblo?

J. S.: Sim,. Era para fazer um filme com a televisão italiana. Eles queriam um filme, um documentário de uma hora, sobre a questão mineira. Quando estávamos fazendo o filme, percebemos que o filme necessitava de mais tempo, e o pensamos de uma maneira diferente, com a estrutura de um semi-documentário.

Cc: Já há aí uma diferença na realização dos filmes, e a diferença entre Los Caminos de la Muerte e El Coraje del pueblo? Los Caminos de la Muerte também tinha planos-seqüências improvisados?

J. S.: Sim. Lá já estava colocado isso, já em Los Caminos de la Muerte. Essa busca de uma linguagem mais democrática. Já estava aí, primeiro, um sentido coletivo, não havia um personagem e, segundo, que tentamos reduzir a importância do primeiro plano. E buscamos planos de integração, que permitiam, que permitiam melhor, haver uma participação mais democrática, mais espontânea... Colocava-se a idéia de não dizer que se deveria fazer assim ou assado; colocava-se uma idéia... até porque também não podíamos inventar nada, pois se tratava de um fato histórico, não podíamos dizer a ninguém para falar tal diálogo, eles sabiam melhor do que nós, eles tinham vivido a experiência, era uma metodologia diferente- era perguntar "Como foi esse momento? O que disse fulano ou beltrano?" Esse filme realmente inaugurou uma concepção, uma elaboração de narrativa diferente da que utilizamos.

Cc: O que derruba o conceito tradicional de roteiro, com atores profissionais, com diálogos; e creio que deve ser uma experiência impressionante, como, no cinema africano, trabalhar com povos que não têm escrita; então o diretor do filme tem que falar primeiro o que fazer; não há um roteiro tradicional como aprendemos nas escolas de cinema. Como é trabalhar com esses atores tão singulares, como são os andinos?

J. S.: Bom, primeiro há todo um trabalho de seleção, de busca. Não se pode dizer a qualquer um "Vamos fazer um grupo"... Há um mês de trabalho de busca, de seleção de quem pode, se querem, pois é voluntário também. É difícil de dizer... Tem dificuldades, vantagens e desvantagens também. A vantagem é, no essencial, o frescor, a espontaneidade, obviamente caso tenha a sorte de ter diante da câmera pessoas com muita capacidade expressiva. Nem todo mundo tem essa capacidade. Mas, em geral, encontrei entre os camponeses gente com enorme capacidade histriônica, expressiva. Não é gente tímida; as pessoas da cidade são mais tímidas, não? Estão oprimidas pelo individualismo, de maneira que estão mais neurotizadas que eles, porque estamos admitindo um tipo de sociedade artificial, que não é natural. O homem é, naturalmente, parte de um coletivo; e o seu lugar normal, pessoal, não é viver sozinho. Isso é uma imposição da civilização individualista. O normal é vivermos em grupo e é em grupo que nos relacionamos, psicologicamente, melhor. Inclusive já se sabe disso por experiências muito interessantes sobre alimentação. Quando está sozinho, você assimila apenas 50% do seu prato; quando está com sua família, assimila 70% do mesmo prato e quando está com seus amigos, ou em grupo, você assimila 100%. Estamos falando que o homem é um ser gregário. E se busca uma explicação para isso, por que quando se está em grupo, a psicologia muda? Verdade? Porque quando você está entre amigos, você tem confiança, a psicologia muda, você está alegre, todos riem, brincam... porque não se tem medo do urso!... Não se tem medo do urso! É uma coisa tática. O homem, quando está em grupo, não tem mais medo do urso. Então, se desenvolve normalmente, psicologicamente. Quando se está sozinho, se está ... sempre olhando para trás, para ver onde aparece o urso. Nossa psicologia normal é estarmos em grupo. Isso é o que acontece, também, durante a filmagem. Os camponeses, que estão em grupo, estão totalmente liberados em suas expressões, sem ataduras individualistas. Podem se expressar de uma forma mais natural, mais segura.

Cc: El Enemigo Principal foi seu primeiro filme no exílio, no Peru. Como foi o exílio, a cisão do Grupo Ukamau?... Uns ficaram na Bolívia, outros partiram para o exílio...

J. S.: Houve uma divisão do grupo, sim. Uma parte foi para o exílio, outra parte ficou com Eguino e Oscar Soria, na Bolívia. E eles reestruturaram o grupo, como que formaram... na verdade, trabalhava como uma empresa; faziam trabalhos que antes não havíamos feito, de publicidade, para sobreviver economicamente e fizeram um cinema que chamaram de um "cinema possível", um cinema que pudesse sobreviver ao cerco da ditadura, de uma maneira de auto-censura, também, para poder fazer-se possível. Por outro lado, penso que esses filmes que fizeram, como Pueblo Chico e Chuquiago, são filmes muito respeitáveis, não têm um nível de confrontação com o Estado.

Cc: Mas esses filmes também têm o mesmo encaminhamento estético que os seus filmes? Personagens coletivos? Plano-seqüência?

J. S.: Não, não, não... São trabalhados dentro dos parâmetros ocidentais. Sim, Antonio Eguino, que era o diretor desses filmes, que vinha de toda uma formação em cinema nos Estados Unidos, e quando trabalhou com o grupo fez um trabalho especificamente de direção de fotografia e câmera. Ele não trabalhava em roteiro, não trabalhava na elaboração da estrutura narrativa. Tinha sua própria visão e essa foi a visão que ele aplicou a esses filmes que fez.

Cc: E os filmes da chamada Escola de Cuzco, os documentários feitos por essa escola nos anos 50, e os filmes dos remanescentes desse grupo realizados nos anos 70 como o filme de Figueroa Los Perros Hambrientos? No Peru, também houve um objetivo de fazer um cinema andino, para os povos andinos.

J. S.: Sim, mas não de compromisso político. Eram filmes que tinham um afã de recolher, resgatar, de recuperar, de exaltar a cultura andina, indígena. Em alguns casos, os problemas sociais, quando se fazem obras como Los Perros Hambrientos, Yawar Fiesta do romance de...

Cc: Ciro Alegría?

J. S.: Não...

Cc: De Arguedas! (José Maria Arguedas)

J. S.: Sim, de Arguedas.

Cc: Sim, Perros Hambrientos é de Ciro Alegría, eu creio.

J. S.: Perros Hambrientos, sim. Há uma certa familiaridade, em termos de temática, mas são duas estilísticas diferentes. Penso que na Escola de Cuzco não há uma análise de fazer um cinema político, militante, um cinema de confrontação; era um cinema de recuperação, tratava-se de resgate, de exaltação da cultura indígena.

Cc: E, esteticamente, esses filmes peruanos se aproximam do conceito andino, da filosofia andina? Esteticamente, você acredita que esses filmes peruanos se aproximam da cosmovisão andina?

J. S.: Não, não, não! Não há esse tipo de preocupação. É para um outro tipo de espectador. Eu creio que se trabalha sob os elementos narrativos tradicionais. Não estava na narrativa, estava na temática; era mais de conteúdo do que de forma.

Cc: E você continua, no Peru, o seu trabalho com os camponeses. Como foi isso? El Enemigo Principal. Você morava em Lima?

J. S.: Não, não, vivia nessa época no Chile. Fui a Cuzco contatar uns cineastas peruanos, depois Lima.... O filme se inspirou num fato peruano, e se desenrola quando um grupo de guerrilheiros fazem justiça numa comunidade com um gamonal de sobrenome Carrillo. No filme se chama Carrilles, mas na História é Carrillo. Isto está ligado ao fato da vinculação de... de uma espécie de esquerda paternal; o filme, de alguma maneira, é uma crítica também a essa relação... que com boas intenções, os guerrilheiros chegam à uma comunidade, fazem justiça, mas as conseqüências desse ato político não sofrem os guerrilheiros, pois os guerrilheiros os deixam, mas a comunidade desarmada que tem que suportar a repressão manejada pelos americanos. Esse filme, é curioso, enquanto leitura, pois escreveram, inclusive na França, o viram como um filme foquista, que exaltava a luta do ‘foco’, falava-se muito do ‘foco guerrilheiro’; não o leram corretamente, pois o filme é crítico a esse tipo de ação, como se vê no filme ... Foi uma boa experiência, essa... Mas foi um desafio formal. Depois de Coraje, é o nosso filme em que se trabalha segundo tais premissas, de um conflito coletivo... Por outro lado, se sustenta o interesse do espectador durante todo o tempo.

Cc: Creio que El Enemigo Principal em relação ao El Coraje del Pueblo é um pouco mais bem-sucedido, nesse sentido de personagem coletivo, você se identifica mesmo com o personagem coletivo, com a luta do personagem, se sente identificado com a massa. Conte-nos um pouco sobre isso e sobre a figura do velho narrador, que é uma tradição do povo quechua, o orador popular.

J. S.: Sim, sim. Há algo importante aí, no El Enemigo, já em El Coraje sentimos que isso era capaz, com mais força como você mesmo disse.Porque sempre... as estruturas da narrativa com personagem individual, o protagonista. Sempre se sustentou que se não há um protagonista com o qual o espectador não se identifica, não vai continuar com interesse pela história. Esses filmes desmontam totalmente essa falácia. Tudo, tudo está exercitado em como vai se contar, como se vá fascinar. Porque também não podemos dizer que com um personagem coletivo é possível que o filme será fascinante; então é duro, exige que se consiga lograr um processo de fascinação, de encantamento do espectador, através do ritmo, em termos da história, da concatenação das seqüências, em termos em que possa lograr manter o espectador interessado, atento, identificado com esse espectador coletivo dessa história. Foi muito importante, no caso, porque nos ajudou a colocar em prática outra proposta narrativa, própria da cultura indígena, que tem uma certa relação também com as propostas de Brecht, de distanciamento. E isso foi difícil, pois há distanciamento, mas ao mesmo tempo deve haver vínculo emocional. Nunca acreditei que deve haver apenas o distanciamento. Para que não houvesse o perigo de que o espectador visse tudo de longe, sem se comprometer emocionalmente; porque era necessário lograr um processo de emoção, de aproximação emocional com o espectador. Em termos de distanciamento, o narrador antecipa os fatos, que destrói, aniquila a intriga; o velho narrador desde o começo do filme já está antecipando o que vai ocorrer, quando diz que esse personagem vai discutir com o patrão, e no final da discussão o patrão irá matá-lo e irá cortar a sua cabeça. Então, o espectador já pensa "por que isso?"; já está desprendido da intriga: o que vai ocorrer, o que vai ocorrer com esse camponês quando se encontrar com o patrão, isso já não me interessa, isso já se sabe. Então, o mais importante é que o espectador, dessa maneira, possa pensar em coisas mais profundas no conflito patrão-camponês. É a mesma coisa que ocorre no filme Los Hijos del Ultimo Jardín, porque a intriga não está em como vão fazer o roubo, se vão roubar ou se não vão roubar. O cineasta americano faz todo um filme sobre isso, em como se vai roubar, em como se rouba, se roubarão ou não, se serão descobertos ou não... Então, aniquilado esse mecanismo de intriga, há uma outra intriga muito mais importante, que é a intriga das motivações, na qual o espectador se preocupa, em uma história como na de Los Hijos del Último Jardín, não está preocupado com a intriga do roubo, mas sim, das motivações, "por que fulano faz isso?". E isso funciona, quando não há mais a armadilha da intriga tradicional, ocidental.

Cc: Nos seus filmes também há uma importância do espaço, da paisagem, em seus filmes a paisagem é quase que um outro personagem...

J. S.: Sim.

Cc: e um dos pilares básicos da dramaturgia ocidental, por conseguinte do cinema ocidental-individualista é o personagem protagonista, porque o importante é o tempo, o tempo do personagem individual, que deseja alcançar o seu objetivo, então o tempo e a sua corrida contra o tempo é fundamental. Enquanto que num filme de personagem coletivo é o espaço, não é o tempo...

J. S.: Claro, sim. O tempo possui um outro valor, possui uma valorização diferente, porque no mundo ocidental, na narrativa ocidental, o tempo se conta de maneira linear. Concebe-se de maneira linear: um nascimento, um desenvolvimento e um fim, um final. Então, inspirados na cosmologia da cultura andina, copiamos que o tempo não é linear, mas, sim, circular. O tempo que as coisas regressam, como a vida, a vida é vivida em seu tempo circular, o sol volta todo dia, a Terra dá voltas, a morte pode estar no começo da história, não só no final, e o futuro do mundo andino pode estar atrás, não adiante, na inversão das coisas, de um retorno, no ponto em que regressa. E isso nos serviu também para construir as seqüências, em mover a câmera. Com a câmera se produz um itinerário capaz de voltar para o mesmo ponto, para transmitir ao espectador essa sensação de inquietação, da ação que não é propriedade individual.

Cc: E sobre a paisagem, o espaço?

J. S.: Bem, o espaço, o espaço é praticamente um personagem a mais, como você disse... Na vida do homem andino, a paisagem é um personagem. É toda uma cultura voltada ao espaço, uma cultura voltada à paisagem, uma cultura voltada à terra; uma profunda relação, uma relação com a terra, que a chamam de Pachamama, a Mãe Terra, na qual o homem andino está na paisagem.

Cc: É o que já está no título do filme Los Hijos del Último Jardín – o último jardim...

J. S.: Claro, é como uma alegoria do fim; têm um conteúdo ideológico.

Cc: O Grupo Ukamau depois de vários anos de pesquisa de como fazer um filme para os indígenas, voltado para o espectador indígena; e agora, há uma mudança de espectador, um filme para os jovens. Como foi isso? Houve uma necessidade de se voltar para um outro espectador, o Grupo Ukamau teve que ir a esse espectador desconhecido...

J. S.: Foi um tremendo desafio! Necessariamente tínhamos que fazer um filme que tivesse um ritmo diferente. La Nación Clandestina tinha planos muito longos, com um tempo muito diferente, o que para o espectador ocidental pode ser muito longo, "por que isso não se acelera mais?"; porque nós não pensamos no espectador ocidental. Em compensação, nesse [último] filme, sim, tivemos que pensar em um espectador normal, com cultura ocidental, no jovem da cidade. Estávamos obrigados a jogar com o tempo, a manejar o tempo com um ritmo diferente. Por outro lado, a história segue fiel a argumentos centrais: personagem coletivo, tempo circular; está construído assim, pois começa com o roubo...Estamos no meio do roubo, a história começa com o fim. O desafio é de feitura narrativa e funcionou; porque o espectador mais simples, o espectador mais intelectualizado segue a história de uma maneira muito normal, não se incomoda, não se perde... "Por que agora? Por que por aqui? Por que isso?" Como fazem a maioria dos filmes que usam esse tipo de jogo, o espectador se confunde.

Cc: E os atores do filme Los Hijos del Último Jardín eram profissionais ou eram jovens escolhidos na rua?

J. S.: Sim, sim. Por exemplo, o caso de Fernando. É uma história muito interessante porque é um jovem que hoje está terminando de estudar cinema na escola de Cuba., roteiro. Ele é integrante do nosso grupo. Quando minha esposa [Beatriz Palacios] preparando, fazendo o casting, fez uma convocatória pública, um trabalho de seleção, e foi escolhido um ator para fazer o papel de Fernando. Depois de onze dias de trabalho de filmagem, descobrimos que não era um ator e, sim, um agente da polícia. Seus telefones eram falsos, seu endereço era falso... e logo começou a fazer dentro da equipe de atores um trabalho como o de incomodar, de reclamar, de gerar conflitos, dissociar-se. Obviamente, seu projeto, o que lhe ordenavam, era abandonar o filme na metade. Se isso acontecesse, fracassaria tudo. Depois de onze dias, percebemos e tivemos que substituí-lo, mas já havíamos filmado bastante. Já não tínhamos mais tempo de fazer outra convocatória para o casting, tudo de novo, porque o processo de filmagem já estava em andamento, não podia parar. Não tínhamos como parar isso. O que fazer? Como buscamos um ator para fazer um personagem difícil?... E esse rapaz, que faz Fernando no filme, era o assistente da minha esposa no casting. Ela percebera nos testes que se faziam, que ele atuava, provocava os candidatos; ele tinha toda uma expressão.... Então, ela me disse "por que vamos buscar se Alejandro – porque ele se chama Alejandro - é muito bom, é magnífico, é melhor que muitos desses candidatos que têm carreira no teatro". Isso me chamou a atenção; fizemos um teste com ele, e ficou perfeito. Penso que os jovens no filme não têm porque orientá-los; por exemplo, no caso do indígena que faz papel de Roberto é o homem que aparece no filme - homem muito delicado, responsável, dedicado, sério, estudou, é bem preparado. Ele não precisava [financeiramente] trabalhar na filmagem, mas ele gostava muito da idéia de atuar. No caso de Alejandro, psicologicamente, também, é como o personagem. Ele mesmo reconhecia isso e dizia "Eu também sou assim; idealista, paternalista... e tudo isso."

Cc: E o restante do grupo?

J. S.: Os outros também estão um pouco próximo do que está no filme (risos)... muito próximo... muito próximo (risos). É como nesse filme Para Recibir el Canto de los Pájaros. Os atores desse filme se aborreceram muito comigo porque descobriram que, no fundo, não estavam inventando um personagem, pois todos eram o que são na vida real.

Cc: O diretor... (risos)

J. S.: (risos) Sim, sim...Esse é um dos atores que mais se aborreceu. Ele disse que eu não sabia dirigir, que em nenhum momento eu havia dado orientações de como atuar... Esse personagem que usa barba, que é o mais racista. E eu não tinha nada o que dizer... Em que eu iria orientar?!... Bastava ele abrir a boca... e se comportar como ele se comportava... Pronto! (risos)

Cc: (risos) Então, nesses dois últimos filmes houve diálogos improvisados?

J. S.: Sim, sim, alguns. Por exemplo, no último filme, as idéias ... os jovens diziam "se trata disso... vamos fazer isso... em tal situação... é dessa maneira e, no final, vai terminar em tal outra situação... Como você faria?...O que diria você?... Falem! "Eu diria tal coisa"... "Eu diria assim"... São perguntas que vão dando forma com as respostas .... "Não, isso não"... "É melhor tal coisa"... E se vai criando, justamente, se organiza ... com base numa linguagem clara. Sabem que usamos imagens, temos que começar nesse plano e terminar naquele outro. Mas há, também, diálogos claros, necessários, que estavam no roteiro... Como não temos uma indústria de cinema, não temos um grupo de atores de cinema profissionais. Os atores são muito poucos... Depende muito da capacidade de se organizar.

Cc: Há duas coisas em seu último filme, inserções documentais; há uma cena em que um homem toca um charango e uma senhora que canta. Isso me parece documental, não?

J. S.: Sim. Isso é uma coisa muito interessante porque quando se vê uma passeata, onde umas mulheres gritam: "Assassinos! Assassinos!", há uns policiais armados que estão numa praça, há uma manifestação em que os atores principais estão na frente gritando. Isso é real!... Inclusive essa gente correu muito perigo, porque nesse dia morreram dezessete pessoas; esses militares estavam disparando nas pessoas!... estavam disparando nas pessoas!. Foi muito arriscado! Na verdade não fui eu que fiz... Não fui eu!... Nesses dias, eu estava na Alemanha. Inclusive aquele ator que era policial participou dessa cena e depois, tivemos que cortar. Claro! Isso produzia uma coisa muito interessante...

Cc: Ah! Então o Fernando aparecia nessa cena?

J. S.: Sim, aí apareciam os dois [Fernando e Roberto]. Tivemos que cortar. Beatriz sabia que isso ia contextualizar a história desses jovens. Então, necessitávamos de um fato da realidade boliviana real. Nas folgas de filmagem, chamou os técnicos para levá-los lá... eles reclamaram: "Como é possível!", "Há balas, aí!" Então, ela disse: "Se não querem ir, vou sozinha!" Como ela foi, todos foram. Havia uma cena, um momento em que aí está Ivo Morales com o Fernando atrás e logo adiante, um outro ator. Estavam mais furiosos, mais excitados os atores do que os próprios manifestantes. Houve um momento em que chegaram a uma esquina... houve um momento em que se estava marchando e se chegou até uma esquina; tinham que decidir se iam por uma avenida ou por outra e foram os atores que disseram "Vamos por aqui!." E toda a manifestação seguiu os atores. Houve muito risco... Como era valente a minha esposa!...

Cc: Como foi trabalhar com digital?

J. S.: Ótimo! Muito bom! No dia da estréia, quando o filme estreou, na sala havia muitas pessoas, com uma tela de doze metros de comprimento e cinco de largura; era enorme! Ninguém, nem sequer gente de cinema, que estava lá, percebia que era uma projeção em digital. Era um canhão de sete mil; era muito potente e dava uma imagem ... Nenhum desses detalhes dos primeiros planos de paisagem. E as pessoas não acreditavam que isso era digital... Muito importante é que as pessoas estavam vendo nesse filme uma oportunidade tecnológica muito importante para que os jovens da Bolívia possam fazer cinema e chegar à tela grande... e com alta qualidade técnica.

Cc: Então, esse filme entrou em cartaz em La Paz em formato digital?

J. S.: Sim, sim, digital.

Cc: E depois vocês passaram esse filme para 35mm?

J. S.: Não, não, ainda não! Talvez nem vamos passá-lo porque, por exemplo, o filme Para Recibir el Canto de los Pájaros foi passado para 35 mm, somente depois, para estudá-lo e mandá-lo para os festivais. É um meio muito caro, num país sem laboratório, investir quinhentos dólares numa cópia é ... Eu penso que muito em breve o celulóide vai passar para o museu. Iinclusive nos festivais já estão fazendo mudança, com esses projetores. É um meio fantástico, além do mais a vantagem de que num país onde não há laboratório, você pode ver a imagem de imediato exatamente tal como você quer. Trabalhamos com critérios de cinema, na iluminação desse filme, com toda a parafernália que se usa no cinema. Podia-se iluminar e ver logo em seguida, ver exatamente como estava a fotografia. Isso, só com o digital, porque nem o video assistant lhe traz a imagem tal como é ... é diferente! Além do mais, isso dá muito mais filme, você pode dizer "Gravar, gravar, gravar!" sem fim. Você não tem mais esses problemas "Vai, terceira tomada!" "Não tem mais filme!" "Podia ter feito melhor, mas não tem mais filme! Não esperava por isso!"

Cc: Aqui no Brasil já há mais de dez anos se faz um trabalho com os índios; eles próprios se filmam, em vídeo. Não sei se essa mudança de espectador do Grupo Ukamau... porque agora os próprios índios não necessitam mais de um intermediário ocidental.

J. S.: Sim. Eu tenho um filho, que se chama Ivan, e que há sete anos dirige um organismo que se chama CEFREC. É um organismo que ensina audiovisual a jovens indígenas. De diferentes tribos da América Latina. E existem trabalhos muito interessantes deles mesmos.

Cc: Há muitos filmes bolivianos em cartaz?

J. S.: Há um de 35, que se chama Corazón de Jesús. No momento, está se realizando em digital um filme para o festival e se está terminando um outro filme em película que se chama Qué linda Bolívia, papá!, sobre o Che Guevara. Em total, vão se produzir esse ano, na Bolívia, sete longas-metragens, dos quais três são em digital.

Cc: Você acredita que a tecnologia digital vai desenvolver a cinematografia latino-americana?

J. S.: Lógico que sim! Creio que existe muita gente jovem com um enorme talento, que sempre foi filtrada pela incapacidade econômica, e que hoje vai ter oportunidade de fazer, se desenvolver cinematograficamente.

Cc: Principalmente, em países como Guatemala, Costa Rica, que nunca tiveram uma produção cinematográfica constante.

J. S.: Paraguai... Penso que sim. Creio que vai haver uma explosão cinematográfica e indubitavelmente nos próximos cinco anos, na América Latina, isso será mais ainda, porque são povos em que se acumularam muito sofrimento social. Os povos que sofrem são os que nos enriquecem em tudo. Um povo que não sofre, não cria nada. É como se a dor fosse um conteúdo de seu ser. É como na Argentina, antes da crise... Veio a crise; e a crise reativa a vida e as pessoas começam a questionar sobre a sociedade em termos reais. E isso é assim...

Cc: Filmes como El Bonaerense, La Ciénaga...

J. S.: Mundo Grua... Sim, vários filmes, que são produtos da crise.

Cc: Para você o que é um cinema popular, coletivo, revolucionário hoje em dia? Em filmes recentes como Adeus, Lênin, As Invasões Bárbaras, o argentino Lugares Comuns, vemos um fim das utopias. Você acredita que nos tempos modernos de hoje há espaço para as utopias?

J. S.: Sim, eu creio que sim. Penso que não só hoje em dia, sempre! A humanidade não pode viver sem utopias. Isso é uma necessidade quase que biológica, crer na esperança; uma necessidade biológica de transformação, mudança. Creio que sim. Assim se justifica em por que mudar as coisas que estão aí. ... E creio que numa sociedade sem perspectiva, como a de hoje em dia, na qual o homem não está realizado plenamente, não se sente bem, e isso gera angústia; as pessoas vão querer transformar essa sociedade, as pessoas vão crer na possibilidade de fazê-lo e isso é a utopia... Isso é tudo.

Cc: Em alguns filmes recentes encontramos a relação do indivíduo e o coletivo, e também uma questão de família, filhos e pais, um conflito de gerações. Você, em seu último filme, trata essa questão, como Fernando pensa "tenho que mudar essa sociedade", mas...

J. S.: Não resolve! Nem o problema de sua família.

Cc: ...Sim, exato! Ele não olha para a sua família, que é o problema que está mais próximo dele... Mas, por outro lado, você aponta para... há um "jardim", um outro..., não sei, talvez um outro conceito de família...

J. S.: ...A ética. Sim! É o drama de Fernando; é o que acontece na esquerda; se está alegorizando um conflito na esquerda, em geral e na latino-americana. Há muitos esquerdistas, muitos que militam na esquerda, não porque realmente querem transformar a sociedade, mas porque querem tranqüilizar a sua má consciência. Por isso, também, essas pessoas podem se converter numa espécie de trânsfuga, em direção ao outro lado. Um quê de individualismo, obviamente; e realmente, se sentem mais tranqüilos, "Se faço isso, e pronto... e depois tenho esse espaço para fazer o que quiser." Isso é um mecanismo muito comum, que explica o que chamo de "crocodilos chorões", que soltam-se de suas mais caras condições por meio da fuga. Isso explica algo de muito grave da sociedade, não só da sociedade latino-americana, mas do mundo. Porque toda a cultura do individualista, heleno-judaico-cristã está projetada numa visão de mundo, a meu ver, muito equivocada, com valores que não são aceitáveis, destruindo a nós mesmos... E com a ilusão de liberação da sociedade... E essas dificuldades de se construir uma sociedade orgânica, coletiva, de atuação coletiva, feliz; está cada vez mais difícil por esse cerco do individualismo, com corpos muito fortes, e com a melhor das intenções são capazes de destruir a sociedade, porque estão primeiro eles, depois os demais.

Cc: Em seus três últimos filmes, há uma "nação clandestina", você aponta, de um modo bem claro, esse conflito da existência de duas Bolívias, e agora, com os recentes fatos, com a queda do presidente Sánchez de Lozada, com o movimento indígena, camponês, você acredita que a Bolívia está num momento político de transformação e como o cinema boliviano vai trabalhar isso? Porque seu último filme, você o concebeu antes, mas os fatos foram agregados depois à idéia original.

J. S.:Sim! Bom, a Bolívia está vivendo uma etapa de transformação muito acelerada. Isso é o resultado de uma acumulação histórica no campesinato boliviano, inclusive creio, em resolver o enfrentamento permanente com o setor tradicional dominante - os mais reacionários, os conservadores - que manteve à margem essa população sedenta de transformação. Que construíram um Estado de fuzil, um Estado como um bunker, na qual a classe dominante se defende dessas minorias ansiosas, que são maiorias, mas não são cativas, que não estão nesse enfrentamento como que pacificamente, não estão relaxadas, estão em permanente contestação. E essa permanente contestação, os tornaram vigilantes, no processo histórico... Além do mais, se agregam, se somam as convicções de sua própria cultura, a formação de sua própria cultura coletivista, indígena, que os dota de uma visão superior, podemos dizer de uma certa maneira, dos que estão na cidade, porque podem ver, funcionar, porque vivem esses conflitos de uma maneira natural. O intelectual, o ideólogo, o esquerdista da cidade tem que fazer um esforço, uma lavagem cerebral enorme, para estar nesse plano para entender os demais primeiro e logo depois o indivíduo. Isso é o que dizia um intelectual boliviano, René Zavaleta Mercado, os índios primeiro se pensam coletivamente e depois pensam individualmente, então isso é muito importante, porque nós, o homem da cidade, não podemos fazer isso, não é fácil. Nós estamos pensando primeiro individualmente e depois coletivamente, e isso é um esforço que tem que se fazer para renunciar ao ego e ver o coletivo como primeiro. Por outro lado, para eles isso não é um esforço, é a sua maneira de compreender a sociedade, primeiro, coletivamente e depois individualmente, enquanto que na cidade não é assim, a cultura ocidental os deixa isolados, e isso lhes produz um trauma e um tipo de culpa, e por isso os índios tentam reduzir , tentam .... A sociedade boliviana hoje em dia também já tem dados concretos dessa raça, mobilizando sua gente; estão reclamando um novo Estado, porque não estão contentes com um Estado velho, anquilosado, ineficiente, que serviu para resolver os problemas de um estamento pequeno na sociedade; porque já não funciona, já não serve, para resolver as demandas e necessidades propostas em idéias básicas da sociedade, das mais básicas; que são conceitos que fazem com que tenham direito a ter um outro tipo de vida, que não seja continuar sofrendo na miséria e na consternação O que possui uma enorme força, porque não é algo concedido, mas sim, de sua capacidade, de tal idéia; e é por isso que a cultura, no caso boliviano, tem um papel político enorme.

Cc: Você afirmou ontem que nenhum partido ou líder conclamou as massas, foi algo espontâneo; creio que a própria esquerda boliviana ficou pasma.

J. S.: Claro! Sim! Todo mundo! Porque... quando a própria direita e a Igreja, quando tentou participar no conflito constitucional contra o presidente, disseram: "O que temos que fazer é chamar Ivo Morales, em Cochabamba; mandar um avião, um helicóptero, ele vai falar com o Presidente da República e isso vai se resolver!". E eles designaram um padre, um sacerdote que dirige uma rádio, que se crê o homem mais inteligente do país, crê que sabe tudo - mas fala coisas elementares! - quando ele se encontrou com Ivo Morales, este lhe disse: "O que eu vou fazer lá? Com quem vou falar? Tenho que falar com todo mundo!" Porque Com o o partido, tudo! Sim, porque sim! E isso custou a entender, o que estava falando esse homem, o que ele estava falando, custou a entender, por causa de preconceito. Pois, para eles, nada o que "essa gente" [os índios] exija, produz ou faz, é respeitável! Ou pode ser aprendido!...

Cc: Mas em outros países ocorre o mesmo; há um outro Peru., um outro Equador...

J. S.: Sim, claro. Lá, está ocorrendo o mesmo com os indígenas, mas, no caso do Peru estão produzindo muitos problemas, conflitos. Há uma diferença.... Como se no Peru se notasse a ausência de uma experiência histórica que o campesinato boliviano teve. Como se o Peru estivesse quarenta, cinqüenta anos mais atrás, como se faltasse ainda mais quarenta anos de desenvolvimento social, político, para assumir a conduta política que hoje tem o campesinato aymara boliviano. Porque não tiveram a Guerra do Chaco. Não tiveram a Revolução de 52. Esses fatores alimentaram e aceleraram um processo de consciência política.

Cc: E a experiência peruana?

J. S.: Velasco. Não!

Cc: Foi algo da cúpula para a base...

J. S.: Sim, exato! Bem intencionado com questões sociais, mas...

Cc: Mas, você filmou El Enemigo Principal, nesse período, no Peru...

J. S.: Mas nunca tive uma cooperação estatal. Foi algo, como que oculto isso (risos) Pois os militares ficavam assustados, em função da guerrilha, os camponeses...

Cc: Para você, o que é um cinema político hoje? E qual é a sua opinião sobre o cinema de Michael Moore?

J. S.: Eu não vi esse último filme dele. Mas, me parece bom, me parece muito importante, a experiência de um cinema político, se está criando um nível de consciência numa sociedade tão desinformada. Essa sociedade, mais do que qualquer outra, necessita desse tipo de cinema. É um povo, potencialmente, perigoso, não que sejam maus; os norte-americanos, geralmente, são pessoas muito ingênuas, muito simples... Mas, são perigosos com sua desinformação, e são capazes de continuar consentindo em fazer a violência e o Estado e seus governos os manipulam como querem! São muito desinformados para melhor vigiá-los. E um filme como o que falei [Fahrenheit 9/11], que tira Bush, de onde está oculto Bin Laden, é elementar. É muito importante.

Cc: Mas há ressalvas, não?

J. S.: Eu ainda não o vi. O que opinam?

Cc: Seria muito simples, Fahrenheit possui uma tese bem clara "eu quero derrubar Bush!". Primeiro, porque foi uma eleição roubada, fraudada, e Bush se apropriou do Estado como um saque, e agora, foram ao Iraque e não sabem como sair! Em suma, o filme possui um conteúdo muito claro.

J. S.: Mas, faz alguma análise do contexto político geral norte-americano?

Cc: Não.

J. S.: Porque isso é muito mais complicado de fazer. Porque no fundo, é isso; não é Bush. Bush apenas segue a um plano maquiavélico desses interesses. Todo mundo ficou se perguntando, "Por que o Partido Democrata não reagiu, com suficiente energia, quando lhes roubaram as eleições?" Foi o que todo mundo ficou pensando; "O que está acontecendo com o Partido Democrata?" Se lhes roubam de uma forma tão descarada o poder, com duzentos e cinqüenta mil votos de vantagem, e eles não fazem nada! Não fizeram nada! Só algumas críticas, muito débeis... Por isso, me dá a impressão de que o Partido Democrata... o verdadeiro poder está acima do Partido Democrata, e os Republicanos, que sobre eles, há um outro poder maior ... e foi nesse nível de poder, e assim foi nessa instância que se decidiu que o trabalho sujo era melhor que fosse feito por Bush. Que como presidente, o trabalho sujo faça ele, que não seja um democrata para a cara feia do Império. Mas, existe uma cara pior ou mais bestial; como foi Kennedy! Foi terrível! E era a "carinha bonita", o "mocinho" do filme. Mas, fez a Aliança para o Progresso, a pior fase da Guerra do Vietnã, tentou invadir duas vezes Cuba... E as pessoas estavam muito tranqüilas, porque estava aí a Jackie (risos) Que romântico! Mas é terrível. Por isso que se prefere o imperialismo com a cara de George Bush, do que esse imperialismo, que não se sabe como fazer, que é mais perigoso!

Entrevista concedida a Estevão Garcia e Fabián Núñez. Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2004. Transcrição e tradução: Fabián Nuñez.

 

 



Jorge Sanjinés (foto de Carla Nascimento)