Parece lugar comum ressaltar a grande importância
da obra de Jorge Sanjinés no contexto do cinema
latino americano da década de 60 quando ao lado
de outros cineastas – teóricos como Glauber Rocha,
Fernando Birri, Julio García Espinosa e Tomás
Gutierrez Alea , formulou novas linhas estéticas
e conceituais para um cinema potencialmente transformador
em nosso continente. No entanto, tanto a obra fílmica
quanto teórica desse grande realizador permanece
desconhecida e pouco discutida no Brasil. Procurando
jogar um clarão nesse caminho pouco transitado
que aproveitamos a visita do autor no Rio de Janeiro
devido a uma breve retrospectiva de sua obra na mostra
De olhos bem abertos para fazermos essa entrevista em
que discute todos os momentos de sua trajetória.
(E.G)
Cc: Fale um pouco do começo da sua
carreira cinematográfica, de seus primeiros curtas-metragens
e de seu trabalho no ICB, Instituto Cinematográfico
Boliviano, junto com Jorge Ruiz.
Jorge Sanjinés: .Bem junto, não;
foi depois. Antes de fazer filmes de longa-metragem
de ficção, fizemos vários curtas-metragens
como Revolución, depois Aysa!,
El mariscal de Zepita, La Guitarrita,
vários juntos. Foram trabalhos de preparação
para fazer depois um longa de ficção,
ainda que entre esses curtas, também, estava
um filme experimental de ficção, de uns
vinte minutos. Creio que nos habilitou para manejar
melhor os instrumentos, pois sempre tínhamos
a esperança de poder fazer um longa metragem
de ficção.
Cc: Conte sobre seus trabalhos nos noticiários
do ICB. (Instituto Cinematográfico Boliviano)
J. S.: Ah! Os noticiários... Sim, quando
decidimos dirigir o Instituto Cinematográfico,
fizemos uma transformação desse organismo.
Esse organismo era um organismo de propaganda política
do governo. E a nossa condição para aceitar
a direção desse organismo foi que nos
permitisse fazer um cinema criativo, independente, e
não apenas um trabalho de propaganda política.
Então, se chegou a um acordo para produzir um
cinema independente, de ficção, um cinema
artístico e um noticiário que, além
das notícias, dava conta da vida cultural e,
também, política do país.
Cc: Foi nessa época que você conheceu
os integrantes do Grupo Ukamau? Como foi a idéia
da formação do Grupo?
J. S.: [Antonio] Eguino era meu condiscípulo
do colégio, de há muitos anos, no curso
secundário; éramos muito amigos. Também,
com Ricardo Rada fomos companheiros de Universidade,
quando estudávamos Filosofia e Letras na Universidad
de San Andrés. Depois, fui estudar cinema no
exterior e quando regressei... o cinema é uma
coisa que não se pode fazer sozinho. Procurei
um grupo de amigos, de gente conhecida para entusiasmá-los
com o trabalho de cinema. Então, Eguino, que
havia morado dez anos nos Estados Unidos e, por conta
própria, sem que eu soubesse nada, havia estudado
cinema...
Cc: Em Hollywood?
J. S.: Não, em Nova Iorque. E depois entramos
em contato com o único e mais importante escritor
de cinema que havia na Bolívia, o roteirista
Oscar Soria, que havia trabalhado com Ruíz. Encontramos
muita simpatia e muitas coincidências no plano
ideológico, porque Oscar Soria era um intelectual
que vinha do processo da revolução do
ano de 52. Tinha em seus contos um olhar voltado para
a temática da mudança social, operária,
mineira.
Cc: Vocês tinham a mesma idade?
J. S.: Não, o Soria era mais velho, ele
era uns quinze anos mais velho.
Cc: Então, vocês formaram o Grupo
antes de realizar o filme Ukamau.
J. S.: Sim, antes de fazer o filme Ukamau,
o Grupo tinha um outro nome; se chamava Kollasuyu.
Esse é o nome indígena de uma parte do
Império Inca, que se dividia em quatro suyu,
que eram regiões. O Kollasuyu era o que
correspondia à região da Bolívia.
Estava vinculada ao conhecimento do herbolário,
da medicina. Era a região do império em
que mais se conhecia a medicina; a parte do Kollasuyu,
que hoje é a Bolívia. Com este grupo realizamos
um primeiro filme comprometido, ‘engajado’ como
vocês o chamam, que se chama Revolución,
ano 62. E esse filme, creio, abriu as portas para o
nosso trabalho porque foi muito bem prestigiado no país...
Cc: E no exterior, também.
J. S.: No exterior, também, foi bem exibido
e creio que em consideração e em respeito
pelo nosso trabalho. Isso permitiu também que
chegássemos ao êxito cinematográfico.
Houve uma mudança de governo, então, o
Ministro de Comunicação, que gostava muito
de cinema e conhecia o nosso trabalho, disse "Vamos
dar uma oportunidade a esses jovens para que façam
cinema".
Cc: Quais eram as suas principais referências
cinematográficas? Eisenstein, Pudóvkin?
J. S.: Sim. O uso dos textos teóricos
de Kulechov, Pudóvkin.
Cc: Mas você já tinha visto O
Encouraçado Potemkin? Os filmes de Eisenstein?
J. S.: Não, não... Nesse momento,
era puro conhecimento teórico... Depois, anos
depois de fazer, inclusive, o Ukamau, é
que eu pude ver em Paris O Encouraçado.
Cc: Você tinha contato com outros cineastas
latino-americanos? Você estudou no Chile, então...
J. S.: No Chile, somente com os cineastas da
velha Escola do Chile, como Patricio Kaulen, por exemplo...
as pessoas, os professores que tinham vindo da Argentina
para ensinar na escola de cinema.
Cc: E Fernando Birri, você conheceu nessa
época?
J. S.: Birri, não, ainda não...
Conheci Birri, muito tempo depois, quando fizemos o
trabalho de montagem de El Coraje del Pueblo,
na Itália, porque ele lá na Itália.
Estávamos montando El Coraje del Pueblo,
e depois o levamos ao Festival de Pesaro... E aí,
conhecemos Birri., que já conhecia o nosso trabalho.
Já tinha visto o Ukamau, Sangre de
Cóndor... mas a primeira vez que nos encontramos
foi na Itália...
Cc: Você participou dos históricos
festivais de Viña , de Mérida....
J. S.: sim.
Cc: Em Viña, foi com o Revolución?
J. S: Sim. Eu não pude ir à Viña;
mas passou o filme Revolución... Mas o
festival mais importante para mim foi o de Mérida.,
pois em Mérida se apresentou, por exemplo, a
obra de Santiago Álvarez. Conhecemos, também,
La Hora de los Hornos, de Solanas; estava um
documentário do Gleyzer... estava.....
Cc: E brasileiros?
J. S.: Brasileiro?...Creio que estava... Não,
não estava nenhum cineasta brasileiro. Estava
aí Cosme Alves Neto... Creio que Terra em
Transe, não... Deus e o Diabo na Terra
do Sol foi exibido.
Cc: Em 67?
J. S.: 67, não... 68, em outubro de 68.
Em 67, foi em Viña. Creio que o festival
de Mérida foi extraordinário, porque entramos
em contato, cineastas latino-americanos que não
nos conhecíamos, que, por sua vez, não
conheciam nosso trabalho, mas todos entrelaçados
por um mesmo projeto, uma mesma idéia, voltado
para um cinema que acompanha o processo de libertação
que se estava instalando na América Latina...
E tinha ocorrido a experiência do Che na Bolívia.
Creio que essa experiência foi fundamental para
todo o cinema latino-americano. Penso que o Che fez...
creio..... muito mais morto do que vivo. A morte do
Che impactou muito a intelectualidade pequeno-burguesa
da América Latina, que se questionou sobre o
seu papel. O que estava fazendo você como intelectual
nesses países, onde havia morrido esse homem,
na Bolívia, por suas idéias? Assim, Sangre
de Cóndor é um filme que se compromete
muito mais que o Ukamau, porque foi um chamado
poderoso para a consciência, para a responsabilidade
social ... os artistas e a experiência do Che.
Cc: Como foi o seu contato com outros diretores
latino-americanos nesse período dos anos 60?
Glauber Rocha, Birri, Solanas... influenciaram o seu
trabalho?
J. S.: Sim, eu creio que sim. Essa história
das influências, muitas vezes, é inconsciente
mais do que consciente, não? Dizem que tudo que
impressiona a um artista ou lhe agrada, o influencia.
Me impressionou muito, por exemplo, o trabalho dos cubanos
Tomás Gutiérrez Alea, Solás, que
vi nesses anos e, também, Terra em Transe,
que me pareceu um filme extraordinário e de que
gosto mais do que os outros filmes que Glauber fez.
É interessante sentir que estava se formando
um movimento poderosíssimo de cinema latino-americano,
nesses anos, e que era, naquele momento, o melhor cinema
do mundo! Muito enriquecedor... Além disso, havia
um sentimento de fraternidade, que nos convencia da
veracidade, da oportunidade de pôr em prática
esse velho sonho de Bolívar, de fazer uma Grande
Pátria, porque éramos irmãos -
nós, os latino-americanos... os brasileiros se
dividiam se compartilhávamos ou não o
mesmo destino histórico. Isso era sempre uma
festa, nos encontrarmos nos festivais, partilhar nossas
experiências, nossos projetos, nos organizarmos
como cineastas sem considerar barreiras políticas,
unidos em torno de um mesmo projeto histórico
de libertação, de independência
dos países de um inimigo comum que era o Império,
não?
Cc: Também nesse mesmo período,
final dos anos 60, se fazem os trabalhos teóricos,
os manifestos: "Por un Cine Imperfecto", de
García Espinosa e "Hacia un Tercer Cine"
de Solanas e Getino. Creio que são dois textos
fundamentais porque Espinosa fala das escolas de cinema,
pensando num país que fora libertado, Cuba, a
socialização dos meios de produção
audiovisual, enquanto que Solanas está pensando,
com o conceito de "Tercer Cine", um cinema
para a libertação. São dois textos,
um para um país que já foi libertado e
o outro, para a libertação. E você
começa a publicar, também, seus artigos
em "Cine Cubano"...
J. S.: ...e o nosso livro [Teoría y Práctica
de un Cine junto al Pueblo], também. Sim, sim,
creio que foi um processo de grande teorização
para responder à inquietude que o nosso cinema
despertou na Europa, nos críticos... para responder
a perguntas que sugerem: "Por que esse tipo de
cinema?"... Começamos a escrever, também,
para nos indagar, a nós mesmos, por que estávamos
fazendo esse tipo de cinema, para explicarmos a nós
mesmos porque fazíamos esse cinema. Havia uma
inquietude em saber que cinema tínhamos que fazer,
como era o cinema que se tinha que fazer. Chegara o
momento de colocar as idéias mais claras sobre
o papel do cinema na sociedade, o papel do artista na
sociedade. A necessidade mais adiante, também,
de buscar uma linguagem mais própria, que seria
o nosso caso, depois de Sangre de Cóndor.
Ontem, na conversa [refere-se ao debate ocorrido no
CCBB], esse filme que foi feito para os camponeses não
conseguia se comunicar com eles, teve muito êxito
com os críticos, nos festivais, nas cidades,
mas fracassava em sua comunicação com
o camponês. E compreendemos que, a partir de várias
experiências, como a que ocorreu com a realização
desse filme que esteve a ponto de fracassar. Quando
chegamos na comunidade de Kaata, a uns 400 km da cidade
de La Paz, pensamos que se tivéssemos a amizade
do chefe, estaria tudo resolvido, porque olhávamos
o chefe da comunidade como o poder político da
cidade. Se o chefe é nosso amigo, está
tudo resolvido. E percebemos que a coisa não
era bem assim. Não entendíamos, no começo,
porque ele não podia resolver o problema do trabalho.
As pessoas não apareciam, não se interessavam
em trabalhar no filme, embora oferecêssemos um
bom salário, e tudo isso... E na última
noite em que estávamos a ponto de ir embora,
com muita vergonha, muita preocupação
em dizer que tipo de estrangeiros... somos um corpo
estrangeiro porque não conseguimos nos relacionar
com a gente do povo. Não entendíamos o
que estava acontecendo, não havíamos compreendido
a visão coletivista das comunidades andinas.
Não compreendemos que o poder político
não era, não residia em uma pessoa, não
era um poder piramidal, não era um poder que
correspondia à relação pequeno-burguesa,
mas era um poder que vinha da base para cima. Isso foi
fundamental, e quando percebemos esse grave erro, pudemos
reparar a situação, demonstrando um grande
respeito pela comunidade. Percebemos que tínhamos
que pedir um reconhecimento não ao chefe da comunidade,
mas à comunidade. É o que a sociedade
dominante boliviana ainda não compreendeu, não
resolveu... Seu relacionamento com o elemento indígena
boliviano é muito traumático e sempre
houve um desencontro porque não entende essa
outra visão do poder, essa outra prática
do poder. Então, se gerou toda uma busca de uma
linguagem... Começamos a questionar porque fomos
coincidir com essa experiência da filmagem. Estamos
falando de um mundo que se concebe primeiro como grupo
e depois como indivíduo e tentamos fazer um cinema
que primeiro é indivíduo e, depois, é
socius. Tivemos que inverter a ordem, fazer um
cinema com uma visão do coletivo, com o uso de
uma linguagem mais democrática, menos hierarquizado
nos planos, buscando construir uma narrativa que fosse
coerente com a cultura, uma coerência entre forma
e conteúdo na obra.
Cc: Porque tanto em Ukamau como em Sangre
de Cóndor há um personagem protagonista
e, por exemplo, em Ukamau a vingança de
Andrés é uma vingança solitária...
J. S.: Individualista.
Cc: ...individualista, ele não compartilha
a sua dor com os companheiros. E em Sangre de Cóndor
também há uma mudança pessoal no
personagem principal.
J. S.: Correto, porque esses filmes estão
construídos conforme os parâmetros do cinema
europeu, individualista.
Cc: E essa mudança ocorreu com seu filme
Los Caminos de la Muerte? Conte-nos o que aconteceu
com esse filme, a história desse filme.
J. S.: Sim, esse é o primeiro filme que
fizemos sob um novo conceito. Esse novo conceito, diferente,
de construir uma nova linguagem. Foi um filme que demandou
muito trabalho. Enfim, tentava revelar e denunciar,
também, a ingerência do imperialismo na
política interna boliviana. Talvez porque não
tivemos suficiente cuidado, e falamos demais sobre a
história, é possível que, por isso,
tenha ocorrido uma sabotagem. Havia um acordo
de co-produção com uma empresa alemã
para fazermos esse filme. Eu penso que houve uma sabotagem
porque, primeiro, Antonio Eguino era um excelente fotógrafo,
todo mundo pode-se equivocar um pouco, mas não
pode errar durante um filme inteiro. Não se salvou
nenhum fotograma! Certamente, durante o processo [de
revelação], lhe deram mais tempo e queimaram
tudo; porque o que o filme denunciava era muito importante.
Denunciava que a embaixada norte-americana queria exercer
um controle sobre uma direção sindical
dos mineiros, setor social mais beligerante, mais conscientizado,
mais perigoso politicamente para a classe dominante
boliviana e para a embaixada. Mas o governo de Paz Estensoro
tinha um compromisso histórico com os mineiros.
Ele havia chegado ao poder, também, graças
à luta dos mineiros e, por isso, não podia
seguir as instruções da embaixada, porque
a embaixada pressionava o governo para que o Ministro
do Exército prendesse os dirigentes, que eram
dos dois partidos comunistas - um maoísta e outro...
Então, visto que o governo não cedia à
pressão, a embaixada utilizou uma informação
proveniente de estudos dos próprios americanos;
os americanos têm estudiosos da antropologia,
da geografia de nosso país. Sabia mais da cultura
indígena que os próprios bolivianos. Assim,
na zona mineira, próximo aos acampamentos dos
mineiros , estavam os grupos indígenas do norte
de Potosí – os laime e os jucumani- que,
tradicionalmente, têm problemas, que se resolvem
a cada ano com uma festa ritual, onde se ritualiza a
violência. As pessoas fazem uma briga ritual,
e com isso elas resolvem os problemas que elas têm
entre si, mas essa luta ritualizada sempre responde
a uma vingança sob a Lei de Talião. Quando
os jucumani sentem que os laime lhe roubavam
uma ovelha, iam ao outro lado e roubavam uma ovelha.
É sistematicamente igual... Então, conhecendo
esse mecanismo, os americanos armaram um grupo do Exército
com as roupas de camponeses de um clã, atacaram
uma comunidade, incendiaram, roubaram e violaram mulheres.
E isso detonou uma guerra porque os outros se sentiram
obrigados a fazer o mesmo. Todos eram muito bem vinculados
aos mineiros; o armamento que tinham e utilizaram nessa
guerra camponesa provinha das minas. E aí estavam
equipamento militar, fuzis... enquanto outros eram alimentados
pelo Exército. Quando, num determinado momento,
se tentou fazer um assalto final aos acampamentos mineiros,
onde seriam todos presos, e fuzilariam os dirigentes,
não puderam fazer, porque os mineiros estavam
informados, se adiantaram e atacaram o acampamento do
Exército. Os soldados, que estavam vestidos com
roupas de camponeses... Vieram muito antes, tomaram
o acampamento e fizeram um julgamento sumário
com as pessoas. Toda essa história - como se
fez, por que se fez, com quem se fez - reconstruía
o filme. Isso era como construir um documento irrefutável;
junto com os protagonistas dos fatos... eram muito diferentes.
Mas quando fui ao laboratório, não havia
filme. E essa experiência quase que acaba com
todo o processo cinematográfico, porque o nível
de gastos, de endividamento, é terrível...
A equipe de filmagem trabalhara vários meses...
pra nada!
Cc: E como conseguiu o financiamento para a realização
de Los Caminos de la Muerte?
J. S.: Bem, era um acordo com essa empresa alemã,
era um acordo de pré-venda. Recebi o dinheiro
da TV alemã, que estava interessada em comprar
o filme e fez um adiantamento muito importante, e também
com a contribuição que vinha de nós,
pelo dinheiro importante da negociação,
para todo o mundo, de Sangre de Cóndor.
Cc: E depois veio o El Coraje del Pueblo?
J. S.: Sim,. Era para fazer um filme com a televisão
italiana. Eles queriam um filme, um documentário
de uma hora, sobre a questão mineira. Quando
estávamos fazendo o filme, percebemos que o filme
necessitava de mais tempo, e o pensamos de uma maneira
diferente, com a estrutura de um semi-documentário.
Cc: Já há aí uma diferença
na realização dos filmes, e a diferença
entre Los Caminos de la Muerte e El Coraje
del pueblo? Los Caminos de la Muerte também
tinha planos-seqüências improvisados?
J. S.: Sim. Lá já estava colocado
isso, já em Los Caminos de la Muerte.
Essa busca de uma linguagem mais democrática.
Já estava aí, primeiro, um sentido
coletivo, não havia um personagem e, segundo,
que tentamos reduzir a importância do primeiro
plano. E buscamos planos de integração,
que permitiam, que permitiam melhor, haver uma participação
mais democrática, mais espontânea... Colocava-se
a idéia de não dizer que se deveria fazer
assim ou assado; colocava-se uma idéia... até
porque também não podíamos inventar
nada, pois se tratava de um fato histórico, não
podíamos dizer a ninguém para falar tal
diálogo, eles sabiam melhor do que nós,
eles tinham vivido a experiência, era uma metodologia
diferente- era perguntar "Como foi esse momento?
O que disse fulano ou beltrano?" Esse filme realmente
inaugurou uma concepção, uma elaboração
de narrativa diferente da que utilizamos.
Cc: O que derruba o conceito tradicional de roteiro,
com atores profissionais, com diálogos; e creio
que deve ser uma experiência impressionante, como,
no cinema africano, trabalhar com povos que não
têm escrita; então o diretor do filme tem
que falar primeiro o que fazer; não há
um roteiro tradicional como aprendemos nas escolas de
cinema. Como é trabalhar com esses atores tão
singulares, como são os andinos?
J. S.: Bom, primeiro há todo um trabalho
de seleção, de busca. Não se pode
dizer a qualquer um "Vamos fazer um grupo"...
Há um mês de trabalho de busca, de seleção
de quem pode, se querem, pois é voluntário
também. É difícil de dizer... Tem
dificuldades, vantagens e desvantagens também.
A vantagem é, no essencial, o frescor, a espontaneidade,
obviamente caso tenha a sorte de ter diante da câmera
pessoas com muita capacidade expressiva. Nem todo mundo
tem essa capacidade. Mas, em geral, encontrei entre
os camponeses gente com enorme capacidade histriônica,
expressiva. Não é gente tímida;
as pessoas da cidade são mais tímidas,
não? Estão oprimidas pelo individualismo,
de maneira que estão mais neurotizadas que eles,
porque estamos admitindo um tipo de sociedade artificial,
que não é natural. O homem é, naturalmente,
parte de um coletivo; e o seu lugar normal, pessoal,
não é viver sozinho. Isso é uma
imposição da civilização
individualista. O normal é vivermos em grupo
e é em grupo que nos relacionamos, psicologicamente,
melhor. Inclusive já se sabe disso por experiências
muito interessantes sobre alimentação.
Quando está sozinho, você assimila apenas
50% do seu prato; quando está com sua família,
assimila 70% do mesmo prato e quando está com
seus amigos, ou em grupo, você assimila 100%.
Estamos falando que o homem é um ser gregário.
E se busca uma explicação para isso, por
que quando se está em grupo, a psicologia muda?
Verdade? Porque quando você está entre
amigos, você tem confiança, a psicologia
muda, você está alegre, todos riem, brincam...
porque não se tem medo do urso!... Não
se tem medo do urso! É uma coisa tática.
O homem, quando está em grupo, não tem
mais medo do urso. Então, se desenvolve normalmente,
psicologicamente. Quando se está sozinho, se
está ... sempre olhando para trás, para
ver onde aparece o urso. Nossa psicologia normal é
estarmos em grupo. Isso é o que acontece, também,
durante a filmagem. Os camponeses, que estão
em grupo, estão totalmente liberados em suas
expressões, sem ataduras individualistas. Podem
se expressar de uma forma mais natural, mais segura.
Cc: El Enemigo Principal foi seu primeiro
filme no exílio, no Peru. Como foi o exílio,
a cisão do Grupo Ukamau?... Uns ficaram na Bolívia,
outros partiram para o exílio...
J. S.: Houve uma divisão do grupo, sim.
Uma parte foi para o exílio, outra parte ficou
com Eguino e Oscar Soria, na Bolívia. E eles
reestruturaram o grupo, como que formaram... na verdade,
trabalhava como uma empresa; faziam trabalhos que antes
não havíamos feito, de publicidade, para
sobreviver economicamente e fizeram um cinema que chamaram
de um "cinema possível", um cinema
que pudesse sobreviver ao cerco da ditadura, de uma
maneira de auto-censura, também, para poder fazer-se
possível. Por outro lado, penso que esses filmes
que fizeram, como Pueblo Chico e Chuquiago,
são filmes muito respeitáveis, não
têm um nível de confrontação
com o Estado.
Cc: Mas esses filmes também têm
o mesmo encaminhamento estético que os seus filmes?
Personagens coletivos? Plano-seqüência?
J. S.: Não, não, não...
São trabalhados dentro dos parâmetros ocidentais.
Sim, Antonio Eguino, que era o diretor desses filmes,
que vinha de toda uma formação em cinema
nos Estados Unidos, e quando trabalhou com o grupo fez
um trabalho especificamente de direção
de fotografia e câmera. Ele não trabalhava
em roteiro, não trabalhava na elaboração
da estrutura narrativa. Tinha sua própria visão
e essa foi a visão que ele aplicou a esses filmes
que fez.
Cc: E os filmes da chamada Escola de Cuzco, os
documentários feitos por essa escola nos anos
50, e os filmes dos remanescentes desse grupo realizados
nos anos 70 como o filme de Figueroa Los Perros Hambrientos?
No Peru, também houve um objetivo de fazer um
cinema andino, para os povos andinos.
J. S.: Sim, mas não de compromisso político.
Eram filmes que tinham um afã de recolher, resgatar,
de recuperar, de exaltar a cultura andina, indígena.
Em alguns casos, os problemas sociais, quando se fazem
obras como Los Perros Hambrientos, Yawar Fiesta
do romance de...
Cc: Ciro Alegría?
J. S.: Não...
Cc: De Arguedas! (José Maria Arguedas)
J. S.: Sim, de Arguedas.
Cc: Sim, Perros Hambrientos é de
Ciro Alegría, eu creio.
J. S.: Perros Hambrientos, sim. Há
uma certa familiaridade, em termos de temática,
mas são duas estilísticas diferentes.
Penso que na Escola de Cuzco não há uma
análise de fazer um cinema político, militante,
um cinema de confrontação; era um cinema
de recuperação, tratava-se de resgate,
de exaltação da cultura indígena.
Cc: E, esteticamente, esses filmes peruanos se
aproximam do conceito andino, da filosofia andina? Esteticamente,
você acredita que esses filmes peruanos se aproximam
da cosmovisão andina?
J. S.: Não, não, não! Não
há esse tipo de preocupação. É
para um outro tipo de espectador. Eu creio que se trabalha
sob os elementos narrativos tradicionais. Não
estava na narrativa, estava na temática; era
mais de conteúdo do que de forma.
Cc: E você continua, no Peru, o seu trabalho
com os camponeses. Como foi isso? El Enemigo Principal.
Você morava em Lima?
J. S.: Não, não, vivia nessa época
no Chile. Fui a Cuzco contatar uns cineastas peruanos,
depois Lima.... O filme se inspirou num fato
peruano, e se desenrola quando um grupo de guerrilheiros
fazem justiça numa comunidade com um gamonal
de sobrenome Carrillo. No filme se chama Carrilles,
mas na História é Carrillo. Isto está
ligado ao fato da vinculação de... de
uma espécie de esquerda paternal; o filme, de
alguma maneira, é uma crítica também
a essa relação... que com boas intenções,
os guerrilheiros chegam à uma comunidade, fazem
justiça, mas as conseqüências desse
ato político não sofrem os guerrilheiros,
pois os guerrilheiros os deixam, mas a comunidade desarmada
que tem que suportar a repressão manejada pelos
americanos. Esse filme, é curioso, enquanto leitura,
pois escreveram, inclusive na França, o viram
como um filme foquista, que exaltava a luta do ‘foco’,
falava-se muito do ‘foco guerrilheiro’; não o
leram corretamente, pois o filme é crítico
a esse tipo de ação, como se vê
no filme ... Foi uma boa experiência, essa...
Mas foi um desafio formal. Depois de Coraje,
é o nosso filme em que se trabalha segundo tais
premissas, de um conflito coletivo... Por outro lado,
se sustenta o interesse do espectador durante todo o
tempo.
Cc: Creio que El Enemigo Principal em
relação ao El Coraje del Pueblo
é um pouco mais bem-sucedido, nesse sentido de
personagem coletivo, você se identifica mesmo
com o personagem coletivo, com a luta do personagem,
se sente identificado com a massa. Conte-nos um pouco
sobre isso e sobre a figura do velho narrador, que é
uma tradição do povo quechua, o
orador popular.
J. S.: Sim, sim. Há algo importante aí,
no El Enemigo, já em El Coraje
sentimos que isso era capaz, com mais força como
você mesmo disse.Porque sempre... as estruturas
da narrativa com personagem individual, o protagonista.
Sempre se sustentou que se não há um protagonista
com o qual o espectador não se identifica, não
vai continuar com interesse pela história. Esses
filmes desmontam totalmente essa falácia. Tudo,
tudo está exercitado em como vai se contar, como
se vá fascinar. Porque também não
podemos dizer que com um personagem coletivo é
possível que o filme será fascinante;
então é duro, exige que se consiga lograr
um processo de fascinação, de encantamento
do espectador, através do ritmo, em termos da
história, da concatenação das seqüências,
em termos em que possa lograr manter o espectador interessado,
atento, identificado com esse espectador coletivo dessa
história. Foi muito importante, no caso, porque
nos ajudou a colocar em prática outra proposta
narrativa, própria da cultura indígena,
que tem uma certa relação também
com as propostas de Brecht, de distanciamento. E isso
foi difícil, pois há distanciamento, mas
ao mesmo tempo deve haver vínculo emocional.
Nunca acreditei que deve haver apenas o distanciamento.
Para que não houvesse o perigo de que o espectador
visse tudo de longe, sem se comprometer emocionalmente;
porque era necessário lograr um processo de emoção,
de aproximação emocional com o espectador.
Em termos de distanciamento, o narrador antecipa os
fatos, que destrói, aniquila a intriga; o velho
narrador desde o começo do filme já está
antecipando o que vai ocorrer, quando diz que esse personagem
vai discutir com o patrão, e no final da discussão
o patrão irá matá-lo e irá
cortar a sua cabeça. Então, o espectador
já pensa "por que isso?"; já
está desprendido da intriga: o que vai ocorrer,
o que vai ocorrer com esse camponês quando se
encontrar com o patrão, isso já não
me interessa, isso já se sabe. Então,
o mais importante é que o espectador, dessa maneira,
possa pensar em coisas mais profundas no conflito patrão-camponês.
É a mesma coisa que ocorre no filme Los Hijos
del Ultimo Jardín, porque a intriga não
está em como vão fazer o roubo, se vão
roubar ou se não vão roubar. O cineasta
americano faz todo um filme sobre isso, em como se vai
roubar, em como se rouba, se roubarão ou não,
se serão descobertos ou não... Então,
aniquilado esse mecanismo de intriga, há uma
outra intriga muito mais importante, que é a
intriga das motivações, na qual o espectador
se preocupa, em uma história como na de Los
Hijos del Último Jardín, não
está preocupado com a intriga do roubo, mas sim,
das motivações, "por que fulano faz
isso?". E isso funciona, quando não há
mais a armadilha da intriga tradicional, ocidental.
Cc: Nos seus filmes também há uma
importância do espaço, da paisagem, em
seus filmes a paisagem é quase que um outro personagem...
J. S.: Sim.
Cc: e um dos pilares básicos da dramaturgia
ocidental, por conseguinte do cinema ocidental-individualista
é o personagem protagonista, porque o importante
é o tempo, o tempo do personagem individual,
que deseja alcançar o seu objetivo, então
o tempo e a sua corrida contra o tempo é fundamental.
Enquanto que num filme de personagem coletivo é
o espaço, não é o tempo...
J. S.: Claro, sim. O tempo possui um outro valor,
possui uma valorização diferente, porque
no mundo ocidental, na narrativa ocidental, o tempo
se conta de maneira linear. Concebe-se de maneira linear:
um nascimento, um desenvolvimento e um fim, um final.
Então, inspirados na cosmologia da cultura andina,
copiamos que o tempo não é linear, mas,
sim, circular. O tempo que as coisas regressam, como
a vida, a vida é vivida em seu tempo circular,
o sol volta todo dia, a Terra dá voltas, a morte
pode estar no começo da história, não
só no final, e o futuro do mundo andino pode
estar atrás, não adiante, na inversão
das coisas, de um retorno, no ponto em que regressa.
E isso nos serviu também para construir as seqüências,
em mover a câmera. Com a câmera se produz
um itinerário capaz de voltar para o mesmo ponto,
para transmitir ao espectador essa sensação
de inquietação, da ação
que não é propriedade individual.
Cc: E sobre a paisagem, o espaço?
J. S.: Bem, o espaço, o espaço
é praticamente um personagem a mais, como você
disse... Na vida do homem andino, a paisagem é
um personagem. É toda uma cultura voltada ao
espaço, uma cultura voltada à paisagem,
uma cultura voltada à terra; uma profunda relação,
uma relação com a terra, que a chamam
de Pachamama, a Mãe Terra, na qual o homem
andino está na paisagem.
Cc: É o que já está no título
do filme Los Hijos del Último Jardín
– o último jardim...
J. S.: Claro, é como uma alegoria do fim;
têm um conteúdo ideológico.
Cc: O Grupo Ukamau depois de vários anos
de pesquisa de como fazer um filme para os indígenas,
voltado para o espectador indígena; e agora,
há uma mudança de espectador, um filme
para os jovens. Como foi isso? Houve uma necessidade
de se voltar para um outro espectador, o Grupo Ukamau
teve que ir a esse espectador desconhecido...
J. S.: Foi um tremendo desafio! Necessariamente
tínhamos que fazer um filme que tivesse um ritmo
diferente. La Nación Clandestina tinha
planos muito longos, com um tempo muito diferente, o
que para o espectador ocidental pode ser muito longo,
"por que isso não se acelera mais?";
porque nós não pensamos no espectador
ocidental. Em compensação, nesse [último]
filme, sim, tivemos que pensar em um espectador normal,
com cultura ocidental, no jovem da cidade. Estávamos
obrigados a jogar com o tempo, a manejar o tempo com
um ritmo diferente. Por outro lado, a história
segue fiel a argumentos centrais: personagem coletivo,
tempo circular; está construído assim,
pois começa com o roubo...Estamos no meio do
roubo, a história começa com o fim. O
desafio é de feitura narrativa e funcionou; porque
o espectador mais simples, o espectador mais intelectualizado
segue a história de uma maneira muito normal,
não se incomoda, não se perde... "Por
que agora? Por que por aqui? Por que isso?" Como
fazem a maioria dos filmes que usam esse tipo de jogo,
o espectador se confunde.
Cc: E os atores do filme Los Hijos del Último
Jardín eram profissionais ou eram jovens
escolhidos na rua?
J. S.: Sim, sim. Por exemplo, o caso de Fernando.
É uma história muito interessante porque
é um jovem que hoje está terminando de
estudar cinema na escola de Cuba., roteiro. Ele é
integrante do nosso grupo. Quando minha esposa [Beatriz
Palacios] preparando, fazendo o casting, fez
uma convocatória pública, um trabalho
de seleção, e foi escolhido um ator para
fazer o papel de Fernando. Depois de onze dias de trabalho
de filmagem, descobrimos que não era um ator
e, sim, um agente da polícia. Seus telefones
eram falsos, seu endereço era falso... e logo
começou a fazer dentro da equipe de atores um
trabalho como o de incomodar, de reclamar, de gerar
conflitos, dissociar-se. Obviamente, seu projeto, o
que lhe ordenavam, era abandonar o filme na metade.
Se isso acontecesse, fracassaria tudo. Depois de onze
dias, percebemos e tivemos que substituí-lo,
mas já havíamos filmado bastante. Já
não tínhamos mais tempo de fazer outra
convocatória para o casting, tudo de novo,
porque o processo de filmagem já estava em
andamento, não podia parar. Não tínhamos
como parar isso. O que fazer? Como buscamos um ator
para fazer um personagem difícil?... E esse rapaz,
que faz Fernando no filme, era o assistente da minha
esposa no casting. Ela percebera nos testes que
se faziam, que ele atuava, provocava os candidatos;
ele tinha toda uma expressão.... Então,
ela me disse "por que vamos buscar se Alejandro
– porque ele se chama Alejandro - é muito bom,
é magnífico, é melhor que muitos
desses candidatos que têm carreira no teatro".
Isso me chamou a atenção; fizemos um teste
com ele, e ficou perfeito. Penso que os jovens no filme
não têm porque orientá-los; por
exemplo, no caso do indígena que faz papel de
Roberto é o homem que aparece no filme - homem
muito delicado, responsável, dedicado, sério,
estudou, é bem preparado. Ele não precisava
[financeiramente] trabalhar na filmagem, mas ele gostava
muito da idéia de atuar. No caso de Alejandro,
psicologicamente, também, é como o personagem.
Ele mesmo reconhecia isso e dizia "Eu também
sou assim; idealista, paternalista... e tudo isso."
Cc: E o restante do grupo?
J. S.: Os outros também estão um
pouco próximo do que está no filme (risos)...
muito próximo... muito próximo (risos).
É como nesse filme Para Recibir el Canto de
los Pájaros. Os atores desse filme se aborreceram
muito comigo porque descobriram que, no fundo, não
estavam inventando um personagem, pois todos eram o
que são na vida real.
Cc: O diretor... (risos)
J. S.: (risos) Sim, sim...Esse é um dos
atores que mais se aborreceu. Ele disse que eu não
sabia dirigir, que em nenhum momento eu havia dado orientações
de como atuar... Esse personagem que usa barba, que
é o mais racista. E eu não tinha nada
o que dizer... Em que eu iria orientar?!... Bastava
ele abrir a boca... e se comportar como ele se comportava...
Pronto! (risos)
Cc: (risos) Então, nesses dois últimos
filmes houve diálogos improvisados?
J. S.: Sim, sim, alguns. Por exemplo, no último
filme, as idéias ... os jovens diziam "se
trata disso... vamos fazer isso... em tal situação...
é dessa maneira e, no final, vai terminar em
tal outra situação... Como você
faria?...O que diria você?... Falem! "Eu
diria tal coisa"... "Eu diria assim"...
São perguntas que vão dando forma com
as respostas .... "Não, isso não"...
"É melhor tal coisa"... E se vai criando,
justamente, se organiza ... com base numa linguagem
clara. Sabem que usamos imagens, temos que começar
nesse plano e terminar naquele outro. Mas há,
também, diálogos claros, necessários,
que estavam no roteiro... Como não temos uma
indústria de cinema, não temos um grupo
de atores de cinema profissionais. Os atores são
muito poucos... Depende muito da capacidade de se organizar.
Cc: Há duas coisas em seu último
filme, inserções documentais; há
uma cena em que um homem toca um charango e uma
senhora que canta. Isso me parece documental, não?
J. S.: Sim. Isso é uma coisa muito interessante
porque quando se vê uma passeata, onde umas mulheres
gritam: "Assassinos! Assassinos!", há
uns policiais armados que estão numa praça,
há uma manifestação em que os atores
principais estão na frente gritando. Isso é
real!... Inclusive essa gente correu muito perigo, porque
nesse dia morreram dezessete pessoas; esses militares
estavam disparando nas pessoas!... estavam disparando
nas pessoas!. Foi muito arriscado! Na verdade não
fui eu que fiz... Não fui eu!... Nesses dias,
eu estava na Alemanha. Inclusive aquele ator que era
policial participou dessa cena e depois, tivemos que
cortar. Claro! Isso produzia uma coisa muito interessante...
Cc: Ah! Então o Fernando aparecia nessa
cena?
J. S.: Sim, aí apareciam os dois [Fernando
e Roberto]. Tivemos que cortar. Beatriz sabia que isso
ia contextualizar a história desses jovens. Então,
necessitávamos de um fato da realidade boliviana
real. Nas folgas de filmagem, chamou os técnicos
para levá-los lá... eles reclamaram: "Como
é possível!", "Há balas,
aí!" Então, ela disse: "Se não
querem ir, vou sozinha!" Como ela foi, todos foram.
Havia uma cena, um momento em que aí está
Ivo Morales com o Fernando atrás e logo adiante,
um outro ator. Estavam mais furiosos, mais excitados
os atores do que os próprios manifestantes. Houve
um momento em que chegaram a uma esquina... houve um
momento em que se estava marchando e se chegou até
uma esquina; tinham que decidir se iam por uma avenida
ou por outra e foram os atores que disseram "Vamos
por aqui!." E toda a manifestação
seguiu os atores. Houve muito risco... Como era valente
a minha esposa!...
Cc: Como foi trabalhar com digital?
J. S.: Ótimo! Muito bom! No dia da estréia,
quando o filme estreou, na sala havia muitas pessoas,
com uma tela de doze metros de comprimento e cinco de
largura; era enorme! Ninguém, nem sequer gente
de cinema, que estava lá, percebia que era uma
projeção em digital. Era um canhão
de sete mil; era muito potente e dava uma imagem ...
Nenhum desses detalhes dos primeiros planos de paisagem.
E as pessoas não acreditavam que isso era digital...
Muito importante é que as pessoas estavam vendo
nesse filme uma oportunidade tecnológica muito
importante para que os jovens da Bolívia possam
fazer cinema e chegar à tela grande... e com
alta qualidade técnica.
Cc: Então, esse filme entrou em cartaz
em La Paz em formato digital?
J. S.: Sim, sim, digital.
Cc: E depois vocês passaram esse filme
para 35mm?
J. S.: Não, não, ainda não!
Talvez nem vamos passá-lo porque, por exemplo,
o filme Para Recibir el Canto de los Pájaros
foi passado para 35 mm, somente depois, para estudá-lo
e mandá-lo para os festivais. É um meio
muito caro, num país sem laboratório,
investir quinhentos dólares numa cópia
é ... Eu penso que muito em breve o celulóide
vai passar para o museu. Iinclusive nos festivais já
estão fazendo mudança, com esses projetores.
É um meio fantástico, além do mais
a vantagem de que num país onde não há
laboratório, você pode ver a imagem de
imediato exatamente tal como você quer. Trabalhamos
com critérios de cinema, na iluminação
desse filme, com toda a parafernália que se usa
no cinema. Podia-se iluminar e ver logo em seguida,
ver exatamente como estava a fotografia. Isso, só
com o digital, porque nem o video assistant lhe
traz a imagem tal como é ... é diferente!
Além do mais, isso dá muito mais filme,
você pode dizer "Gravar, gravar, gravar!"
sem fim. Você não tem mais esses problemas
"Vai, terceira tomada!" "Não tem
mais filme!" "Podia ter feito melhor, mas
não tem mais filme! Não esperava por isso!"
Cc: Aqui no Brasil já há mais de
dez anos se faz um trabalho com os índios; eles
próprios se filmam, em vídeo. Não
sei se essa mudança de espectador do Grupo Ukamau...
porque agora os próprios índios não
necessitam mais de um intermediário ocidental.
J. S.: Sim. Eu tenho um filho, que se chama Ivan,
e que há sete anos dirige um organismo que se
chama CEFREC. É um organismo que ensina audiovisual
a jovens indígenas. De diferentes tribos da América
Latina. E existem trabalhos muito interessantes deles
mesmos.
Cc: Há muitos filmes bolivianos em cartaz?
J. S.: Há um de 35, que se chama Corazón
de Jesús. No momento, está se realizando
em digital um filme para o festival e se está
terminando um outro filme em película que se
chama Qué linda Bolívia, papá!,
sobre o Che Guevara. Em total, vão se produzir
esse ano, na Bolívia, sete longas-metragens,
dos quais três são em digital.
Cc: Você acredita que a tecnologia digital
vai desenvolver a cinematografia latino-americana?
J. S.: Lógico que sim! Creio que existe
muita gente jovem com um enorme talento, que sempre
foi filtrada pela incapacidade econômica, e que
hoje vai ter oportunidade de fazer, se desenvolver cinematograficamente.
Cc: Principalmente, em países como Guatemala,
Costa Rica, que nunca tiveram uma produção
cinematográfica constante.
J. S.: Paraguai... Penso que sim. Creio que vai
haver uma explosão cinematográfica e indubitavelmente
nos próximos cinco anos, na América Latina,
isso será mais ainda, porque são povos
em que se acumularam muito sofrimento social. Os povos
que sofrem são os que nos enriquecem em tudo.
Um povo que não sofre, não cria nada.
É como se a dor fosse um conteúdo de seu
ser. É como na Argentina, antes da crise... Veio
a crise; e a crise reativa a vida e as pessoas começam
a questionar sobre a sociedade em termos reais. E isso
é assim...
Cc: Filmes como El Bonaerense, La Ciénaga...
J. S.: Mundo Grua... Sim, vários
filmes, que são produtos da crise.
Cc: Para você o que é um cinema
popular, coletivo, revolucionário hoje em dia?
Em filmes recentes como Adeus, Lênin, As
Invasões Bárbaras, o argentino Lugares
Comuns, vemos um fim das utopias. Você acredita
que nos tempos modernos de hoje há espaço
para as utopias?
J. S.: Sim, eu creio que sim. Penso que não
só hoje em dia, sempre! A humanidade não
pode viver sem utopias. Isso é uma necessidade
quase que biológica, crer na esperança;
uma necessidade biológica de transformação,
mudança. Creio que sim. Assim se justifica em
por que mudar as coisas que estão aí.
... E creio que numa sociedade sem perspectiva, como
a de hoje em dia, na qual o homem não está
realizado plenamente, não se sente bem, e isso
gera angústia; as pessoas vão querer transformar
essa sociedade, as pessoas vão crer na possibilidade
de fazê-lo e isso é a utopia... Isso é
tudo.
Cc: Em alguns filmes recentes encontramos a relação
do indivíduo e o coletivo, e também uma
questão de família, filhos e pais, um
conflito de gerações. Você, em seu
último filme, trata essa questão, como
Fernando pensa "tenho que mudar essa sociedade",
mas...
J. S.: Não resolve! Nem o problema de
sua família.
Cc: ...Sim, exato! Ele não olha para a
sua família, que é o problema que está
mais próximo dele... Mas, por outro lado, você
aponta para... há um "jardim", um outro...,
não sei, talvez um outro conceito de família...
J. S.: ...A ética. Sim! É o drama
de Fernando; é o que acontece na esquerda; se
está alegorizando um conflito na esquerda, em
geral e na latino-americana. Há muitos esquerdistas,
muitos que militam na esquerda, não porque realmente
querem transformar a sociedade, mas porque querem tranqüilizar
a sua má consciência. Por isso, também,
essas pessoas podem se converter numa espécie
de trânsfuga, em direção ao outro
lado. Um quê de individualismo, obviamente; e
realmente, se sentem mais tranqüilos, "Se
faço isso, e pronto... e depois tenho esse espaço
para fazer o que quiser." Isso é um mecanismo
muito comum, que explica o que chamo de "crocodilos
chorões", que soltam-se de suas mais caras
condições por meio da fuga. Isso explica
algo de muito grave da sociedade, não só
da sociedade latino-americana, mas do mundo. Porque
toda a cultura do individualista, heleno-judaico-cristã
está projetada numa visão de mundo, a
meu ver, muito equivocada, com valores que não
são aceitáveis, destruindo a nós
mesmos... E com a ilusão de liberação
da sociedade... E essas dificuldades de se construir
uma sociedade orgânica, coletiva, de atuação
coletiva, feliz; está cada vez mais difícil
por esse cerco do individualismo, com corpos muito fortes,
e com a melhor das intenções são
capazes de destruir a sociedade, porque estão
primeiro eles, depois os demais.
Cc: Em seus três últimos filmes,
há uma "nação clandestina",
você aponta, de um modo bem claro, esse conflito
da existência de duas Bolívias, e agora,
com os recentes fatos, com a queda do presidente Sánchez
de Lozada, com o movimento indígena, camponês,
você acredita que a Bolívia está
num momento político de transformação
e como o cinema boliviano vai trabalhar isso? Porque
seu último filme, você o concebeu antes,
mas os fatos foram agregados depois à idéia
original.
J. S.:Sim! Bom, a Bolívia está
vivendo uma etapa de transformação muito
acelerada. Isso é o resultado de uma acumulação
histórica no campesinato boliviano, inclusive
creio, em resolver o enfrentamento permanente com o
setor tradicional dominante - os mais reacionários,
os conservadores - que manteve à margem essa
população sedenta de transformação.
Que construíram um Estado de fuzil, um Estado
como um bunker, na qual a classe dominante se
defende dessas minorias ansiosas, que são maiorias,
mas não são cativas, que não estão
nesse enfrentamento como que pacificamente, não
estão relaxadas, estão em permanente contestação.
E essa permanente contestação, os tornaram
vigilantes, no processo histórico... Além
do mais, se agregam, se somam as convicções
de sua própria cultura, a formação
de sua própria cultura coletivista, indígena,
que os dota de uma visão superior, podemos dizer
de uma certa maneira, dos que estão na cidade,
porque podem ver, funcionar, porque vivem esses conflitos
de uma maneira natural. O intelectual, o ideólogo,
o esquerdista da cidade tem que fazer um esforço,
uma lavagem cerebral enorme, para estar nesse plano
para entender os demais primeiro e logo depois o indivíduo.
Isso é o que dizia um intelectual boliviano,
René Zavaleta Mercado, os índios primeiro
se pensam coletivamente e depois pensam individualmente,
então isso é muito importante, porque
nós, o homem da cidade, não podemos fazer
isso, não é fácil. Nós estamos
pensando primeiro individualmente e depois coletivamente,
e isso é um esforço que tem que se fazer
para renunciar ao ego e ver o coletivo como primeiro.
Por outro lado, para eles isso não é um
esforço, é a sua maneira de compreender
a sociedade, primeiro, coletivamente e depois individualmente,
enquanto que na cidade não é assim, a
cultura ocidental os deixa isolados, e isso lhes produz
um trauma e um tipo de culpa, e por isso os índios
tentam reduzir , tentam .... A sociedade boliviana hoje
em dia também já tem dados concretos dessa
raça, mobilizando sua gente; estão reclamando
um novo Estado, porque não estão contentes
com um Estado velho, anquilosado, ineficiente, que serviu
para resolver os problemas de um estamento pequeno na
sociedade; porque já não funciona, já
não serve, para resolver as demandas e necessidades
propostas em idéias básicas da sociedade,
das mais básicas; que são conceitos que
fazem com que tenham direito a ter um outro tipo de
vida, que não seja continuar sofrendo na miséria
e na consternação O que possui uma enorme
força, porque não é algo concedido,
mas sim, de sua capacidade, de tal idéia; e é
por isso que a cultura, no caso boliviano, tem um papel
político enorme.
Cc: Você afirmou ontem que nenhum partido
ou líder conclamou as massas, foi algo espontâneo;
creio que a própria esquerda boliviana ficou
pasma.
J. S.: Claro! Sim! Todo mundo! Porque... quando
a própria direita e a Igreja, quando tentou participar
no conflito constitucional contra o presidente, disseram:
"O que temos que fazer é chamar Ivo Morales,
em Cochabamba; mandar um avião, um helicóptero,
ele vai falar com o Presidente da República e
isso vai se resolver!". E eles designaram um padre,
um sacerdote que dirige uma rádio, que se crê
o homem mais inteligente do país, crê que
sabe tudo - mas fala coisas elementares! - quando ele
se encontrou com Ivo Morales, este lhe disse: "O
que eu vou fazer lá? Com quem vou falar? Tenho
que falar com todo mundo!" Porque Com o o partido,
tudo! Sim, porque sim! E isso custou a entender, o que
estava falando esse homem, o que ele estava falando,
custou a entender, por causa de preconceito. Pois, para
eles, nada o que "essa gente" [os índios]
exija, produz ou faz, é respeitável! Ou
pode ser aprendido!...
Cc: Mas em outros países ocorre o mesmo;
há um outro Peru., um outro Equador...
J. S.: Sim, claro. Lá, está ocorrendo
o mesmo com os indígenas, mas, no caso do Peru
estão produzindo muitos problemas, conflitos.
Há uma diferença.... Como se no Peru se
notasse a ausência de uma experiência histórica
que o campesinato boliviano teve. Como se o Peru estivesse
quarenta, cinqüenta anos mais atrás, como
se faltasse ainda mais quarenta anos de desenvolvimento
social, político, para assumir a conduta política
que hoje tem o campesinato aymara boliviano.
Porque não tiveram a Guerra do Chaco. Não
tiveram a Revolução de 52. Esses fatores
alimentaram e aceleraram um processo de consciência
política.
Cc: E a experiência peruana?
J. S.: Velasco. Não!
Cc: Foi algo da cúpula para a base...
J. S.: Sim, exato! Bem intencionado com questões
sociais, mas...
Cc: Mas, você filmou El Enemigo Principal,
nesse período, no Peru...
J. S.: Mas nunca tive uma cooperação
estatal. Foi algo, como que oculto isso (risos) Pois
os militares ficavam assustados, em função
da guerrilha, os camponeses...
Cc: Para você, o que é um cinema
político hoje? E qual é a sua opinião
sobre o cinema de Michael Moore?
J. S.: Eu não vi esse último filme
dele. Mas, me parece bom, me parece muito importante,
a experiência de um cinema político, se
está criando um nível de consciência
numa sociedade tão desinformada. Essa sociedade,
mais do que qualquer outra, necessita desse tipo de
cinema. É um povo, potencialmente, perigoso,
não que sejam maus; os norte-americanos, geralmente,
são pessoas muito ingênuas, muito simples...
Mas, são perigosos com sua desinformação,
e são capazes de continuar consentindo em fazer
a violência e o Estado e seus governos os manipulam
como querem! São muito desinformados para melhor
vigiá-los. E um filme como o que falei [Fahrenheit
9/11], que tira Bush, de onde está oculto
Bin Laden, é elementar. É muito importante.
Cc: Mas há ressalvas, não?
J. S.: Eu ainda não o vi. O que opinam?
Cc: Seria muito simples, Fahrenheit possui
uma tese bem clara "eu quero derrubar Bush!".
Primeiro, porque foi uma eleição roubada,
fraudada, e Bush se apropriou do Estado como um saque,
e agora, foram ao Iraque e não sabem como sair!
Em suma, o filme possui um conteúdo muito claro.
J. S.: Mas, faz alguma análise do contexto
político geral norte-americano?
Cc: Não.
J. S.: Porque isso é muito mais complicado
de fazer. Porque no fundo, é isso; não
é Bush. Bush apenas segue a um plano maquiavélico
desses interesses. Todo mundo ficou se perguntando,
"Por que o Partido Democrata não reagiu,
com suficiente energia, quando lhes roubaram as eleições?"
Foi o que todo mundo ficou pensando; "O que está
acontecendo com o Partido Democrata?" Se lhes roubam
de uma forma tão descarada o poder, com duzentos
e cinqüenta mil votos de vantagem, e eles não
fazem nada! Não fizeram nada! Só algumas
críticas, muito débeis... Por isso, me
dá a impressão de que o Partido Democrata...
o verdadeiro poder está acima do Partido Democrata,
e os Republicanos, que sobre eles, há um outro
poder maior ... e foi nesse nível de poder, e
assim foi nessa instância que se decidiu que o
trabalho sujo era melhor que fosse feito por Bush. Que
como presidente, o trabalho sujo faça ele, que
não seja um democrata para a cara feia do Império.
Mas, existe uma cara pior ou mais bestial; como foi
Kennedy! Foi terrível! E era a "carinha
bonita", o "mocinho" do filme. Mas, fez
a Aliança para o Progresso, a pior fase da Guerra
do Vietnã, tentou invadir duas vezes Cuba...
E as pessoas estavam muito tranqüilas, porque estava
aí a Jackie (risos) Que romântico! Mas
é terrível. Por isso que se prefere o
imperialismo com a cara de George Bush, do que esse
imperialismo, que não se sabe como fazer, que
é mais perigoso!
Entrevista concedida
a Estevão Garcia e Fabián Núñez.
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2004. Transcrição
e tradução: Fabián Nuñez.
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