CINEMA É QUESTÃO DE ESTADO?

A pergunta que intitula este texto, na verdade, desdobra-se em duas:

- É preciso fazer cinema no Brasil?

- Se é preciso fazer cinema, é preciso legislar e regular?

Não há como fugir da constatação de que as opções às questões acima são de cunho ideológico – até mesmo a opção de se omitir é ideológica. É assim a regra do jogo democrático atual, em que o poder executivo propõe a legislação e o congresso vota.

Existe uma produção de cinema no país - bem maior do que há uma década - subsidiada pelo Estado através de leis de incentivo. Além de patrocinar indiretamente abrindo mão da coleta de certos impostos, o Estado também mantém a chamada cota de tela, definindo por lei um determinado número de dias em que os cinemas devem exibir filmes brasileiros. Afora concursos de estímulo à produção, há anos estes são os apoios que fundamentam a ação do Estado na produção do cinema brasileiro. É este apoio suficiente ou é preciso mudar?

Nos parece claro que as leis de incentivos não favorecem com igualdade ou qualquer critério de justiça a todas as produções brasileiras. Portanto, mantê-las como estão significa favorecer determinados grupos por diversas razões (a fama de atores do elenco seria apenas o exemplo mais óbvio). Estes grupos devem ser favorecidos? É preciso notar que as ações do Estado tendem a favorecer grupos específicos - a questão seguinte então será: quais grupos devem ser favorecidos. Sim, a discussão será ideológica, seja qual for ela. As opções não são meramente técnicas.

Também é sabido que boa parte dos filmes (na verdade, quase todos) feitos com o suporte das leis não está nem nunca esteve disponível para a imensa maioria dos digníssimos mantenedores do Estado brasileiro. A pergunta que surge para definir a ação do Estado já não é cinema para quê?, mas cinema para quem?. É preciso relembrar o óbvio (que só os profetas enxergariam): a legislação acerca da Cota de Tela não vem sendo suficiente para fazer a produção chegar à população. Sendo assim, filmes caros patrocinados pelo Estado simplesmente não são vistos.

É preciso construir cinemas? Sim, e é preciso discutir também o barateamento de ingressos e o incentivo a cinemas que exibam muitos filmes nacionais. Mas, se existe a intenção de que estes filmes sejam vistos por um número alto de espectadores, é preciso sobretudo legislar também sobre a televisão - única mídia em que uma parcela majoritária da população assiste a filmes. O Estado brasileiro faz concessões de canais televisivos, mantém o seu próprio canal e, curiosamente, não pode exibir os filmes que são custeados pelos impostos de que ele abre mão. Seus mantenedores são cidadãos que pagam por uma televisão estatal, pagam por um Estado que concede canais, pagam por produções caras – e, depois de pagar por tudo isso, não têm acesso aos filmes.

Cinema brasileiro deve existir? É coisa pública? É questão de Estado? E como deve se constituir a ação do Estado? São estas as questões que estão na mesa.

Nem todas as respostas estão sendo dadas neste momento: o projeto ora apresentado pelo Ministério da Cultura trata da criação da Ancinav e não mais do que isso. Desta forma toda a discussão torna-se um pouco limitada - já que uma série de decisões sobre as ações de apoio terão de ser tomadas à frente (como, por exemplo, as das leis de incentivo). Assim, a discussão de um panorama complexo é limitada pela defasagem das propostas acerca de questões interligadas.

As discussões atuais sobre a intervenção do Estado na produção e regulação do cinema mantêm a velha tradição de tratar cinema e Estado como instâncias ontológicas já dadas. Não são. Os conceitos de Estado e cinema envolvidos nesta questão, ao menos o cinema como projeto audiovisual de um país (onde audiovisual = cultura + mercado), são construções parciais. Os métodos do Estado são opções do Estado. Podem servir sobretudo às estratégias de manutenção do grupo político no poder - ou podem atender a uma demanda de uma sociedade que não tem poderes para efetuar reformas desejadas. É inevitável, portanto, voltar à velha pergunta: a sociedade brasileira precisa de filmes feitos no Brasil, deseja ver esses filmes e legitima uma política pública protecionista? Se a resposta que orientar os governantes for sim, o Estado optará por legislar e promover a atividade.

As primeiras relações explícitas entre Estado e cinema podem ser localizadas já nos primeiros anos da invenção dos filmes - na França foi criada uma cinemateca, já nos EUA a polícia perseguiu as câmeras dos produtores independentes. No Brasil em que a questão social foi caso de polícia, a legislação sobre cinema se inicia no período Varguista. Desde então, em momentos históricos distintos, dos anos 30 em diante, este protecionismo se deu de cima para baixo, ocasionalmente para atender a pedidos de eventuais grupos da classe cinematográfica, mas também para governos legitimarem suas ações questionáveis. Assim foi no Estado Novo, assim foi no regime militar, talvez por funcionar como uma maneira de obter lustro intelectual sem perder a autoridade interna e externa (a soberania) - além de existir a influência e ação de eventuais figuras de destaque próximas ao núcleo de poder. Vejamos o que escreve Randal Johnson, no caso sobre a iniciativa, a partir de 1973, de um fortalecimento dos incentivos à cultura, então coordenados por Jarbas Passarinho, ministro da educação e da cultura do general Médici:

O período de censura e repressão exacerbou a crise de legitimidade dos militares, especialmente com relação ao campo intelectual-cultural, e a maior atividade na arena cultural pode ser interpretada como uma resposta a essa crise

Os quadros estatísticos do período revelam que o protecionismo ao cinema rende frutos. Tanto as taxações de filmes estrangeiros, praticadas em momentos variados (sobretudo nos regimes autoritários), como a cota de tela, que obriga exibidores a comercializar títulos nacionais, tiveram como conseqüência aumento de produção (às vezes de público também), mas nunca conseguindo criar condições para a independência nem da produção em relação ao Estado, nem tampouco da exibição dos filmes brasileiros nas salas de cinema.

Nunca se obteve um consenso social pleno sobre a pertinência política dessa dependência do suporte estatal. São históricas as divergências sobre essa relação, voltando sempre à velha discussão do cinema como assunto de Artista e de Mercado ou se é assunto para ser tratado com atenção por burocratas do governo. O risco é bem sabido – ser servido pelo Estado, afinal, pode significar, em casos específicos, servir aos interesses do Estado. E que Estado a sociedade pretende e pode constituir?

Portanto, é realmente um ato ideológico propor legislação e regulação de mercado, como muito se comentou nos últimos dias. Isto não é uma novidade.

E é por isso que é preciso voltar à velha questão: por que o cinema brasileiro, em sua tradicional e tortuosa dependências das decisões estatais, deve ser questão pública? Essa pergunta deve ser feita constantemente antes de se avaliar decisões X ou Y. Porque a produção de cinema - seja porque é não-exibida e não-vista, seja porque eventualmente é feita por um pequeno grupo favorecido por bons contatos - pode ser contestada como questão pública. Para se justificar como uma questão pública, é preciso encontrar sua legitimidade social, algo a ser construído, de forma complexa, pelo próprio cinema e pelo Estado, a partir de uma existência social dos filmes feitos. Esta legitimidade só pode ser conquistada sem favorecidos - ou com favorecidos definidos por lei, como em casos de cotas e concursos específicos - e com propagação cultural de fato.

Isto não se dá apenas com eventuais aumentos da produção de filmes e do número de espectadores nas bilheterias. Isto se dá a partir da criação de mecanismos de acesso de todas os segmentos sociais e de todas as regiões do país a essa produção - como realizadores e como espectadores. É preciso que exista esta propagação cultural, que pode ser medida por critérios do mercado a partir da exibição nas salas - como êxito de público de uns tantos filmes e reconhecimento em festivais internacionais, repercussões na crítica e controvérsias estéticas -, assim como pela simples (desde que eficiente) exibição dos filmes para a população, com a conseqüente inserção no imaginário da sociedade, de modo a se tornarem elementos de reconhecimento.

Até aí vão as questões ideológicas que podemos discutir num contexto democrático. Não se pode considerar aceitável a ingerência acerca de temas e conteúdos - muito embora estes pressupostos tenham inevitável relevância em, por exemplo, jurados de concursos de estímulo (e é muito revelador que esta questão nunca tenha passado pela cabeça dos reclamantes de agora, uma vez que só usam leis de incentivo). Não se pode considerar aceitável a defesa de conteúdos nacionalistas, aglutinadores. Senão por outras razões, pela evidência de que, num país multifacetado, será simplista qualquer tentativa de sintetizar temas aglutinadores ou mesmo manifestações nacionalizantes. Não temos dúvidas de que qualquer tentativa nesse sentido seria autoritária, por pretender constituir uma identidade coletiva extraída a fórceps. Não é preciso orientação para que possamos, através de qualquer cinema feitos aqui, nos reconhecer como brasileiros, como parte de um povo culturalmente formado por diferenças e individualidades. Desde os fins do século XIX duvida-se da coesão brasileira, assim como das características que diferencie o Brasil, se comparado a outros tantos países. Em certo momento, Michel Debrun perguntou:

Como poderia haver consenso em um país caracterizado historicamente por consideráveis desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas, entre classes, etnias e regiões? Como poderia o nível nacional manter significação central, se o que presenciamos é a proliferação das identidades locais, de bairro em particular?

Há uma música de Gilberto Gil em que se diz que "o povo sabe o que quer/ mas o povo também quer o que não sabe". Ninguém pode pretender que sabe o que o povo quer - nem Estado, nem nenhuma espécie de organização que se constitua em monopólio, nem tampouco artistas de sucessos eventuais.

Se discussões sobre as mudanças estão em curso, vale notar que a ocasião não surge para atender a legitimação de um regime autoritário que tenha chegado ao poder pela força, mas porque a sociedade hoje legitima estas mudanças. É preciso respeitar as regras do jogo: o projeto precisa ser discutido ponto a ponto para redefinir a ação do Estado em relação ao cinema - buscando o modelo que os representantes da sociedade, governo e congresso, acreditam ser o mais próximo do ideal. E o diabo está nos detalhes.

Chegaremos assim a uma questão tratada por Jean Claude Bernadet em mais de um texto. Desde a primeira imagem rodada no país - seja ela de Vittorio di Maio, Henrique Messiano, José Roberto da Cunha Salles ou Afonso Segreto - os produtores sempre estiveram ocupados apenas com as filmagens, sem se preocupar com o que fazer com o resultado depois. Ou até se preocupando com isso, mas sem organizar-se para agir a longo prazo (no máximo, tomando ações paliativas e circunstanciais). Também é interessante notar, ainda sob a luz de Bernardet, que as imagens de Maio, Messiano e Segreto, em matéria de documentação histórica, podem nem sequer ter existido, pois não temos evidências de suas projeções, nem se foram reveladas a contento, e tampouco se a experiência de filmar virou filme. Este início já sugere alguns problemas existentes em nossos capítulos posteriores. E é contra esse aparente determinismo - de uma dependência completa dos recursos estatais, sem apresentação de resultados para o público nem emancipação a longo prazo - que o Estado precisa agir, através de regulação e estímulo. Caso contrário, citando com liberdade Fabrício e Tancredi em O Leopardo (o de Lampedusa e o de Visconti), a mudança poderá acabar sendo feita apenas para deixar tudo como está.

Cléber Eduardo e Daniel Caetano