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                         Com 
                          Céu e Inferno, Akira Kurosawa parece buscar 
                          alguma coisa muito estranha, não apenas por conta 
                          de uma possível confusão filosófica 
                          que atravessa todos os 143 minutos de seu filme mas 
                          também pela tarefa difícil em encontrar 
                          um correlato visual (mesmo que obscuro) para o que talvez 
                          seja o grande assunto aqui: as dificuldades em se dar 
                          um passo, qualquer passo, numa direção 
                          que não se conhece muito bem. 
                           
                          Os personagens principais (os oficiais da polícia; 
                          o magnata interpretado por Toshiro Mifune e sua mulher; 
                          o seqüestrador; o jovem assistente que trai Mifune) 
                          caminham, procuram, marcham, exploram e percorrem os 
                          mais variados meios durante todo o filme (apesar de 
                          muito visivelmente só existirem dois no filme: 
                          céu e inferno). A cada progressão, a cada 
                          nova passagem e transformação da condição 
                          moral dos personagens (e neste filme há muitas 
                          destas passagens, provavelmente as mais cuidadosas que 
                          Kurosawa operou em toda a sua obra), há uma espécie 
                          de vacilo, um balanço, uma dúvida: está 
                          se fazendo a coisa certa? Há "uma coisa certa" 
                          a se fazer? Existem condições de separar 
                          certo de errado num mundo que nos traz sapatos de papelão, 
                          mansões que pairam sobre favelas, pessoas que 
                          morrem para poder provar uma dose de cocaína 
                          pura? Céu e Inferno, o filme - apesar 
                          do título ou justamente por causa dele -, é 
                          o espaço preenchido por todas estas questões. 
                          Em outras palavras, o que Kurosawa faz é não 
                          ceder nem ao "céu", nem ao "inferno". Sua escolha, 
                          no fim das contas, é pelo "e", isto é, 
                          o espaço da dúvida, da ambigüidade, 
                          do medo, da dor e do vacilo partilhado pelos personagens 
                          e pelos dois universos que Kurosawa opõe no seu 
                          drama. 
                           
                          Voltemos às dificuldades do início. Mifune 
                          interpreta Gondo, um fabricante de sapatos que orgulha-se 
                          por produzir um material bom, firme e que dura por bastante 
                          tempo. Alguns companheiros da empresa onde trabalha, 
                          durante uma reunião em sua mansão, tentam 
                          convencê-lo a tomar parte de uma chantagem, algo 
                          que envolve ações e a fabricação 
                          proposital de sapatos imprestáveis que gastem 
                          rapidamente, o que resultaria no afastamento instantâneo 
                          do velho chefe (toques de Rei Lear aqui). Gondo 
                          veementemente rejeita a proposta, e não espera 
                          muito tempo para rechaçar os colegas da sua mansão. 
                          Pouco depois de todo o desentendimento, um telefonema 
                          lhe avisa que seu filho foi seqüestrado, mas passado 
                          algum tempo após o telefonema seu filho aparece 
                          são e salvo. Descobrimos que quem acabou seqüestrado 
                          foi o filho do chofer de Gondo. 
                           
                          A história de Céu e Inferno apenas 
                          dá corda a esse conjunto de equívocos 
                          que se manifestam nos primeiros minutos de projeção. 
                          O filme todo transcorre deste conjunto de hesitações, 
                          tensões, perplexidades e momentos de extrema 
                          agonia aos quais os personagens estarão sujeitos. 
                          Até aí, nada que separa o filme de Kurosawa 
                          do joio de thrillers policiais que conhecemos 
                          dos Estados Unidos, da Itália ou mesmo do Japão. 
                          Mas o que destaca Céu e Inferno, o que 
                          o torna um exercício exemplar em cinema de gênero 
                          e reflexão sociológica, é o fato 
                          de Kurosawa deixar toda a confusão, toda a tensão 
                          da situação que ele registra contaminar 
                          o próprio estilo do filme. Explico: muito já 
                          se fez da câmera oscilante, dos movimentos de 
                          câmera trépidos realizados por Kurosawa 
                          em seus filmes, mas é bem provável que 
                          jamais durante sua carreira eles pareceram tão 
                          bem empregados, se adequaram tão bem à 
                          exploração de ambientes. É como 
                          se Kurosawa "calçasse" sua câmera com diversos 
                          sapatos, para que a cada nova cena, a cada novo "céu" 
                          ou "inferno", a câmera esteja usando o calçado 
                          mais inadequado, o mais justamente errado para o terreno 
                          onde está pisando. Esse balanço está 
                          lá no início, quando ainda estamos envolvidos 
                          pela segurança da mansão de Gondo; amplia-se 
                          no insano jogo de espelhos e perspectivas falsas que 
                          é o passeio pelo trem-bala; espalha-se por zonas 
                          urbanas e rurais quando a polícia inicia a procura 
                          pelo seqüestrador após esse obter o dinheiro 
                          do resgate. Kurosawa, este louco que faz de Céu 
                          e Inferno um filme de ação de alto 
                          orçamento, não só dá conta 
                          de toda a geografia social que é o próprio 
                          assunto do filme como consegue emparedar-se com uma 
                          autocrítica das mais severas já vistas 
                          numa película deste gênero: feita toda 
                          pela câmera, com a câmera, seja pela 
                          dificuldade desta em mover-se ou localizar-se nos "infernos" 
                          que Kurosawa atravessa, seja pelo incômodo ininterrupto 
                          e pela tensão que atravessam a câmera quando 
                          esta presencia as ações que ocorrem no 
                          "céu" (a mansão de Gondo, o escritório 
                          da polícia). 
                           
                          Mas nada nos prepara para o verdadeiro tour de force 
                          que é a travessia empreendida pelo grande 
                          inferno do filme: o submundo, as boates, as zonas, nada 
                          é poupado no pesadelo/musical da MGM/epifania 
                          que é a lenta perseguição que a 
                          polícia faz junto ao seqüestrador após 
                          este ter sua identidade desmascarada. Se Kurosawa deliberadamente 
                          orquestra o clímax do seu filme como um número 
                          musical parece menos por uma afetação 
                          ou vontade de estetização que por uma 
                          necessidade real de dar a este inferno todo um peso: 
                          a polifonia construída com o encontro de várias 
                          músicas na banda de som; os cruzamentos de ruas; 
                          a direção de arte abertamente naturalista; 
                          o som de carros e a presença de vários 
                          veículos engarrafados, quase se encontrando ou 
                          batendo; os vários agentes sob disfarce se locomovendo 
                          e esbarrando uns nos outros nos mais diversos ambientes; 
                          a atmosfera de sujeira e umidade; tudo isto provoca 
                          uma tensão quase insuportável ao que estamos 
                          assistindo, ainda mais sendo uma série de cenas 
                          verdadeiramente prazerosas aos nossos olhos. 
                           
                          Após toda essa agonia, toda essa rede de incertezas 
                          e passos em falso, o encontro entre Gondo e seqüestrador. 
                          Não há diálogo possível: 
                          não havia antes, não haverá jamais. 
                          O seqüestrador é levado embora por oficiais, 
                          e tão logo ele deixa o cubículo onde o 
                          encontro se dá uma grade preta desce, encobrindo 
                          a visão de Gondo (e a nossa). Nesta viagem do 
                          "céu" ao "inferno" (e realmente, o que separa 
                          um do outro?) demais já foi visto, nos diz Kurosawa. 
                          É o bastante. 
                           
                             
                          Bruno Andrade 
                           
                          (DVD Continental) 
                          
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