VEREDAS
Portugal, 1977

É um tanto difícil falar de Veredas sem apontar para as mudanças em Portugal a partir da Revolução dos Cravos, e sobre a visão própria que Monteiro desenha de filme a filme sobre seu país. Veredas, o filme, claro, se subtrai a isso tudo, mas é curioso que um percurso sistemático de tamanha virulência em relação ao país natal contenha, quase como um impromptu, essa espécie de elogio mitológico do solo, da paisagem e do território português. Nada comum para um homem que diz num de seus filmes: "Nasci português. Fui enganado." Mas que se atribua esse instante de otimismo e de loa mais a uma certa disposição nova por parte da população do que a uma real entrada de Portugal numa diferente era de prosperidade e liberdade – tampouco na criação de uma sociedade não-conservadora –, coisa em que Monteiro jamais acreditou. Para celebrar o fim do salazarismo, a saída de João César Monteiro é recorrer a um Portugal mítico, imemorial e atemporal, que reflete a imemorialidade jovial do solo e das gentes do solo sem declarar efusões deslumbradas à sociedade portuguesa como um todo. É justamente na criação de uma complexidade do olhar diante do país que nasce na obra de Monteiro, com Veredas, uma nova etapa em sua carreira.

Nesse seu terceiro longa-metragem, João César Monteiro finalmente atinge uma densidade de relato em imagens que foge do panfleto e da provocação propriamente ditos (mesmo que com esse material ele tenha realizado coisas notáveis) e aponta para um aprofundamento mais nuançado e rico em matizes do tema que dominará grande parte de seus filmes, a saber, o "estar vivo em Portugal". O recurso ao mito nos entrega um povo português muito diferente daquele que o português de classe média gostaria de ver exibido. É um tipo que entoa cantigas chulas, pratica rituais em que o ser humano parece animalizado, vive nos campos a tocar cabras, etc. Orgulho nacional, sim, mas um orgulho nacional que pouco tem a ver com os esforços de modernização e de aplicação da sociedade numa "nova ordem política e econômica" que se esperaria ver.

Em Veredas, Monteiro faz um caminho muito parecido com aquilo que Pier Paolo Pasolini fez com sua "Trilogia da Vida" (Decameron, Os Contos de Canterbury, As Mil e Uma Noites), realizada na primeira metade da década de 70. Nela, Pasolini recorre ao primitivismo como forma de criticar a sociedade tecnológica e o nascimento de uma cultura homogênea, "de massas", em que a felicidade reside mais no consumo de bens do que nos prazeres simples da convivialidade. Ora, em certa medida esta é uma visão partilhada por Monteiro – não conciliar com uma visão pró-burguesa ou pró-sociedade contemporânea portuguesa – mas, entretanto, existe também o ensejo de fazer referência direta a Portugal e coro a um certo espírito nacional que merece consideração. A saída nada esquizofrênica para isso é, ao contrário de tomar clássicos estrangeiros da literatura, como Pasolini, o jeito é tomar contos tradicionais portugueses e cantigas populares e tratá-las um pouco à maneira da "Trilogia da Vida", com ênfase na paisagem virgem, numa certa frontalidade naif da câmera, e em histórias independentes, ou quase, umas das outras. No entanto, Veredas não é apenas emulação pasoliniana: as composições de plano, sempre distanciadas e no mais das vezes fixas, substituem a sensualidade por um certo distanciamente mais caro a um Oliveira ou um Straub.

A narrativa que se estabelece é menos de personagens do que geográfica. O filme começa na região de Trás-os-montes e vai até o literal português. O foco do filme paira mais sobre as cores da paisagem e a riqueza dos dialetos do que na continuidade da ação, totalmente fragmentada entre cantigas, panorâmicas da relva, semblantes dos camponeses e narração em off. Há duas narrações principais: uma é o mito de Branca-Flor, filha virtuosa de um pai-demônio, e outra é a chegada de um casal na propriedade de um patriarca burguês, momento em que Monteiro tem a oportunidade de colocar na boca do padre um discurso vexatório sobre grevistas que morreram "bem morridos". A sintonia entre as duas é uma certa tentativa de destronar o poder paterno: a primeira dá certo, a segunda não.

Um interlúdio particularmente curioso é o trecho encenado das Eumênides, de Ésquilo, tida como a primeira tragédia de conciliação não-fatal entre os gregos. Nela, Atena persuade as coéforas, espíritos da vingança, a abandonarem os sentimentos de cólera e transformarem-se em eumênides, espíritos benevolentes que encontrariam pouso e honra na cidade de Atenas. Aqui, fincada no centro de um filme como Veredas, a cena atinge um inequívoco desejo de purgação dos sentimentos de ódio, além de uma definitiva reconciliação do artista com sua terra. E o que brota na película, a despeito da irreverência mordaz com que ainda são tratadas as instâncias de poder patriarcal, é toda a fulgurância do cantar e do habitar de pessoas simples tomadas em seu registro sensível. A frase final de Pickpocket, de Robert Bresson, posteriormente parodiada em As Bodas de Deus, caberia aqui perfeitamente para exprimir o sentimento de Monteiro com seu país em Veredas: "Que caminho estranho tive que percorrer para chegar até você". Uma bela vereda.

Ruy Gardnier