Tropas Estelares
Paul Verhoeven, Starship troopers, EUA, 1997

Existem duas leituras plenamente possíveis de Tropas Estelares: a primeira é a de que se trata de uma das mais corajosas e inflexíveis sátiras sobre o poder de um Estado-militar e a implantação de uma cultura da violência e da sanitarização do mundo a partir de um modelo determinado de "beleza e ideais"; a segunda, está errada.

É impossível não tratar deste tema logo no parágrafo de inicial de um texto sobre este filme, assim como esta é a primeira coisa que Verhoeven comenta na trilha alternativa de som que acompanha o ótimo DVD existente no mercado brasileiro. Isso porque, se as pessoas simplesmente usassem os olhos e os ouvidos que Deus gentilmente nos deu, não seria factível imaginar uma outra leitura do filme que não aquela idealizada pelo cineasta holandês. No entanto, como parece difícil demais ver aquilo que está bem óbvio na tela à sua frente, houve quem chamasse o filme de "cinema de ação de terceira", criticasse seus "personagens inverossímeis", ou pior ainda, considerasse o filme "fascista".

Mas, pensando bem, faz todo sentido. Afinal, o filme de Verhoeven não mereceria o adjetivo "corajoso" se justamente não executasse esta que é a operação que diferencia os grandes filmes críticos: não apenas satirizar um sistema (seja ele político, econômico, ou simplesmente de produção ou estética cinematográfica) de fora, mas ousar vestir suas roupas para poder criticá-lo por dentro (Tropas Estelares só faz sentido porque é um filme americano de um grande estúdio). E faz ainda mais sentido porque, se estivesse inserido num sistema sensato e capaz das mesmas leituras que ele propõe, Tropas Estelares não teria função. Portanto é imperativo que o filme seja mal interpretado, que seja desprezado pelo incômodo que ele representa: afinal ele deixa nu tudo aquilo que mais se deseja varrer para debaixo do tapete.

É especialmente assustador assistir o filme após as desventuras americanas no Iraque. É fácil imaginar um espectador algumas décadas adiante na História do mundo, quando as datas atuais estiverem um pouco mais confusas na memória, acreditando que Tropas Estelares era uma sátira direta à política externa do governo de Bush Jr. Senão, vejamos: o filme apresenta uma nação (pretensamente mundial, mas claramente norte-americana) indo em guerra contra um coletivo, caracterizado por ela como bárbaro e não-humano, utilizando-se da noção de guerra preventiva, após um atentado a seu território (e aqui está uma das mais sutis e deliciosas piadas, já que a cidade atacada é Buenos Aires, onde todos falam inglês e parecem americanos). Mais: uma vez que encontra inesperada resistência dos bárbaros, começam a reagir não apenas com o uso de desproporcional força bélica-tecnológica, como também validando expedientes como a tortura de prisioneiros. Hmmmm... Se soa familiar e quase premonitório, Verhoeven explica na trilha de comentários o que fica bem óbvio: todos os regimes autoritários e imperiais são parecidos. Portanto, pode-se dizer que o filme trata dos nazi-fascistas ou dos norte-americanos no Vietnã com a mesma facilidade (e deve-se notar a mais que proposital alusão aos primeiros, com os figurinos semelhantes aos da Gestapo que usam os oficiais do exército no filme).

Mas a força do filme de Verhoeven não está apenas num possível discurso incisivo contra este Estado bélico (nele, há os civis e os "cidadãos" - que são apenas os que se alistam no Exército): está, acima de tudo, na forma de seu filme. Alternando momentos inspirados nos filmes de "propaganda" da Segunda Guerra (as passagens dos telejornais nunca são menos do que antológicas com sua alusão ao fascínio pelas armas ou à pena de morte) com referências diretas a outros filmes críticos (o campo de treinamento do Exército parece um Nascido para Matar em viagem de ácido), o que Verhoeven melhor consegue fazer é passar uma idéia absurda de uma sociedade onde a violência e o sangue são adorados, são a norma. Neste sentido é especialmente assustador todo momento após as batalhas (que são filmadas como carnificinas sem sentido ao ponto do surrealismo), quando os soldados aparecem sempre exultantes e sorridentes, não importando o horror que possam ter passado ou os companheiros que possam ter perdido.

Este assunto abre as portas para duas das mais despropositadas críticas feitas ao filme: seus supostos "maus atores" e seus "efeitos vagabundos". Ora, se o espectador/crítico não tivesse percebido as subversivas intenções de Verhoeven em mais nenhum aspecto do filme (difícil de acreditar), na escalação do elenco deveria estar a chave final. Com sua aparência plastificada, com sua representação forçada do "melting pot" norte-americano, o elenco de Tropas Estelares é talvez o elemento mais satírico do filme inteiro - e neste sentido suas atuações são brilhantes. Não custa lembrar que, para além das referências citadas acima, Verhoeven faz questão de iniciar seu filme como uma típica comédia romântica de "high school", com direito a cenas de aulas (onde se ensina aos alunos que civilização é igual a violência), partidas esportivas, paqueras e rivalidades amorosas. Já quanto aos efeitos, Tropas Estelares faz referência direta aos mais vagabundos filmes de invasão alienígena, ao mesmo tempo que tem alguns efeitos muito bem cuidados (nas naves, etc). E seus "bugs" são um dos melhores achados do filme: completamente irracionais (com exceção ao "brain-bug" e sua fronte em forma de vagina), implacáveis, em tudo "desumanos". Para que um personagem possa dizer: "você está tentando ser um herói?"; "Não, eu só quero matar alguns bugs".

Diálogo este que, aliás, prova que Tropas Estelares não é só discurso crítico: é diversão incessante. Verhoeven nos choca e nos faz morrer de rir a cada cena, e um dos aspectos mais impressionante do filme é sua noção de ritmo, assim como seu roteiro quase impecável onde cada cena cumpre uma função específica e brilhante dentro do discurso do filme. Cada detalhe de figurino e direção de arte, cada frase e expressão usada nos diálogos, tudo em suma parece possuir não uma nem duas, mas infinitas camadas de leitura, sátira, subversão. Tropas Estelares, não há medo em dizer, é um dos grandes filmes americanos dos anos 90. Sorte de quem entendeu.

Eduardo Valente