TRÊS CURTAS: A MÃE, AMOR DAS TRÊS ROMÃS, OS DOIS SOLDADOS
Portugal, 1978-9

Esse segue aqui com três filmes do final da década de 70, que recebem aqui alguns breves comentários. observações sobre três obras curtas que, se não despontam como referências centrais na obra do diretor, carregam em si elementos, ensaios de idéias, obsessões, referências de um trajeto de cinema ainda em sua primeira década de erupção.

A Mãe (1978)

Baseado num conto tradicional português, A Mãe (ou Amor de Mãe) é cinema de teatro mais-que-filmado, cantado com irônica secura. Gestos extremos são narrados em implausível naturalidade, praticando a ironia através de um fingir-se. A narrativa dinâmica, em que cada seqüência nos entrega um novo elemento/evento, dá ao filme o tom parabolar das curtas narrativas de cunho moral – numa seqüenciação que varia entre tableaux-vivants e tempos mortos, entrecortados por uma trilha sonora tragicômica, tom de um cinema onde o humor e a acidez se misturam. Se aqui não aparecem tão claramente as falas-provérbios típicas de Monteiro ou as marcas de seu pôr-em-cena em desarranjo, já está seu tom de afronta, de provocação da plausibilidade através de personagens que não conhecem limites para seus atos. A narrativa curta-e-grossa, do filho malquisto que mata a mãe e passa a profanar seu túmulo em busca dos objetos com ela enterrados a cada vez que a desenterra, nos leva ao personagem da "ovelha negra", do homem mal-visto e de atos improváveis, que ignora as diretrizes da boa conduta e vive na contra corrente de toda boa educação. Ladrão de vacas, fingido, dissimulado, o clichê do anti-herói é tratado por Monteiro com nobre simplicidade, dando de comer a seus filhos, tramando seus pequenos atos com sua mulher (uma espécie de corvo a grunhir idéias), desenterrando o corpo da mãe, trocando a caça alheia pelo cadáver. A adoração ao resto humano, a sobra do humano, esse cuidado-fetiche que sepulta corpos inertes em torno de lençóis brancos e cobertores de renda. Uma veia a um só tempo anticlerical e religiosa, marca da postura ambígua que Monteiro imprime diante do divino, do sagrado (ainda que sempre contrário a toda normatização do que é divino). Há um ridículo, um quê patético, onde Monteiro explora os gestos e os rituais, transformando a narrativa folclórica da mãe transformada em assombração, numa provocação ao culto-ao-dejeto, ao lugar da mãe como essa figura sagrada e perpetuada como uma efígie da ordem. O plano final do filme, um monge que se depara com o cadáver "montado" num cavalo (e se põe de joelhos a rezar histericamente), é o ponto final nessa brincadeira de genealogia do mito, da fábula, do lugar do sagrado. A frugalidade com que o filho comete seus pequenos "delitos" e as conseqüências cumulativas de seus atos, a forma como o mito se instaura pelo acúmulo de necessidades materiais mal-resolvidas, faz desse A Mãe um exemplar claro do olhar de Monteiro sobre os cânones, e as formas como eles se fundam numa narrativa de "peças pregadas", de enganos. Imagens que partem do banal, ultrapassam o implausível e repousam sobre a santidade patética-ingênua da "boa ordem das coisas".

Amor das Três Romãs (1978)

Uma fábula da resistência do que se sente. Após a imagem de uma romã aberta, vermelha e úmida, referência direta ao sexo feminino, o filme "começa" por um único plano externo-realista, que abre o lugar para um cenário vazio, de farsa e brincadeira. Um elenco de adolescentes para uma narrativa juvenil, onde atores se mostram pintando, numa parede branca, os cenários em que os personagens irão habitar. Não há um espaço rígido/fixo do pôr-se em cena, mas um lugar vazado por um olhar que é, ao mesmo tempo, para a cena e para a figura daquelas jovens atrizes que brincam de narrar. Há um erotismo sutil na forma como Monteiro filma as meninas trocando de roupas por trás de biombos, uma malícia ingênua, entrecortada pelo barroquismo da trilha sonora e interpretações quase "desinteressadas". Há uma infantilidade enérgica na forma como aqueles atores "inexperientes" contam a história de amor de um jovem príncipe por uma camponesa, e a forma como ele é enganado por um espírito da floresta (a "preta") que seduz a ambos, tomando seu lugar ao lado do príncipe. A cenografia de teatro infantil (tanto nos figurinos e nos cavalos de madeira) se completa pelas cartelas de desenhos fixos que sintetizam/espelham algumas passagens da narrativa – sobrepondo camadas de significantes. Ao final da narrativa, Monteiro transforma o desfecho clichê do "final feliz", num elogio ao sentimento amoroso enquanto gesto e lugar absoluto, resistente, forte diante das artimanhas, retomando uma fala do início do filme ("Ele pensa, logo resiste") num misto de simplicidade fabular e peso de espírito. O elenco se apresenta ao final, como numa peça teatral, dizendo seus nomes e curvando a cabeça. Os dois jovens que representam os enamorados fecham o filme, primeiro saindo cada um por um dos cantos do quadro, depois retornando e se encontrando no centro da tela, novamente como os "personagens": "Os amorosos nunca se separam" diz a narração em tom proverbial. Um filme que preza por um certo desleixo e uma experimentação irregular, um exercício da improvisação-declamada, de cenas marcadas e breves flagrantes de "bastidores" (é impossível não lembrar de Julio Bressane ao longo de todo o filme), em que a trilha sonora frenética vêm e vai, nos convidando a olhar as imagens numa distância (adoravelmente) perdida entre a fruição do conto e a reflexão-de-cena, onde a falsidade gritante de gestos e imagens é meticulosamente desenhada para alcançar um lugar verdadeiro e irrepresentável.

"O amor é uma coisa bastante embaraçosa. Pelo menos da forma como eu o entendo: como algo de absoluto. As coisas que aprendemos na vida podiam levar-nos a relativizar o amor. Isso se eu tivesse algum bom senso na cabeça. Não é o caso. Há uma teimosia em entender o amor como coisa absoluta. Sendo absoluta, não é possível. Ficamos com a idéia." João César Monteiro

Dois soldados (1979)

Um delírio seco, uma fábula de guerra. O filme se inicia num perfil mascarado de um soldado em meio à fumaça, a trilha sonora marchante e debochada agita o plano estático. Seguimos para planos de dois soldados solitários a caminhar por terrenos desertos, cobertos de folhagem ressecada. Aqui a edição de som é austera, ouvindo-se passos e silêncios, numa seqüência de caminhadas sem rumo, sob o som distante de disparos de armas de fogo. São dois desertores, e um deles sintetiza o motivo de sua deserção: "...o que importa é estar vivo!". Seguem-se as caminhadas desse realismo monotônico, para, logo adiante, Monteiro nos trazer a ruptura: num gesto extremo, um dos soldados aceita ter os olhos arrancados pelo outro em troca de um "naco de pão". De referência surrealista direta, misturando o absurdo-do-real da guerra a esses arroubos de fantasia, inicia-se o perambular do soldado cego, se arrastando sobre as pedras próximas a um riacho, se alimentando dos restos de pão que o outro lhe deixa. Diante da fome, do vazio do corpo, os olhos são sacrificados. E, a partir daí, o filme se encontra em verdadeiro delírio, fantasiando o lugar desse país estrangeiro não identificado (metáfora direta às guerras coloniais portuguesas), onde um soldado cego encontra uma árvore mágica, capaz de lhe devolver a visão e torná-lo rico! Um tom de fábula obscura toma o filme quando bonecos gigantes, música e alegria, invadem as ruas da pequena cidade desse suporto reino, comemorando a vitória sobre os "invasores" e o retorno do rei doente (salvo por um certo estrangeiro...). Os dois soldados se reencontram, e aquele que antes havia cegado o parceiro agora quer ser rico e importante como o soldado não-mais-cego (vestido de terno e maleta yuppies...). Seguem-se as festividades que anunciam a vitória desse "lugar distante" (que se aparenta mais com Portugal do que com terras africanas...), nos remetendo também à vitória dos próprios portugueses sobre os invasores espanhóis à época da fundação de Portugal, séculos antes – misturando-se assim invasores e invadidos num mesmo festejo. Cria-se esse enredamento, um redemoinho, onde vitórias e derrotas portuguesas marcadas na história parecem estar misturadas, de ponta-cabeça, e não há referências que justifiquem qualquer ação: seja a guerra, seja a derrota, seja a vitória, seja a festa. Ao ver seu ex-colega enriquecido, o outro soldado sai em busca da árvore milagrosa, desse "El Dorado" que resolveria todos os seus problemas, e acaba sendo morto no lugar do amigo. Uma fábula ácida, uma crítica poética às guerras coloniais portuguesas e uma afronta direta às supostas razões e espíritos nobres das batalhas – transformadas aqui num delírio de poder e dominação, encenada em tom de teatro filmado e falas mais "citadas" do que ditas (os atores, por vezes, nos lembram fantoches). Ao final do filme, o que resta, é um quase nada que se possa ser dito: voltamos a um close-up do soldado por trás da máscara de gás, encarando a câmera por um longo minuto (os olhos por trás de visores embaçados), sob a trilha sonora marcial e as nuvens de fumaça que tomam a imagem, vindos daquele (e de tantos outros) campo de guerra. Talvez o filme de discurso mais diretivo da obra de João César Monteiro – ainda que bem distante de qualquer "ideologismo" de prateleira, como bem convém ao sentido de liberdade, presente em toda a sua obra.

Felipe Bragança