SHOWGIRLS
Paul Verhoeven, Showgirls, EUA, 1995

Celebridade

Showgirls, um dos piores filmes de todos os tempos. Showgirls, a "framboesa de ouro" do ano de 1996, e pior filme da década para o mesmo prêmio. Sim? Ou não. Faz muito sentido que esse filme completamente pessoal de Paul Verhoeven tenha uma reputação dessas. A vulgaridade, o mau gosto, o arrivismo, a patifaria, a completa amoralidade entranham completamente a visão desse filme, fazendo com que assisti-lo esteja longe de ser uma experiência gratificante ou agradável. Além disso, a grosseria da violência, a onipresença do sexo, a baixeza dos personagens – de todos –, tudo isso transforma o espetáculo de Showgirls numa fantasia grotesca que, no fim, acaba comendo o próprio rabo. Sobre tudo isso se concorda. Mas por que a simples utilização de todos esses recursos aqui mencionados, sem que sequer se questione a que propósito estético elas servem no filme, serviriam para fazer de Showgirls a coisa abominável que aparentemente todo mundo julga ser?

Para começar a discutir esse filme mais profundamente, é primeiro necessário dizer que todos esses aspectos "desagradáveis" são completamente voluntários. E que essa feiúra moral dos personagens, refratada pela geografia excessiva de Las Vegas e pelos interiores de decoração ultra-cafona dos cassinos e casas de show, é o coração do filme. Essa concepção está tão imbricada em seus trabalhos – dos quais Showgirls representa apenas a melhor concretização – que é difícil avaliá-los com os simples conceitos que a crítica mais comum utiliza. Roteiro elaborado? Aprofundamento psicológico? Personagens verossímeis? Verhoeven nunca jogou tudo isso às favas com tanta obstinação quanto nesse filme. Seus personagens são tipos, o psicologismo é raso ou inexistente, o roteiro é um acavalamento de situações dramáticas sem leveza ou matizes. Isso por si só não faz um bom ou um mau filme: é preciso considerar, sem prejulgamentos ou questão de gosto (é bonito então é bom, é feio então é ruim), o material com o qual o diretor trabalha e verificar até onde ele leva as propostas que lhe são caras.

Em Showgirls, há muito tempo não se via um retrato tão cáustico do mundo do espetáculo. Talvez um exemplo anterior seja Les Girls, de George Cukor, mas é preciso que se levante de início algumas diferenças. As coristas, nos anos 60, ainda são objeto de alguma mística, figuras romantizadas cuja amoralidade é tratada de forma leve e bem-humorada. Mas isso deve ser encarado do ponto de vista de uma Hollywood poderosa, mas ainda não completamente corporativa e mafiosa. A corista dos anos 90 parece com o seu tempo: turbinada (Gina Gershon falando sobre suas operações), puro objeto sexual (os seios à mostra onipresentes em quase todos os momentos do filme), competitiva a ponto de cometer crimes para conseguir o objetivo almejado (duas coristas machucam intencionalmente as colegas, com diferentes propósitos), ela está totalmente refletida no espírito de seu tempo. Vemos nas relações entre os personagens lobbies, dumpings, informação falsa, favorecimento, oclutamento de provas, prostituição, drogas, tudo que faz o imaginário das grandes corporações. Ao mesmo tempo, nada disso é denunciado, nem por suas vítimas. Existe sempre uma lei da compensação, e essas regras parecem funcionar muito bem dentro daquele grupo, sem necessidade de um agente externo regulador (a polícia) para intervir (Nomi que decide revidar o estupro e espancamento de sua melhor amiga por um rock star e seus capangas).

O filme começa de forma maliciosa, se vendendo como uma espécie de A Star Is Born das dançarinas de Las Vegas. Por um momento, ele parece que vai descambar para a historinha da personagem que flerta com o mal mas consegue em tempo desfazer os erros que cometeu e por fim consegue fazer valer sua moralidade intacta no seio de um ambiente viciado. Naturalmente, isso só é construído para ser logo derrubado: Nomi Malone, menina charmosa, agressiva e autoconsciente de seus talentos como dançarina, pega carona para Vegas a fim de seguir carreira. Passa de stripper a corista e, por fim, a estrela principal, a custo de muita auto-humilhação, sedução e mau-caratismo. Sua frase preferida é: "I'm not a whore", eu não sou uma puta, só para descobrirmos, já com bastante tempo de filme, que (oh!) seu passado secreto revelava uma vida de prostituição barata em diversas cidades. A subtrama de descoberta pessoal é quase renovada no final, quando a moça abandona tudo e, tomando carona com o mesmo crápula que a conduziu a Vegas, ela diz que ganhou a "si mesma". Mas isso só para descobrirmos no plano seguinte que ela não desistiu da vida do espetáculo, mas que está mais uma vez tentando subir alguns andares, quando o veículo some no horizonte com destino a Los Angeles. Nomi não é "a pura do sistema", apenas uma Poliana (como é chamada diversas vezes ao longo do filme) que ainda não percebeu que não importa o quanto se suba, no seio daquele mundo ainda e sempre se desempenha, em alguma medida, a mais velha profissão.

Tudo em Showgirls é questão de pose e reiteração. Pouco importa que mudem as peças do tabuleiro, o jogo é sempre o mesmo. Cristal Conors ou Nomi Malone como deusa (a show se chama "Goddess") num outdoor gigantesco não muda muita coisa. Aliás, nada. Verhoeven faz questão de filmar a estréia de Nomi como estrela com os mesmos diálogos, os mesmos personagens e o mesmo posicionamento de câmera da cena originária que Nomi vê Cristal fazer no começo do filme. Até as cenas de sexo supostas autênticas de Nomi, primeiro com dançarino e melandrão James Smih (Glenn Plummer) e o diretor artístico (o mesmo que cafetão, segundo James) Zack Carey, são mais continuação de uma performance do que momentos de verdadeira entrega. Rebolando para James, ela não faz nada além da lap dance que está acostumada a fazer na prmeira casa em que trabalha; na piscina com Zack, os movimentos repetitivos – ridículos de tão excessivos – que ela faz se jogando para trás mais evocam o trabalho de uma profissional do que o ápice sexual. O gozo é o espetáculo, não o orgasmo.

Se há um diretor com o qual a obra de Paul Verhoeven tenha mais semelhanças, é sem dúvida Robert Aldrich. A mesma fascinação por personagens de moral dúbia, pelo mau gosto, por fazer da história que está sendo contada um mero invólucro para a exposição de uma visão de mundo. O que separa esses dois realizadores, no entanto, da série de diretores espertinhos que figuram pessoas amorais e/ou perdedores em seus filmes – Solondz, Haneke – é (1) a leveza com que a trama é tratada, o diretor sentindo-se muito bem entre seus personagens e com a maneira pela qual eles levam a vida; (2) nenhum prurido moral pelo qual poder-se-ia esperar mais dos personagens do que eles são; e por fim (3) a mestria em fazer com que a forma cinematográfica não seja por nenhum momento mais inteligente que seus personagens, o que resultaria num nefasto olhar "de cima". "It's showtime, estejam preparados para isso", parece dizer Verhoeven a cada minuto. E esse showtime inclui naturalmente – e é essa "parte maldita" que a maior parte das pessoas de gosto apurado não está preparada para aceitar – a sujeira, a grosseria, o mau gosto. Paul Verhoeven, ao contrário, chafurda nisso tudo para talhar um belo objeto feito exclusivamente de atrocidades. Quem nunca foi atroz, que atire a primeira pedra. Faz melhor quem quiser regozijar-se com o melhor pior filme do mundo. Pior pra eles.

Ruy Gardnier